Capítulo 8

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Paris, 11 de outubro de 1995

Xabier acordou muito disposto no modesto hotel em Montmartre, onde buscava inspiração para sua jornada. Decidiu caminhar pelo bairro sabendo da proximidade com locais históricos frequentados tanto por Victor Hugo como por Van Gogh, seu mais novo predileto.

Antes parou na Le Deux Moulins para um café. Curiosamente, a fama de mau humorado dos locais se desfez em duas situações quase que simultâneas. Primeiro, a garçonete do estabelecimento, que achou graça no sotaque do cliente e mostrou uma simpatia além da requerida pela profissão. Xabi corou prontamente com o assédio da garota de óculos azuis e prótese dentária rosa.

Logo a seguir, ao ajudar um senhor que não sabia o que fazer com sua sacola de compras, seu croissant e seu café, lamentando por não ter mais uma mão, recebeu um sorriso tão desdentado quanto simpático o convidando a sentar consigo.

- Merci meu jovem, certamente é estrangeiro, porque os garotos de Paris jamais fariam uma gentileza dessa!

- Sou espanhol, mais precisamente basco de Donostia. Não precisa agradecer, vi que o senhor estava em apuros, não me custou nada, tentou responder Xabier num francês mais custoso do que imaginava ter.

- Donostia, sim; San Sebástian para o resto do mundo, afirmou com uma real sinceridade. A conheço muito bem, meu caro. Trabalhei como caminhoneiro por muitos anos e rodei por toda a Espanha, inclusive sua região, muito bonita aliás, ainda que vocês com essa mania de independência percam um pouco a razão às vezes, não é mesmo?

Xabier concordou, envergonhado. Sabia que tinha que se acostumar com o rótulo de terrorista que muitos bascos sofriam desde que o grupo separatista ETA (Pátria Basca e Liberdade) iniciou ataques a militares e civis em toda a região há cerca de 30 anos. Achou desnecessário discutir seu ponto de vista sobre o assunto, ainda mais numa língua que não dominava tão bem.

- Mas se me permite perguntar, o que o garoto faz por aqui? Turismo por certo...

- Não senhor, estou de passagem, meu destino final é em Arles, ao sul.

- Sim, uma bela cidade, ainda mais nessa época do ano. Terra da nossa querida Jeanne Louise Calment! Que vontade de viver que tem a madame!

Xabier mudou a feição imediatamente com as palavras ditas pelo senhor francês.

- O senhor a conhece? Quero dizer, pessoalmente?

- Não meu jovem, mas a madame Jeanne é presença marcante em nosso imaginário coletivo. Sentimos orgulho de uma personagem tão presencial de nossa história, uma mulher que vive há mais de um século como testemunha ocular de nossas malezas e orgulhos.

Xabi espantou-se com as referências à Jung vinda de um caminhoneiro mas, como dizia seu pai, "nunca julgue uma pessoa sem antes conhecê-la" e ponderou se deveria contar-lhe o que realmente iria fazer na Provença. Achou que valia o risco; afinal, os acasos nunca são acasos (outra frase do senhor Joetxo) e bradou:

- E se eu dissesse ao senhor...calou-se aguardando o nome do simpático homem.

- Yves d'Évreux, tal qual o famoso entomólogo do século 16, uma das paixões de meu saudoso pai.

- Pois bem monsieur Yves... e se eu lhe contasse que estou indo ao encontro de madame Jeanne em Arles...

- Uh làlà merveilleux mon jeune, que maravilha, que abençoado eres! Espero que seu intento seja exitoso! Mas me perdoe a indiscrição, porque um rapaz como você se interessaria pela madame? Definitivamente os garotos bascos são diferentes dos franceses, zombou o senhor Yves.

Foi então que Xabier explicou detalhadamente sua descoberta, a relação com sua tese de faculdade e o desejo de alguma forma trazer à tona a vida de Victor Hugo através da vida da senhora Calment. Após seu discurso empolgado, notou Yves com lágrimas nos olhos, emocionado com a paixão do garoto por assuntos tão distantes da realidade atual.

- Continue garoto, não ligue pra esse velho, eu choro até com os discursos de Jean-Marie Le Pen e olha que eu odeio aquele direitista dégoûtant!

- Basicamente é isso senhor, só não mencionei que ela conheceu Van Gogh também e minha família adora suas obras. Pensei em incluí-lo de alguma forma na minha tese, mas teria que reformular tudo e foge um pouco de meu objetivo...

- Sim, Vincent Van Gogh, aquele que fez fama e fortuna post mortem, muito cruel isso. O garoto já leu "Lettres à son frère Theo" ("Cartas à Theo")? Magnífico livro, mostrando como a saúde mental do pintor fora se deteriorando com o tempo, enquanto seu irmão tentara de tudo para trazê-lo de volta à realidade. Inclusive, caso te interesse, há uma exposição em cartaz no Musée D'Orsay com várias obras dele, em comemoração do aniversário do local.

Enquanto o senhor Yves falava, Xabier fez-se jurar não esquecer de pesquisar sobre o sistema educacional na França, de tão admirado que estava com o nível cultural do recém-conhecido amigo. E tinha mais. Perguntou-lhe se ele sabia que Vincent havia morado naquele bairro, mais especificamente naquela rua. Fez que não, o que encheu o monsieur de orgulho pela oportunidade de contar um pouco mais da história do bairro em que nascera e vivia até então.

- Pois morou junto do irmão Theo, aqui perto, na casa número 54.

Sem conseguir disfarçar seu espanto, Xabi abriu um sorriso com a informação e, mais uma vez pensou no pai e em suas frases sobre as coincidências e o destino e tinha certeza agora de sua razão em dizê-las.

Agradeceu a conversa e a sugestão, dizendo que certamente iria ao museu antes de embarcar a Arles e que passaria na casa para uma visita, se fosse possível.

Despediu-se afetuosamente fazendo questão de pagar a conta, fato que arrancou outro sorriso metálico da garçonete, desta vez acompanhado de uma piscadela pseudo-sexy e de um número de telefone anotado num pedaço de guardanapo.

Xabier Izaguirre, mais corado que a Torre Eiffel iluminada, partiu pela rue Lepic em direção ao número 54 ansioso e agradecido por mais essa oportunidade obtida.

Victor Hugo encontra Van GoghOnde histórias criam vida. Descubra agora