Arles, 14 de outubro de 1995
Na encantadora e ensolarada Arles, Xabier deixa o hotel Jules Cesar e parte em direção à casa de repouso. Preferiu não avisar previamente, mesmo que sua entrada fosse recusada por algum motivo extraordinário.
Para sua surpresa (ainda se surpreendia com seu pai), a clínica, localizada na Avenue de Alyscamp, distava apenas 400 metros do hotel, o que certamente tornaria seu trabalho mais proveitoso e fácil. Caminhando pela avenida, num discreto declive, não restava dúvidas: era o local correto. Um prédio de três andares em tons pastéis e verde-água com uma mistura de estilos que não combinavam com a elegante arquitetura francesa; ao menos, a quantidade imensa de árvores aliviavam o visual austero do local.
Na recepção da clínica, seu francês-outrora razoável- tornou-se incompreensível, tamanho o nervosismo em que se encontrava. Ainda assim, conseguiu se comunicar com o funcionário com cara de poucos amigos:
- Vim fazer uma visita à Mme Calment, conforme agendamento prévio.
- Deixe-me ver...Monsieur Xabier Izaguirre? Sim, esta na lista de visitas, porém sinto que não será possível no momento...Madame Jeanne está na sessão de fisioterapia.
- Oh, sem problemas, há algum horário mais conveniente em que eu possa voltar?
- Sim, vou checar com a cuidadora responsável.
Neste momento, o recepcionista usa o ramal interno e num francês propositalmente rápido e baixo, comunica a presença da visita e solicita que Xabi aguarde um instante até ser atendido.
Sentado no corredor principal, bem arejado, observa idosos relativamente bem de saúde, alguns conversando em grupos, outros solitários em suas cadeiras de rodas, mas nada que superasse a senhora de bengala querendo a todo custo beijar seu cuidador.
A cena que divertiu o rapaz foi interrompida pela chegada da auxiliar responsável pelos cuidados de Jeanne Calment.
Naquele instante, que pareceu uma eternidade, Xabier vislumbrou o que poderíamos chamar de "a visão do paraíso": uma garota ruiva, de pele alba sem imperfeições, olhos azuis que reluziam como o céu, cabelos milimetricamente ajustados, um sorriso discreto porém firme e uma voz que ecoou no corredor como uma opereta de Mozart.
- Monsieur Xabier, très bientôt! Sou Juliette, responsável pelos cuidados de Mme Calment.
- Muito prazer Juliette! Perdoe-me pela chegada fora de hora, é que não quero perder muito tempo, estou algo ansioso com a visita.
- Entendo. Os últimos dias foram tumultuados, devido ao aniversário dela e o tão falado recorde de idade...vários jornalistas, alguns desagradáveis, você sabe...então, pode ser que ela fique um tanto arredia num primeiro momento, mas é uma ótima pessoa, certamente irá gostar dela.
"Certamente", pensou Xabi, desnorteado com a beleza de Juliette.
A garota quis saber o motivo de tão distante visita, curiosa com o interesse do rapaz, algo incomum nesses dois anos em que assumiu a função na clínica, para complementar sua renda e ajudar a pagar seus estudos em Artes Plásticas. E ficou admirada com a disposição e paixão com que ele descrevia suas descobertas, a mudança nos rumos de sua tese da faculdade e a recente escala em Paris. Xabier contou (quase) tudo à desconhecida Juliette, ocultando apenas seu breve encontro com Desirèe, num ato falho que diz muito sobre o caráter masculino em geral.
Juliette, depois de ouvir seus argumentos, se convenceu que o jovem era digno de conhecer a personagem mais icônica da França e o levou imediatamente a ela.

VOCÊ ESTÁ LENDO
Victor Hugo encontra Van Gogh
RomansaO interesse acadêmico de um jovem basco pelo pensador francês Victor Hugo e pelo pintor holandês Van Gogh se transforma em admiração ao conhecer a história em vida na pele da centenária Jeanne Calment