A menininha

185 19 11
                                    

Era de tarde. Estive internada em um hospital por alguns dias e só agora havia sido liberada. Meu marido não pôde me buscar. Estava no trabalho e não tinha como ser dispensado, segundo ele. Eu nem me importei... Não estamos bem juntos mesmo... Eu apenas me importei com o fato de eu estar faminta, esperando um ônibus que nunca vinha, com uma espécie de mala super pesada que me agoniava mais ainda.

Meia hora em pé para que o ônibus resolvesse passar. Sinalizei. Ele logo parou. Subi. Estava vazio, como de costume às 14 e meia, 15 da tarde. Ainda mais em um dia cinza, nublado, sem uma luz do sol.

Resolvi sentar em uma das penúltimas cadeiras daquele ônibus. A janela trazia um ar gélido, refrescante para quem havia esperado mais que o normal por um ônibus. Daqui mais meia hora eu conseguiria chegar em casa, mas pelo menos eu estava sentada, descansando os braços e pernas cansados e sentindo a brisa. Estava pensativa, pensando no que havia acontecido comigo nos últimos dias, o que me fez ficar muito mais reflexiva.

Algumas paradas depois da minha, mais pessoas adentram no veículo. Logo avisto uma senhora com uma menininha. A criança aparentava ter uns três, quatro anos, enquanto a senhora, uns 45, 50, por já ter cabelos bem grisalhos. Mas o que importa é que elas entraram e sentaram nas últimas cadeiras, após aquela que eu estava. Se teve algum problema essa atitude? De início, nenhuma.

Com exceção se aquela criança não atrapalhasse o meu sossego que há dias eu não tinha, gafe essa que ela conseguiu! A garota falava alto demais... Chega o cérebro doía! Fiquei sabendo que ela iria ao shopping com a avó, por isso tanta alegria... Nossa! Alegria fora de parte, isso sim! A garota cantava uma música insuportável, falando de uma tal de dona Aranha e não sei quem mais... Aquela voz fina me irritava, adentrava como um eco em meus ouvidos de uma tal maneira que dava vontade de tirá-la daquele ônibus!...

Aguentei até onde pude! Eu juro que aguentei! Quando não mais, virei e gritei, pedindo que ela calasse a boca. Mas pedi com todas as forças, tanto que a menina murchou, quase sumiu... Bem rude para mim, logo com uma criança, mas que se dane: eu estava muito incomodada, transtornada, na verdade!... Os olhos da garotinha encheram de lágrimas, sua alegria acabou. Os vizinhos do lado me olharam com a cara mais feia do mundo... Como eles não conseguiram ficar irritados? Não sei. Só sei que, depois da minha atitude, a avó da garotinha me pediu desculpas, dizendo que elas não incomodariam mais... Até ela cantara a maldita música! Mulher ridícula!

Não demorou muito para as duas descerem no shopping. A garota, antes de descer, olhou-me com uma cara de choro... Eu certamente não dei a mínima! Tinha que chorar mesmo para aprender a se comportar... Menina malvada!

Duas ou três paradas foi a minha vez de descer. Levantei. Nesse momento, todos me olhavam, julgando-me pela tal atitude... Eu apenas desci.

Desci. Desci e chorei muito. Por que eu fiz aquilo? Porque eu perdi meu bebê, minha futura menina alguns dias atrás? O que eu fiz? Eu não quero saber de filho de ninguém, eu só quero a minha filha de volta! Meu feto, meu afeto... Aquela criança me fazia um ser matriarcal, um ser afetivo, um ser amado... Ele só queria ser pai, só queria ser feliz e eu, apenas fazê-lo feliz!...

Por quê? Estava sem entender o porquê daquilo tudo na minha vida. Perdi minha filha, estava eu tão feliz... Escolhi não me despedir da minha menininha, pois eu sofreria por vê-la sem vida, mas estou sofrendo da mesma forma que sofreria se fosse vê-la...  Meu casamento se acabou com a morte da minha princesinha!... Tenho tantos problemas rondando a minha mente que me fiz maltratar uma pobre criança... Quão egoísta eu fui! Como consertar tudo aquilo? Tempo perdido.

Continuo chorando, quase gritando, enquanto um chuvisco começa a despencar. A água me acalma um pouco, como se ela purificasse a minha alma.

Não demorou muito e aquele sol de Janeiro voltou a raiar. Tanto tempo sem olhar aquele sol... Dias pareciam anos. Levantei a cabeça, olhei para cima, olhei para o céu: estava azulado, com tons amarelados e rosados. Lembrei-me da minha filha. Tenho a certeza que ela está olhando para a mamãe lá de cima.

RetratosOnde histórias criam vida. Descubra agora