Biarritz-França, 4 de outubro de 1995
Joexto Izaguirre considerava-se um homem feliz. Aos 56 anos, trabalhando onde sempre sonhou, passava a alta temporada imerso nas funções de gerente do Hôtel du Palais. Amava aquele lugar, antigo palácio de verão construído por Napoleão III para sua esposa Eugênia de Montijo em 1854. Sentia-se quase um local naquela cidade linda, antiga vila de pescadores do país basco francês que se tornara um balneário de celebridades graças em parte à presença do hotel-palácio.
Como todo pai de família do mundo moderno, se ressentia da ausência dos seus pares mas julgava muito custoso todos se mudarem para Biarritz, ou Miarritze como gostava de chamar em sua língua natal. Ao contrário da Espanha onde os bascos tinham certa autonomia e a língua era reconhecida como oficial, na vizinha França falar em euskara era considerado mais uma excentricidade pré-histórica do que propriamente uma variante cultural, mesmo naquela região; apesar de ruas com nomes bascos, não havia o sentimento de pátria como no lado espanhol, as escolas não eram obrigadas a ensinar a língua e o pior, Nekane, sua esposa, não gostava dos franceses. Quando Xabier era menor, passavam um período maior juntos, mas ela só fazia isso pelo filho, que adorava "trabalhar" com o pai; admirava-o pela fluência na língua, pelo conhecimento de cada detalhe do imenso hotel e pela presteza com os hóspedes. Com os compromissos educacionais do filho as visitas se tornariam cada vez mais raras e Nekane passava boa parte do seu dia como voluntária da Gurutze Gorriak, a Cruz Vermelha de Donostia.
Naquela tarde ensolarada de quarta-feira, enquanto organizava as ações para o final de semana, Joexto leva um susto ao ver seu único filho dançando e cantando "Macarena" em pleno saguão rodeado de mármore Carrara Arabesco e lustres em estilo Maria Teresa. Impossível não rir com a cena: todos os funcionários da recepção, alguns antigos, conheciam o garoto de há muito e não se surpreenderam na verdade. Já seu pai sim. Com o tempo vamos ficando rudes e esquecendo nossa essência infantil e ver Xabi daquela maneira era como ganhar um presente de Natal antecipado.
- Que bom vê-lo por aqui filho! Aconteceu alguma coisa? Por que não me avisou, eu mandava alguém do receptivo buscá-lo na estação de trem.
- Sem problemas pai, está tudo bem. Na verdade vim até aqui conversar com o senhor sobre algo que descobri.
Joetxo abraçou Xabier e caminharam juntos à varanda do hotel, local de agradável vista para o mar, onde os turistas desfrutavam do ambiente enquanto tomavam seus espumante favoritos.
Percebendo a preocupação em seu olhar Xabi deixou o pai tranquilo ao dizer do que se tratava: descobriu, e não se perdoava pela sua ignorância, que uma senhora francesa com 120 anos alegava ter ido ao velório de Victor Hugo, 110 anos atrás e que gostaria de conhecer esta mulher, fazer uma entrevista com ela, obter detalhes úteis para sua tese.
- Pai, o mais incrível o senhor não sabe, a danada diz que conheceu Van Gogh em vida, pois ele morou na mesma cidade que ela! Justo ele pai, que nós gostamos tanto!
Joexto ria compulsivamente com a empolgação do filho. Quem não conhecia Jeanne Calment na França? Todo ano era igual, a cada aniversário, dezenas de jornalistas se espremiam na enfermaria do retiro onde ela residia e com criatividade duvidosa tentavam obter alguma informação nova da senhora, com bolos temáticos retratando tanto o escritor como o pintor, velas em profusão, o que fazia a enfermeira responsável entrar em pânico com a possibilidade de um incêndio no asilo. Isso sem falar no uso político de sua imagem; nunca se esquecera de Jacques Chirac, ainda como primeiro ministro, dizendo em rede nacional: "Jeanne é um pouco como a avó de todos os franceses".
Certamente já comentara dela em outras ocasiões mas sabia que os filhos raramente ouvem os pais e não ficou espantado com a surpresa.
- Eu conheci madame Jeanne. Há cerca de 20 anos ela veio ao nosso hotel, novinha ainda, com 100 anos - neste momento risos sarcásticos que somente a intimidade sabe produzir - , como parte da comemoração de seu centenário e da ligação da cidade com os dois personagens que você citou, meu filho.
- Nola da? Zer zuk diozu? - bradou Xabier. O que o senhor está me dizendo? Qual a relação de Miarritze com Victor Hugo? E com Van Gogh? O jovem naquele momento sentia-se humilhado por pesquisar tanto e saber tão pouco.
Joetxo explicou-lhe que Victor Hugo conheceu Biarritz em 1843 e profetizou que se tornaria uma estância turística no futuro. E que ficou apaixonado com o lema da cidade: "J'ai pour moi les vents, les astres et la mer" (Tenho para mim os ventos, os astros e o mar). E além disso escreveu sucintamente outra impressão do local: "É um povoado branco, de telhados vermelhos e janelas verdes, construído sobre um pequeno monte gramado, e isso é maravilhoso". Neste momento Xabi se contorcia de raiva por ter lido essa frase a cada visita na cidade ao longo desses anos e nunca se importar em saber qual era seu autor.
Além disso- continuou o pai- na época da visita da madame, houve um leilão de um quadro de Van Gogh em nosso salão nobre. O gerente na época ("eu", disse, rindo) julgou que fazia sentido unir os três personagens num evento grandioso que elevaria o "status" da cidade e do hotel.
O universitário iria esbravejar com o pai questionando o porquê dele nunca ter contado tais histórias, mas também sabia que provavelmente ele o tinha feito sim. Ao invés disso, olhou fixamente em seus olhos e disse que era isso que queria fazer também: unir os três personagens numa única história!
Joetxo sentiu um orgulho que somente os pais sabem sentir quando veem nos filhos um reflexo de si mesmo.
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Victor Hugo encontra Van Gogh
RomantikO interesse acadêmico de um jovem basco pelo pensador francês Victor Hugo e pelo pintor holandês Van Gogh se transforma em admiração ao conhecer a história em vida na pele da centenária Jeanne Calment