Capítulo 18

2 0 0
                                    

Arles, 02 de outubro de 1839

Antoine Calment era, como a maioria de seus pares, um humilde agricultor que trabalhava todos os dias para alimentar sua família. Quase nada o distinguia dos outros homens que lavravam nas cercanias de Arles, à exceção de seu interesse pelas artes em geral e, particularmente, pela literatura. 

Naquela tarde de clima outonal ameno e o chão coberto com folhas avermelhadas, deparou-se com uma pequena comitiva, que se destacava pela imponência. Atônito, à beira da plantação onde estava, observou um nobre senhor a bordo de uma charrete que raramente se via por aquelas áreas; ao lado dele, uma estonteante senhora de belos e lisos cabelos pretos, tez alva e um belo vestido azul, que contrastava perfeitamente com a estrada em tons ocre.

- Bonjour monsieur! Estamos vindo de Avignon, aqui é a rota correta para Arles? 

Antoine, tímido com a elegância do requerente, pausou alguns segundos antes de responder: 

- Oui, oui, sigam esta estrada e acredito que antes do sol se pôr, os senhores estarão lá, ainda a tempo de admirar o brilho de nosso rio.

- Rhône, certo? Inquiriu a senhora, o que fez Antoine sentir um calor que desconhecia.

- Isso madame, tenho a certeza que ficará encantada com a beleza de nosso grande orgulho!

- Certamente irei, em Avignon pudemos admirar sua beleza.

Antoine esquecera que o rio não era exclusividade de sua cidade, sentiu-se tolo por isso. Resolveu então, se redimir do erro cometido:

- Posso ajudá-los com alguma coisa? Logo irei para casa, o que os senhores precisarem.

- Muito obrigado , vamos seguindo caminho, au revoir!

- Au revoir! 

E assim, Antoine viu a terra subir ao som dos cavalos que, ordenadamente, seguiram seu caminho ao sul.

E, conforme revelara, já estava na hora de ir embora, ver seu filho Nicolas, um pequeno e animado garoto de 1 ano e 9 meses que, desde cedo, adorava participar da leitura dos livros para toda a família.

Após trinta minutos de caminhada, encontra a comitiva parada e o casal, no solo, inconsolável com a falta de sorte, distando tão pouco do destino.

- A roda da charrete quebrou, não conseguiremos seguir viagem, lamentou a senhora para um surpreso Antoine que, de pronto, calculou a distância até a vila mais próxima e, num gesto de ousadia incomum a ele, bradou:

- Estamos próximos, posso acompanhá-los até lá, enquanto seus homens finalizam o conserto. Vamos, eu ajudo com as malas.

E assim foi feito. Carregando duas bagagens, além de seu material de trabalho, guiou o casal vagarosamente até onde pudessem esperar com mais segurança e conforto o restante da equipe.

Percurso todo feito em silêncio, que foi suspenso ao chegarem no primeiro estabelecimento aberto na cidade. 

- Muito obrigado pela ajuda, seremos eternamente gratos, senhor?

- Antoine Calment, a seu dispor!

- Victor-Marie Hugo e minha senhora, Juliette Drouet.

Neste momento, o agricultor de hábitos atípicos soltou um grunhido que fez todos ao redor rirem, pela estranheza do som e pela espontaneidade do mesmo.

- Ahhhnnn, errr, eu, eu sabia que havia reconhecido o senhor. Sou um grande fã de sua obra, disse, trêmulo.

E era verdade. Todas as noites lia para seus pares um capítulo de um livro de Victor Hugo. Sabia que ser alfabetizado era uma dádiva em sua realidade e fazia questão de perpetuar seu humilde conhecimento aos seus. Gostava particularmente de Claude Gueux, obra sobre um criminoso e os excessos de sua condenação. 

Victor Hugo, de certa forma, ficou admirado pelo reconhecimento naquela terra distante e rural e, sobretudo, vindo de um camponês. Agradeceu e ofertou 1 franco francês ao homem, prontamente aceito.

- Posso perguntar o que te trazem ao sul?

- Estamos conhecendo a Provença, a Juliette é uma ótima companheira de viagem, considero muito importante conhecer as riquezas de nossa pátria!

- É um prazer tê-los conosco, respondeu Antoine.

Mas, já refeito, queria mais. Pediu ao nobre escritor se poderia autografar um livro seu e apresentá-lo ao filho; "moro aqui perto", disse, já afoito. Hugo não tinha porque esquivar-se deste pedido e aguardaram o retorno do simpático rapaz.

Logo voltam, esbaforidos, Antoine e seu filho Nicolas, com um exemplar de "Les Orientales", livro de poemas baseado na guerra de independência grega, publicado em 1829. Ainda sem fôlego, abriu em suas primeiras páginas e bradou:

"O mar! o mar em todos os lugares! ondas, ondas novamente.

O pássaro cansa em vão com seu voo irregular.

Aqui as ondas, ali as ondas;

Ondas sempre intermináveis ​​​​de ondas empurradas para trás;

O olho só vê ondas amontoadas no abismo

Rolando sob as ondas profundas.

Às vezes, peixes grandes, viajando à beira da água, fazem suas barbatanas prateadas brilharem ao sol,

Ou o azul de suas caudas largas.

O mar parece um rebanho sacudindo o velo:

Mas um círculo de bronze fecha o horizonte à distância;

O céu azul se mistura com as águas azuis.

- Esses mares deveriam secar? disse a nuvem ardente.

- Não ! - Ele retomou seu vôo sob o sopro de Deus."

Victor Hugo poucas vezes se sentira tão surpreso e genuinamente feliz por algo tão generoso e espontâneo. Carinhosamente escreveu, na contracapa, sua famosa assinatura com letras largas.

Despediram-se, Antonie com a certeza que sua vida e de sua família tinha mudado para sempre. 

Guardou o livro assinado como um tesouro, uma espécie de herança para a família. E, a cada sessão de leituras em grupo, sempre priorizava as obras do autor, citando orgulhosamente "meu amigo Victor"; Nicolas cresceu com esse mito e, mesmo sem lembranças daquela tarde de outono, tinha pra si o poeta como um tio distante de tão familiar que soava. 

Já mais velho, conhecedor ele mesmo da obra do pensador francês, decidiu perpetuar a tradição de seu pai para quando ele próprio tivesse filhos.

Victor Hugo encontra Van GoghOnde histórias criam vida. Descubra agora