3.Ceticismo Parte II

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A caminhada até a escola era breve, apenas algumas quadras e uma pequena subida pelas ruas da Cidade Cinza. No caminho ele avistou uma viatura de polícia —, dois carros sofreram um acidente que possivelmente foi a combinação de álcool e volante. Os veículos tinham um leve amassado, em nada destacava-se de outros acidentes a não ser pelo fato do corpo de um dos motoristas estar no chão morto.

Morto, não pelo acidente em si, mas pelo tiro que o homem do outro carro desferiu, provavelmente em uma daqueles milhares de discussões que se tornavam rotina na Cidade Cinza.

A Cidade estava insana e qualquer simples discussão, entre duas pessoas virava uma guerra entre seis, sete, oito indivíduos enfurecidos. O desfecho era quase sempre o mesmo: mortos e feridos. Era uma cidade doente e as pessoas se tornavam um dos sintomas.

Por mais que nos últimos dias a violência tivesse aumentado, Miguel simplesmente tentava ignorar, afinal ele considerava duas coisas: uma era que por mais que a violência estivesse grande as suas contas ainda eram maiores. A segunda coisa era aquela sensação de que quanto mais se reclama sobre a violência mais violento a pessoa vai ficar, e com uma irmã e um avô doente em casa a última coisa que quereria é parecer ou ser violento.

Passou por aquela cena, de carros amassados e violência, sem se juntar ao pequeno aglomerado de pessoas que aglutinava-se ao redor do atirador. O homem gritava algo sobre ser filho de um alguém importante — como se aquilo fosse assustar os policiais diante de uma cena de assassinato a sangue frio em plena luz do dia.

Chegou na escola, o Instituto Educacional Demétrio, sem demonstrar nem uma gota de surpresa na face pelo acidente envolvendo os motoristas. Estava anestesiado pela violência diária, é só mais um dia como qualquer outro na Cidade Cinza, ele pensou.

Entrou naquele edifício horizontal, branco de dois andares. A fachada, tomada por uma geometria definida em traçados verticais, davam um ar de grandiosidade a edificação. Os ornamentos da fachada, dois pequenos leões perfeitamente alinhados em cada lado, eram estilisticamente detalhados. Levemente atrasado, como de costume, dirigiu-se ao grande corredor onde as salas se dispunham alinhadas.

Em sala de aula ele assistia atentamente professor, seguido de professor, entrar e despejar uma série de conteúdos que não eram novidades. Em parte por ser um aluno repetente, e também por ser uma metodologia de ensino ultrapassada: Sentar, encher o quadro, entediar os alunos, dar uma prova em que a dificuldade não importa pois eles se formariam independentemente da vontade do professor e ir embora.

Seus pensamentos estavam voltados para o trabalho que deixara incompleto no dia anterior —, madeira para cortar na máquina e recibos de fornecedores. Tudo foi deixado de lado quando ele saiu mais cedo para não perder o horário dos remédios da irmã —, era isso ou confiar na memória defasada do avô. Hoje ele não escaparia de uma bronca de seu chefe, além de uma boa e velha hora extra não remunerada. Embora, qualquer hora extra (remunerada ou não), fosse como um tronco de chibatadas modelo 2.0 para um rapaz jovem que não tinha tempo sequer de sair com a namorada, com os amigos ou parentes.

Essas ideias corriam pelos pensamentos dele como uma chuva fina e constante enquanto contemplava a janela ao seu lado. Era de frente para a rua, na parte de trás da escola, um beco sujo frequentado por moleques de rua, velhos e um ou dois viciados que dormiam durante o dia. Era a visão de sempre, com uma exceção: um garoto sentado de cócoras próximo ao meio-fio.

O garoto não se movia um centímetro, faziam horas, seu olhar compenetrado rumava ao horizonte vazio como quem contempla a chegada de uma tempestade. Sua concentração, ao olhar para o nada, era semelhante a uma esposa de marinheiro que aguarda o esposo no píer, após uma tempestade, sem saber se está vivo ou morto.

Miguel olhava aquele maltrapilho jovem com curiosidade. Era tão branco que nem o sol de meio dia bronzearia sua pele, seus olhos esguios eram azuis como o mar, e seu cabelo preto como piche. Era uma combinação maltratada de algum filho de ator famoso e turista europeu — não combinava com o aspecto vivido e forte de quem sobreviveria a uma guerra, comum àqueles garotos de rua que perambulavam na região. Não era um sobrevivente, mas tinha os olhos decididos de um com toda certeza.

Sua curiosidade por aquele garoto foi cortada por uma voz:

—Miguel! Olá, tá me ouvindo? — Indagou seu professor de física, Nelson.

Nelson era um idealista nato e acreditava no poder da educação como única esperança. Não era a esperança de que seus alunos tivessem ótimos empregos e muito dinheiro, era mais um sonho onde seus pupilos pudessem olhar o mundo com inquietação e questionamento, ou seja, que fossem o tipo de adulto que não compartilha qualquer porcaria que viu na internet como fato consumado, daqueles que leem duas ou três linhas sobre um determinado assunto e já consideram-se experts sobre aquilo.

— Foi mal...— Respondeu Miguel, com extrema tranquilidade, olhando para o professor.

O olho treinado, por mais de uma década educando todo o tipo de aluno, bom ou péssimo, dera-lhe a capacidade de avaliar qualquer um em sua aula. E quando fitava um aluno de vinte anos em uma sala cheia de garotos e garotas de dezessete — alguns com dezoito —, e ainda mais com aquela cara de total desinteresse, tudo dava a ele certeza de que Miguel era a maçã podre da macieira. Aquele tipo de maçã que estraga tudo, que estraga sua aula e o futuro de seus alunos.

— Já que eu estou entediando o senhor que tal me ajudar a terminar esse exercício? Prometo que depois não o atrapalho mais. — Desafiou, com um sorriso sarcástico no rosto.

Nesse momento um aluno educado tem duas alternativas: ele pode pedir desculpas e dizer que não sabe resolver ou não dizer nada e esperar o professor concluir algo como: foi o que eu pensei.

— Eu não posso te ajudar a resolver. — Disse Miguel.

— E por que não? — Disse franzindo a testa.

— Você errou a fórmula no início da resolução e a resposta vai sair errada. — Miguel não era um aluno educado.

Bastou uma rápida olhada para o quadro e Nelson concluiu:

— Olha só, errei mesmo... Que merda — todos os alunos riram com o xingamento acidental do professor.

Enquanto o professor olhava o quadro novamente — sem entender como escreveu errado um exercício que ele preenchera quatorze vezes em sala de aula, só nas turmas daquele mês. — O sinal tocou, era o fim da aula.

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