Arles, 14 de outubro de 1995
Juliette achou curioso o interesse do jovem basco e, mais ainda, seu nervosismo. Talvez pelo ambiente semi-hospitalar ou pelo interrogatório prévio, o fato era que realmente Xabier transpirava em demasia para um outono europeu. Porém, para ele, era a presença encantadora da cuidadora que o incomodava, por assim dizer.
Tinha problemas com ruivas. Aos cinco, apaixonou-se pela professora Nekane; ruiva com sardas, voz aveludada e aquele olhar dedicado somente a ele quando falava mirando em sua direção. Curiosamente com o mesmo nome de sua mãe, a origem deriva da palavra "neké", ou seja, tristeza, sofrimento. Suas tardes na banheira de casa, cantando temas do cancioneiro romântico espanhol, ilustram bem o significado desse nome.
Aos treze, seu primeiro beijo, que só perdeu em intensidade para o contato com a pele de Arantza, quando deram-se as mãos na biblioteca municipal. Múltiplos arrepios, calores e hiperestesias tomaram conta de seu corpanzil pré-adolescente, sensações que poucas vezes tornou a sentir. Obviamente fora "trocado", meses mais tarde, por um rapaz de 19 anos, fato que o fez detestar qualquer ruiva -natural ou não- que cruzasse seu caminho a partir de então.
Mas Juliette tinha outras virtudes além do tom de pele. Sua voz, sua postura e seu aroma eram absolutamente desconcertantes para um sábado. Xabi percebeu que seu incômodo era perceptível e pôs-se a rir inesperadamente.
- Me desculpe, estou um pouco nervoso com toda essa situação, e nessas condições desato a rir.
- Não se preocupe, logo você se acostuma com o ambiente e, por certo, a Madame Calment irá te tranquilizar, hoje ela está bem humorada.
Xabier neste momento se deu conta do motivo de estar ali e esforçou-se para se concentrar na entrevista com a centenária moradora do asilo.
Ao entrarem no quarto individual da mais famosa e antiga moradora do recinto, se deparam com uma senhora sentada numa poltrona azul relativamente confortável, olhando com o que restava de sua visão para um quadro de natureza morta, cantando incrivelmente bem em companhia do som de uma rádio local:
"Hier encore j'avais vingt ans
Mais j'ai perdu mon temps à faire des folies
Qui ne me laissent au fond rien de vraiment précis
Que quelques rides au front et la peur de l'ennui
Car mes amours sont mortes avant que d'exister
Mes amis sont partis et ne reviendront pas
Par ma faute j'ai fait le vide autour de moi
Et j'ai gaché ma vie et mes jeunes années
Du meilleur et du pire en jettant le meilleur
J'ai figé mes sourires et j'ai glacé mes peurs
Ou sont-ils à present, à present mes vingts ans?"
Xabier ficou com a sensação de já ter ouvido aquela música, muito provavelmente no hotel onde seu pai trabalhava, mas espantou-se com a bela Juliette gargalhando e comentando:
- "Ainda ontem eu tinha vinte anos?" Música bem adequada para a madame.
A senhora Jeanne parou de cantar e desatou a rir junto com a cuidadora, deixando o jovem de certa forma atônito.
Não se preocupe Xabier. Por aqui todos se imaginam mais jovens do que realmente são e Charles Aznavour é uma unanimidade em nossa casa.
A madame tem muito bom gosto, emendou Xabi, tentando ser solidário.
- A propósito madame, este é o jovem rapaz espanhol do qual te falei mais cedo, está lembrada?
- Claro que estou lembrada, você acha que eu estou desmemoriada? Espero que não seja jornalista...
Tentando modular a voz para ser ouvido, explanou:
- Não senhora, sou estudante e faço uma pesquisa sobre Victor Hugo. Durante os estudos, fatos o associaram ao Van Gogh e à madame, o que me trouxe até aqui-relatou, num trêmulo francês.
- Victor Hugo e Van Gogh numa mesma conversa? Félicitations garçon, por essa eu não esperava.
Xabier enrubesceu de tal forma que Juliette ofereceu-lhe um copo com água e um banquinho, ambos aceitos prontamente.
Com a janela aberta e tímidos raios de sol refletindo sobre o vestido verde-água de Jeanne, Xabi mostrou-se pronto a iniciar a conversa tão aguardada.
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Victor Hugo encontra Van Gogh
RomanceO interesse acadêmico de um jovem basco pelo pensador francês Victor Hugo e pelo pintor holandês Van Gogh se transforma em admiração ao conhecer a história em vida na pele da centenária Jeanne Calment