A Garota das Chuteiras de Ouro

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~Visão de Júlia~

Existem poucas coisas na minha vida que lembro com muita clareza de detalhes e assistir minha mãe agonizar até morrer é uma delas. Mesmo com o melhor acompanhamento psicológico que meus avós poderiam pagar e com todo amor deles, eu ainda fiquei por muitos anos como uma pessoa sem voz. 

Não costumava falar demais, não queria chamar atenção, raramente respondia direito quando alguém falava comigo e quando começaram as perseguições na escola, minha forma de me defender foi sendo ainda mais agressiva que as pessoas que tentavam me humilhar. 

Se alguém puxava meu cabelo, eu puxava o da pessoa de volta e cortava, se alguém gritava comigo, eu gritava e batia. Isso foi se tornando um ciclo vicioso de violência, reação e mais violência como resposta, até que meus avós começaram a tentar mesclar as sessões de terapia com algo que me fizesse gastar energia.

Tentei tocar violão, pintar e até balé, mas apenas o futebol foi capaz de me fazer ter vontade de vencer meu trauma e chutar aquela bola de neve que tinha se formado para longe. A partir do momento que entrei no futebol, se iniciou um longo período de autoconhecimento e aprendizagem.

Por mais que eu sei que o sonho de muitos seja ser alguém que rebate toda e qualquer intriga, meu jeito não era exatamente esse. Percebi que sempre espantava toda e qualquer pessoa que tentasse se aproximar, porque eu não queria gostar de mais ninguém. Na minha cabeça eu já iria sofrer demais quando meus avós partissem e eu não tivesse mais ninguém, então o melhor a se fazer definitivamente não era expandir meu contato social.

Por outro lado, enquanto estava em campo, sentia como se minha alma tomasse conta de cada movimento e eu não precisasse pensar em nada conscientemente, era como uma forte intuição me comandando o tempo inteiro e isso tudo pode parecer bobagem, mas pra quem pensa demais, não pensar em nada é uma dádiva. 

Cresci dentro do campo. Fui de uma principiante para uma atleta de alto rendimento, mas nesse mesmo período aprendi a simplesmente fechar minha boca e abaixar minha cabeça – aos poucos, por me tornar uma pessoa mais passiva, passei a simplesmente nunca reagir. Pra muitas pessoas o esporte pode ser apenas uma válvula de escape, mas pra mim, infelizmente, pode ter sido da forma como eu queria, mas não como precisava. 

Ao me mudar para minha escola atual, percebi de cara que não seria totalmente feliz. Me arrancaram o futebol estudantil com tanta violência que fiquei realmente chateada ao perceber que estava amarrada ao inútil, sem poder fazer nada. No entanto, nessa mesma época algo mudou, como um estalo.

Isso aconteceu quando Arthur se sentou ao meu lado pela primeira vez. Olhei pra ele e ele apenas sorriu, como quem se apresentava sem dizer uma palavra sequer e o nosso contato tímido puramente "profissional" se estendeu por bastante tempo. Eu sabia que ele fazia trabalhos comigo, porque tinha completa convicção e consciência que se fizesse com seu amigo capitão do time, ele teria, na verdade, que fazer sozinho – e isso não me incomodava nem um pouco, afinal, estar sozinho o tempo inteiro cansa.

Aos poucos começamos a nos aproximar e por incrível que pareça, cada vez que conversava com Arthur eu percebia que por mais que quem visse de fora sempre percebesse que Antônio estava com ele, aparentemente ninguém realmente o enxergava, nem mesmo seu próprio "amigo".

– Bom dia. – o cumprimento em um dia chuvoso aleatório e só depois de alguns segundos percebo que ele estava todo enxarcado. 

– Bom dia. – responde, sério. 

Assim como eu, Arthur também entrava pra sala assim que os portões se abriam, porque era como se ele procurasse refúgio, depois de ter que conviver tanto com gente que não tinha absolutamente nenhum tipo de coisa a agregar pra ele.  

HURRICANE - (ROMANCE GAY)Onde histórias criam vida. Descubra agora