Capítulo 9

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Montmartre, Paris- 11 de outubro de 1995

Os 260 metros que separavam os números 15 do 54 da rua Lepic foram percorridos de maneira atípica por Xabier Izaguirre. Não tinha se dado conta, mas pela primeira vez em sua vida  se sentia livre. Não que vivesse numa prisão em sua cidade natal, ao contrário, sempre julgou-se relativamente independente. Seu pai, talvez pelas obrigações como gerente do hotel, o ensinou a cuidar de suas coisas e correr atrás de suas metas. Sua mãe, mais protecionista, dava o contraponto que ele julgava ideal. Mas agora era diferente. Sabia que seriam poucos dias, mas dali nasceria um novo homem, tudo o que acontecesse naquele outono seria único e traria como consequência um novo traço em seu caráter.

Andando naquela rua estreita sobre pedras teve a sensação de levitar, como se estivesse acima de seu corpo; sentira algo semelhante quando criança e sempre tivera medo daquela sorginkeria (bruxaria) como definia seu pai. Mas, dessa vez, o sentimento era bom, de leveza, como se tudo ao seu redor fosse etéreo.

Voltou à Terra com o som da buzina e dos impropérios impublicáveis de uma Vespa prata e seu piloto- com o obrigatório cigarro e o não obrigatório capacete. Foi um aviso, pensou, já que ao se dar conta, estava no local desejado. Com o número 54 em destaque, aquele típico prédio bege de quatro andares, com janelas brancas e suportes para plantas em sua base, exibia orgulhosamente uma placa ao lado da imponente porta azul: "Dans cette Maison Vincent Van Gogh a vécu chez son frere Théo de 1886 à 1888" (Nesta casa viveu Vincent Van Gogh com seu irmão Theo entre 1886 a 1888). Xabi abriu um largo sorriso que amiudou-se repentinamente ao lembrar que não sabia em qual andar e em qual apartamento exatamente deveria procurar. Ao que tudo indicava era um residencial comum a todos os outros vizinhos e, aquela placa, habitual em Paris, indicava onde famosos viveram no passado sem que necessariamente o local se tornasse um museu ou algo do gênero.

- Que inferno! - bradou o garoto, diante da dificuldade imposta. Talvez a liberdade não fosse tão boa assim; em outra situação certamente seu pai o salvaria, com sua fleuma gerencial, achando o local com rapidez e elegância. Mas estava só. Planejou ficar ao lado da porta aguardando algum morador sair ou chegar e dependendo da aparência ou simpatia, perguntar onde ficaria o apartamento procurado. Procurou um interfone, mas não havia nenhum do lado de fora; possivelmente haveria uma antessala com tal dispositivo, então abriu a grande porta azul sem dificuldade e, após a cegueira transitória causada pela escuridão, visualizou o ambiente que imaginava: um pequeno corredor com duas cadeiras e um tapete -que deveria ser da época de Vincent, de tão manchado- e a procurada caixa de alumínio com os números dos apartamentos e os respectivos sobrenomes dos moradores.

Tinha de tudo ali: Adlon no 11, LaRue no 44, Lavigne no 32, Sartre no 23. Quando decidiu partir para o sorteio puro e simples, percebeu a porta se abrindo atrás dele e, para sua surpresa, entra através dela a garçonete que o havia seduzido há pouco no Le Deux Moulin. Xabier deu um pulo para trás como se estivesse fazendo algo errado, fato que arrancou sorrisos da jovem.

- Chéri que faites-vous ici? O que faz aqui, querido? À minha procura? Perguntou, seguida de uma gargalhada deliciosamente sedutora.

- Não exatamente, mademoiselle - timidamente respondeu, já irritado de tanto ficar corado naquela manhã. - Estou atrás da casa onde viveu Van Gogh, mas não tenho o endereço exato.

- Pois pode se considerar um homem de sorte! Venha comigo.

Xabi não conteve a empolgação e seguiu a garota, que sequer sabia o nome, mas que já o fizera transpirar mais que todas as mulheres com as quais tinha tido contato. Perguntou-lhe o nome, enquanto subiam os degraus rumo ao apartamento 43. 

- Désirée Dechamps, muito prazer.

- Xabier Izaguirre, encantado. Se cumprimentaram na esquina da escada entre o segundo e o terceiro andares, com um beijo desajeitado no rosto.

Sem entender o que estava acontecendo, subiu sem falar mais nada e, enquanto Désirée procurava a chave, ele lembrou que seu nome significa "desejo"... e agradeceu a penumbra local para disfarçar o calor que sentira e que certamente estava estampado em sua face rosada.

- Voilà! Chegamos! Apartamento 43 da Rua Lepic 54, casa do famoso Vincent Van Gogh!

Xabier não acreditou no que estava vivendo. Com a expressão de surpresa e gratidão, não sabia por onde começar. Désirée percebeu a situação e começou:

- Moro aqui há 2 anos, portanto não espere grandes informações. Posso lhe dizer que é uma casa como outra qualquer, com seus problemas de encanamento e vizinhos asquerosos. O antigo locatário saiu irritado pelas visitas constantes de turistas e curiosos pela placa da porta principal. Tentaram até retirá-la mas parece que há uma lei que impede isso. Eu não me incomodo, ainda que nesse período em que vivo aqui, pouca gente veio "me visitar".

Xabier concordou com um sorriso tímido e atreveu-se a conhecer o apartamento, tentando  descobrir algo que acrescentasse informações para argumentar com madame Jeanne, dias após. Nos dois quartos amplos, Désirée explica que o da janela ao norte era o que pertencia ao pintor. A réplica de um quadro em que pintara ali, "Vue des Toits", na parede lateral, mostrava a visão que ele tinha de Paris do século 19 daquela ventana. Nada além disso, apenas a sensação que temos ao visitar um lugar frequentado por alguém famoso, um sentimento de estranheza e contentamento. A garota espevitada o seguia com o olhar, curiosa com o interesse do jovem de  sotaque estranho no pintor holandês. Ousou perguntar o motivo de sua visita, temendo um discurso careta de um nerd qualquer, mas surpreendeu-se com as explicações do rapaz, associando a pesquisa acadêmica sobre Victor Hugo com a paixão pelos quadros de Van Gogh. Sua aparente timidez transformou-se em empolgação em relatar o porquê de estar em Paris e de sua próxima parada em Arles. Riu ao imaginá-lo conversando com Jeanne Calment, ao se lembrar dos programas humorísticos locais que invariavelmente utilizavam sua surdez como pauta para piadas de gosto duvidoso.

Após duas horas de muita conversa e algumas taças de vinho, Xabier e Désirée desfrutaram a tarde com a luxúria que um apartamento a duas quadras do Le Moulin Rouge pode oferecer. Xabier e sua inexperiência amorosa agradeceram aos deuses.

Victor Hugo encontra Van GoghOnde histórias criam vida. Descubra agora