1 de dezembro

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Gostava de saber quem inventou que 12 era o número perfeito e o 13 o do azar. Como a perfeição se transformaria assim tão rápido na maldição?
O que interessa é o 12.
12, o último mês do ano, dezembro, que abria portas cintilantes para o dia de Natal.

Annie estava encantada. Finalmente, o Mês Feliz. O Mês que unia, finalmente, toda a familia de uma vez. Bom, não todo o mês. Mas um dia, aquele dia especial. Tinha já de se preparar.

Mas, como, se seus dedos a limitavam a contar apenas até 10? Lembrou-se do Calendário. Não daqueles desinteressantes, com centenas de números espalhados numa ordem bizarra que só os adultos se dão ao trabalho de perceber. O Calendário, que contava até dia 24 de dezembro, com uma imagem de um velhinho vestido de vermelho, vermelho como o amor, e com uma barba branca, branca como a paz, que oferecia um chocolate por dia à Annie impaciente. Ela sabia pelo ano passado. E ainda melhor sabia que seria assim para sempre, não era ela quem se renderia aos calendarios descoloridos que só os adultos conseguem compreender.

Lembrou-se que o Calendário habitava já há um mês na prateleira, na de cima, bem lá no topo, na cozinha. Pôs-se em pontas dos pés, levantou os braços, esticou-se até o corpo lhe doer, mas estava ainda muito longe do seu alcance.
Procorou, então, quem lá pudesse chegar.

— Mano! - rompera no quarto do irmão mais velho.

— Que queres agora? Tenho de estudar. Vá, sai. - respondera ele sem sequer tirar os olhos dos inúmeros livros e cadernos em cima da sua secretária.

— Mas, mano! O Calendário!

— Calendário? É dia 1 de dezembro. Pudias ter visto no calendário que está pendurado na cozinha.

— Não o consigo compreender.

— Não interessa. Vá, vai.

— Mas... Não é esse calendário...

— Annie, tenho de estudar. Já te avisei. Vai brincar com as bonecas, anda.

Annie desistira. Às vezes o Mano era assim, parecia ser atraído pelos livros como que por um íman para humanos, e queixava-se constantemente dos testes que iria ter na semana seguinte.

Voltou à prateleira grande, esticou o corpo novamente. Continuava sem conseguir lá chegar.

— Mamã - entrou na sala.

— Que é, meu amor?

— Não chego ao Calendário.

— Qual calendário?

— O de Natal.

— Ah! Já vou, já vou. Deixa-me acabar este filme antes, por favor. O dia de ontem correu-me muito mal, nem tempo tive para o pequeno almoço, e depois cheguei ao trabalho atrasada, e depois...

Normalmente, quando a Mamã se começava a queixar do trabalho, da vida de adulto, de chegar a casa e ainda ter de preparar um monte de coisas e de aquele ser o seu único momento de descanço era sinal de que na verdade não a ia ajudar. Annie deixou-a ver o filme em paz, então.

Voltou à prateleira, mas continuava demasiado baixa para lá chegar.
Entrou, então, no escritório do pai.

— Papá, não chego...

Um toque de telemóvel quebrara-lhe a frase. O pai fez-lhe sinal com a mão para que esperasse e atendeu o telefone.

— Então, já conseguiram resolver o problema? Eu já estive a falar com a senhora e... -começou a falar durante eternidades sobre qualquer coisa do trabalho.

Annie já sabia como era. Aquele pequeno retângulo que nos permitia comunicar com pessoas que não estão ao nosso lado estava sempre a fazer trim trim, sempre a receber chamadas, sempre a desviar a atenção do seu pai.

Passou em frente da porta da cozinha, mas nem se dignara a entrar. Já sabia que a prateleira continuaria longe, longe, lá no alto, então foi para o seu quarto brincar. Parecia estar quase a chorar, e uma lágrima marota fugiu e escorregou-lhe rosto a baixo. Era apenas a primeira de muitas outras que deixou cair.

Então lembrou-se da avó. A avó estava doente, velhinha, encontrava-se a dormir no quarto ao seu lado. Pela sua cabeça passaram as palavras dos seus pais:

"Não incomodes a avó, ela precisa de descansar"

Mas aquilo era uma emergência, era mesmo. Entrou no quarto e deitou-se a lado da avó, sem a acordar, mas o barulho do choro lá chegou aos seus ouvidos e abriu os olhos.

— O que aconteceu, minha linda? Não chores. Conta lá o que aconteceu.

— É o calendário... es-está muito alto... e ninguém o vai buscar... Nã-não entendem...

— Calma, calma. Nem sabia que já estavamos em dezembro. Não te preocupes, vou lá buscá-lo.

A avó pouco andava, custava-lhe muito, já. Mas pela sua neta lá se levantou, devagarinho, ignorando a dor, apoiou-se com a ajuda das muletas e lá foi à cozinha. Seguindo as indicações de Annie, tentou chegar até ele. Custou, mas lá chegou. Deu- o para as mãos da neta e sorriu.

Voltaram para o quarto, mas a avó tinha pegado nalgo misterioso no caminho. Deitaram-se em cima da cama. Annie abriu a janelinha com o número 1 do calendário e retirou de lá um pequeno chocolate. Partiu-o ao meio e ofereceu metade à avó.

— Obrigado, mas come tu. Já estou muito feliz por ti.

Annie encolheu os ombros e comeu. Depois, lembrou-se.

— Avó, que é isso que trouxeste?

— Um livro de contos de Natal. Deram-mo quando tinha a tua idade.

— Sabias ler?

— Não, ainda não.

— Então como lias?

— A minha avó lia-mas por mim.

— Então também mas podes ler, por favor?

— Claro - sorriu e pegou nos óculos de ler que estavam em cima da mesinha cabeceira.

— Era véspera de Natal...

Calendário de NatalOnde histórias criam vida. Descubra agora