Capítulo 12

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              Arles, fevereiro/março de 1888


Jeanne Calment recebera os cumprimentos dos familiares sem a empolgação de anos anteriores. Aos 13, já era considerada adulta e festas com bexigas de tripa ou bolos não soariam bem para quem tinha obrigações com a mãe nos afazeres domésticos . Porém, seu zeloso pai Nicolas, prometera uma nova visita a Paris no próximo ano, para que conhecessem a tão falada torre em construção na Capital, para a Exposição Universal, a ser realizada em 1889, o que a fez sorrir e pular como uma criança novamente. Voltar à cidade onde Victor Hugo viveu boa parte de sua vida, quase três anos após sua morte, seria motivo de muita alegria.

  A felicidade da data emudeceu quando o assunto da possível boda com um ilustre comerciante local veio à tona. Jeanne ainda não se sentia pronta para a união e esperava conseguir persuadir seu pai, mesmo contra as tradições da época. Não gostava do jeito do rapaz, de nome Richard, com um topete proporcional à sua empáfia. Sugeriu ao pai que o presente de aniversário mais valioso seria a recusa dos dotes oferecidos pela família do pretendente. Jeanne sabia da influência que exercia sobre o progenitor e, com uma sinceridade incomum para a ocasião, disse que não achava certo que terceiros determinassem sua felicidade. Para espanto de todos, seu pai concordou e prometeu encerrar as negociações matrimoniais imediatamente.

 O que ninguém sabia era que a garota demonstrava interesse em seu primo, Fernand Nicolas Calment. Timidamente, começava a flertar com o rapaz, também proprietário da uma loja na cidade. Sabia que sua boa condição social, aliada à boa reputação que tinha com o pai, seriam determinantes numa futura aceitação familiar.

*

Vincent Van Gogh esperava uma Arles ensolarada mas encontrou a cidade em meio a névoas e resquícios de uma nevasca de inverno, não tão comum no sul da França. Decidira sair de Paris, dentre outros motivos, para fugir do clima gélido que ofuscava sua inspiração por pinceladas fortes e coloridas. A solidão inicial transformou-se em combustível para o período mais criativo e produtivo de toda sua vida. A primeira obra concluída na cidade justamente fazia alusão ao clima inesperado encontrado na região: "Paisagem com Neve", mostra um senhor com chapéu preto caminhando com seu cachorro, num cenário onde o branco da neve predomina sobre as cores do campo. Aos poucos foi se afeiçoando pela cidade e produzindo quadros com cenas e habitantes locais, ainda que a recepção à sua conflituosa personalidade não fora a que esperava.

Sua presença nas ruas e campos era uma constante com a qual os cidadãos passaram a se habituar. Aquele jovem ruivo, rude, de poucas palavras e andar característico, aos poucos se tornou objeto de comentários entre os moradores. Sua rotineira presença em bares, acompanhada pela solidão do absinto, desagradava aos comerciantes que o consideravam simplesmente um louco. A estética de seus quadros não produzia simpatia e seu comportamento autodestrutivo certamente não contribuía em nada para sua afirmação como artista.

Vincent aguardava a chegada de Paul Gauguin para a realização do sonho da comunidade dos artistas. Seu irmão Theo conseguira convencer o pintor que o retiro seria uma oportunidade para ambos, ainda que o conceito de "comunidade" fora esvaziado pela recusa de outros pintores. A herança deixada por um tio próximo possibilitou o financiamento do projeto de Van Gogh e Gauguin.

A longa espera da chegada do amigo foi regada a destilados e sofrimento, somente aliviado pelos encontros casuais com a família Roulin, provavelmente tudo o que ele precisava naquele momento: pessoas com as quais pudesse conviver e que o entendiam. Armand, o filho do casal Roulin, tornou-se um amigo e o patriarca, o carteiro Sr. Joseph, um segundo pai. Seu agradecimento pelo convívio harmonioso foi, como não poderia deixar de ser, em forma de pintura, com quadros retratando cada um dos membros da família.

*

  Numa tarde ensolarada, Armand Roulin leva um ébrio Van Gogh ao armarinho local à procura de tecidos que o pintor gostaria de usar em suas obras. Lá chegando, encontra o proprietário arrumando o estoque das peças em companhia de sua filha adolescente, rindo do cliente que acabara de sair, ao confundir a porta com a vidraça. Armand, que era amigo da família, acena cordialmente ao dono do estabelecimento e apresenta o colega pintor que diz algo ofensivo e sem nexo, o que deixou a jovem constrangida e o pai raivoso. 

 - Me perdoe Monsieur Nicolas, meu amigo Vincent é novo por aqui, não se habituou aos costumes locais de bom comportamento e cordialidade, disse Armand enquanto chutava a canela do colega, em tom de desaprovação.

  - Já conheço a fama do pintor na cidade. E te garanto que não é muito boa. O que desejam?, rebateu Nicolas.

  - Apenas alguns tecidos em algodão, para pintura, s'il vous plaît, tentando consertar a má impressão inicial. Enquanto falava, Vincent não tirava os olhos da jovem, que tentava disfarçar o desconforto do momento, organizando alguns rolos de tecido aleatoriamente.

            Tudo para Van Gogh se transformava em arte, como se sua visão fosse projetada para transformar em pinceladas tudo o que estivesse em seu campo visual; assim via na garota, com traços fortes e um tanto rudes, uma tela em potencial.

- Me permita perguntar o nome da mademoiselle?

 - Não permito, bradou Nicolas,  já incomodado com a presença dos rapazes. Em seguida, sem se dar conta, revelou o nome da filha ao pedir que ela fosse à sala anexa para providenciar o tecido solicitado.

 - Jeanne, muito prazer em conhecê-la, Vincent Van Gogh, ao seu dispor. Farei um retrato seu e em breve te enviarei, como agradecimento pela agradável recepção, retrucou, com a ironia potencializada pelos efeitos do absinto.

  Armand e Vincent saem enxotados da loja, com a encomenda sob o braço do segundo, em meio a gritos do pai de Jeanne Calment, para que nunca mais voltassem ao estabelecimento.

Victor Hugo encontra Van GoghOnde histórias criam vida. Descubra agora