Capítulo 11

61 2 1
                                    

Paris, 11 e 12 de outubro de 1995

Xabier Izaguirre acorda de súbito, no quarto que pertenceu a Vincent Van Gogh e leva um susto ao notar que Désirée o observava enquanto dormia, seminu. Tímido, dá um sorriso da forma mais sensual possível - embora soubesse o ridículo do ato - e a risada fácil da garota só comprovou sua tese. Começou a se imaginar na pele do pintor, acompanhado por alguma de suas paixões naquele ambiente rústico, mas logo lembrou que, em se tratando de mulheres, Van Gogh era ainda pior que ele.

O relógio da parede acusava 19:15h o que significava que dormira por cerca de 1 hora. Pensou no esforço que fizera horas atrás e justificou seu sono profundo.

Désirée serviu-lhe um café. – Sucre? pergunta, mostrando os cubos de açúcar, harmoniosamente distribuídos num belo açucareiro de prata, que havia sorrateiramente levado do Ladurée, seu emprego anterior.

- Não, obrigado. "O café deve ser negro como a noite, quente como o deserto e amargo como a vida", profetizou, ao tentar impressioná-la com o ditado árabe que havia aprendido com seu avô paterno, Iñaki. Parece que conseguiu, porque Désirée adorou a frase, retribuindo com um beijo e tomando sua xícara sem açúcar também.

Xabi lembrou-se que tinha programado uma visita ao museu e a pontos de interesse de Victor Hugo, mas deixaria para a manhã seguinte. Vendo a garota com outros olhos, não sabia como sair daquela situação nova em sua vida. Simplesmente ir embora? Convidá-la a ir junto? Na dúvida, arriscou a segunda opção  mas ouviu um sincero pedido de desculpas, pois entraria no turno da manhã novamente e não poderia faltar, já que o aluguel do apartamento tão badalado era muito caro.

Se despediram afetuosamente, sabendo que aquele belo e casual encontro faria parte da história dessa viagem, somente isso.

No dia seguinte Xabier acorda naquela cama, com o odor característico de quarto de hotel barato, disposto a aproveitar seu último dia em Paris, antes de embarcar a Arles. Em telefonema ao pai, soubera que a madame Jeanne já estava de volta à casa de repouso e, portanto, sua estadia na cidade luz já não fazia mais sentido. 

Pensou um roteiro básico: visitar algumas das casas nas quais Victor Hugo morou, em diferentes fases da vida, fechando o dia no Museu d'Orsay, sem esquecer de comprar sua passagem de trem para a cidade provençal. E assim o fez.

Iniciou seu tour  no número 6 da Place des Vosges, onde o escritor viveu de 1832 a 1848; transformado em museu em 1903 e conhecida como Maison de Victor Hugo, é referência para pesquisadores e admiradores de sua vida e obra. Traz um resumo de toda sua trajetória política, cultural e pessoal,  com reconstituições dos ambientes em que viveu e escreveu diversas de suas obras,  além de ter sido palco de encontros entre políticos e intelectuais da época. No terceiro andar da antiga Place Royale porém, foi onde Xabier encontrou uma biblioteca que une acervos históricos para pesquisa, da qual já ouvira falar, mas não imaginava a magnitude. Obras originais, manuscritos, fotografias, edições completas das obras em francês, cartas, discursos, memórias, desenhos. Por um momento Xabi pensou se não seria melhor permanecer ali e aprofundar suas pesquisas, ao invés de arriscar uma entrevista incerta com a centenária senhora.

Enquanto se deliciava com as mais de 14.000 obras expostas e à disposição dos visitantes, deparou-se com algo que lhe atraiu a atenção. Os desenhos feitos por ele, considerado um bom ilustrador à época; Xabier imaginou o que Vincent acharia daqueles esboços tão sombrios, se comparados às cores e pinceladas das obras do holandês. Conjecturou se haveria ali algo que juntasse os dois personagens, algum texto, alguma carta que os pudesse unir de alguma forma. "Praticamente impossível", pensou, uma vez que a fama do pintor ainda era ínfima à época em que os dois coexistiram; talvez Victor Hugo já tivesse ouvido falar em  Van Gogh como um  homem das artes que era, mas... conhecê-lo? Improvável. O oposto certamente ocorrera, uma vez que Vincent tentou ser orador em Londres, logo após sair de Amsterdã e antes de dedicar-se à pintura. Um fracassado orador, já que ninguém lhe dava atenção, mesmo sendo um ávido leitor de Dickens, Shakespeare e do próprio Victor Hugo.

Passou então a analisar uma relíquia. A edição manuscrita de Les Misérables, que estava aberta para exposição numa página, algo amarelada, onde leu com certa dificuldade:

"Ele estava lá fora sozinho consigo mesmo, sereno, tranquilo, contemplando, comparando a serenidade do seu coração com a serenidade dos céus, movido na escuridão pelos esplendores visíveis das constelações e do esplendor invisível de Deus, abrindo sua alma para os pensamentos que caem do desconhecido. Em tais momentos, oferecendo o seu coração, como as flores da noite emitem seu perfume, ele acendeu como uma lâmpada no centro da noite estrelada, ampliando em êxtase em meio à irradiação universal da criação, talvez ele não poderia ter dito o que estava acontecendo em sua própria mente; ele sentiu algo flutuando para longe dele, e algo a descer sobre ele, as trocas misteriosas da alma com o universo."


Quando Xabier Izaguirre leu "noite estrelada", lembrou-se imediatamente da obra homônima de Van Gogh e, tal qual no texto, sentiu algo flutuando e descendo sobre ele, como uma inspiração. Um sentimento de urgência se abateu sobre ele, precisava rever tal obra imediatamente. Lembrou do conselho do seu mais novo amigo Yves, e partiu de pronto para o 7ºarrondissement em direção ao Museu d'Dorsay.  

Victor Hugo encontra Van GoghOnde histórias criam vida. Descubra agora