Rua Lepic, 54 Montmartre-Paris, fevereiro de 1888
Theodorus nutria demasiada preocupação com seu irmão mais velho. De hábitos estranhos, proporcionais ao seu talento, atribuia ao viés artístico suas atitudes desmedidas. Mas naquele ano particularmente tudo parecia dar errado para o primogênito da família Van Gogh. Frequentemente ébrio e rejeitado pelas mulheres, a vida de Vincent tornara-se um erro.
Theo foi o grande incentivador do irmão, pintor errático, e por seu intermédio Vincent foi a Bruxelas oito anos antes para se aprofundar nos estudos na Academia Royal de Artes, mas pouco permaneceu lá.
As desilusões amorosas foram, na visão de Theo, o desencadeante de toda uma vida problemática de Vincent. Não se fixava em lugar algum. Em Ethen, no ano de 1881, apaixonou-se pela sua prima Kee, mas o pedido de casamento ecoou com um sonoro "NUNCA" que jamais deixaria de ouvir em sua mente. Em Haia, no ano seguinte, a paixão da vez fora uma prostituta conhecida como Sien, cujo relacionamento parou na desaprovação do pai.
Nos idos de 1883, já morando em Nuenen dedicou-se mais à pintura e quando finalmente achava ter encontrado a paz emocional, sua amada Margot tentou o suicídio, após negativa de sua família em aceitar a união entre eles.
Com a morte do pai Theodorus em 1885, coube definitivamente ao filho homônimo cuidar de Vincent. Curiosamente, ao ver uma obra pintada por ele neste mesmo ano, "Aardappeleters" ("Os Camponeses Comendo Batatas") soube que seu irmão tinha que prosseguir no ramo artístico, ainda que a obra não tivera algum impacto no meio intelectual ou no mercado de artes. Isso o fez manter seu sustento e incentivo.
Na Antuérpia, onde viveu a partir da ausência do pai, Vincent trocava cartas com Theo e contava de sua admiração pela recém conhecida arte japonesa, com suas cores fortes e uso das linhas marcantes; além disso ficou fascinado por Peter Paul Rubens- famoso artista flamenco do século XVII- que conhecera nos museus locais. As Paisagens de sua fase final eram motivos de inspiração do jovem pintor.
Mas, na visão de Theodorus, mais que as desilusões amorosas foi o absinto que contribuiu sobremaneira com o atual estado do irmão. Certamente numa época em que embriagar-se era tão natural como respirar, a influência de Henri de Toulouse-Lautrec foi determinante no vício. Henri, um promissor pintor com 22 anos, sabidamente boêmio, proveniente da nobreza francesa e portador de uma doença desconhecida, tinha na baixa estatura sua marca pessoal. Sua constante presença em cabarés e bordéis o fez ser renegado pela família, o que só contribuiu com seu vício na chamada "la fée verte" ("a fada verde").
Com seus incríveis 68% de graduação alcoólica, o absinto era considerada a bebida dos artistas; a alucinação visual e surtos psicóticos da qual era acusada de causar somente a tornou mais popular no meio.
E Vincent claramente deteriorou-se após se tornar um consumidor voraz do destilado, ao ponto de sua obra modificar-se. Na visão de Theo, efeito da droga; para Vincent, influência da arte nipônica.
Curiosamente, Theo tornou-se um negociante de arte de sucesso, trabalhando para a Casa Goupil & Cie e expondo artistas como Claude Monet e Edgar Degas, até então desconhecidos do grande público; assume o papel de incentivador e formador cultural do irmão, apresentando-lhe esses e outros artistas, julgando que a pintura era a válvula de escape que poderia salvá-lo.
Sua maior frustração, no entanto, era ver Vincent definhar-se sem conseguir vender uma única obra. No início do corrente ano, decide mandar o irmão para Arles, no sul da França, onde o clima e a paisagem já o haviam fascinado. Sabia de seu desejo em montar uma comunidade de pintores, mas só conseguiu convencer Paul Gauguin, artista francês a quem conhecera um ano antes- e mesmo assim facilitado por já haver comprado várias obras dele.
Em 21 de fevereiro de 1888 Vincent Van Gogh, aos 34 anos, muda-se para a região da Provença na esperança de obter algum controle sobre sua vida bestial.
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Coincidentemente na mesma data, não muito longe dali, Jeanne Louise Calment completava 13 anos de idade em meio a uma discreta comemoração familiar e planos de um casório próspero.
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Victor Hugo encontra Van Gogh
RomanceO interesse acadêmico de um jovem basco pelo pensador francês Victor Hugo e pelo pintor holandês Van Gogh se transforma em admiração ao conhecer a história em vida na pele da centenária Jeanne Calment