Trauma

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     Eu sei. O quanto era ridículo uma vampira, um ser "das trevas", com nictofobia. Mas, a transformação em vampira era apenas física. Não mudava o nosso estado mental. E aquilo já vinha em mim, desde muito tempo.
     Tentei me levantar, mas, a dor nas costelas não deixava. Eu não podia me recuperar? Ou era o pânico que impedia meus dons, de agirem? Seja como for, minha mente estava criando imagens horríveis e eu comecei a gritar. Mas, ninguém parecia ouvir. Como daquela vez. Quando tudo começou...

**********

     Era uma tarde ensolarada. Eu estava com meus pais, na fazenda do meu avô. Ele ainda era vivo naquela época. Eu tinha sete anos. E como não tinha irmãos. Ficava empolgada em poder brincar com os filhos dos empregados da fazenda. Eles conheciam o lugar melhor que eu. Por isso, ao brincar de esconde-esconde, eu tinha que procurar os lugares mais improváveis. Eu então, corri pela fazenda. Havia um casebre que não era muito utilizado. Onde se guardavam materiais. O tipo que uma criança não deveria chegar perto. Usavam aquilo para caçar. Logo percebi os animais empalhados. As cabeças de cervo na parede, como troféus. Aquilo me chocou muito. Eu não podia acreditar que meu querido avô, fizesse maldade com os animais. E só para colocá-los na parede. O cheiro do lugar era horrível. Os objetos assustadores. Mas, ao ouvir as outras crianças, resolvi entrar ali mesmo. Me escondi ao lado de um lobo empalhado. Os olhos vidrados do animal eram assustadores. As crianças passaram perto. Até chegaram a ir na cabana. Mas, um capataz os mandou se afastarem. E logo em seguida, trancou a porta. Eu não entendi na hora o que estava acontecendo. Só que o lugar ficou completamente escuro. Eu fui tateando, tentando achar a porta. Eu não via nada. Nada além dos olhos brilhantes dos animais. E ouvia o som daqueles instrumentos, balançando nas paredes. Com o vento que entrava pela janela entreaberta. Muito alta. Eu chamei meus pais. Eu gritei pelas crianças. Eu não queria mais brincar. Não queria ficar naquele lugar assustador. Fedendo a morte. Ninguém veio. Aquelas figuras no escuro começaram a mexer com minha imaginação infantil. Era como se a qualquer momento fossem avançar sobre mim, por vingança. O pior, foi quando comecei a me imaginar no lugar deles. Como se fossem me colocar em uma parede também. A imaginação de uma criança vai longe. E com o tempo passando, o pânico foi surgindo. Com o menor ruído, eu já estava tremendo. Gritei até ficar rouca. Chorei até não aguentar mais. Estive no limite de não mais diferenciar realidade e imaginação. Quando finalmente a porta se abriu. Era noite. E um homem entrou carregando um cervo nos ombros. Eu estava tão assustada que não conseguia correr. Não sabia se estava imaginando ou era real. O homem pegou um daqueles instrumentos. Tive a sensação de que ele olhou para mim. Tive medo do que ia fazer comigo. Ele deu um passo na minha direção e eu gritei. Ele continuou vindo. Quando me segurou eu gritei mais alto. Tentei me soltar. Chutei ele. Mas, ele me pegou no colo sob protestos. E me levou para fora daquele lugar. "Encontrei a garota". Escutei ele dizer. Meus pais vieram correndo. Eu estava tremendo. Continuei tremendo enquanto minha mãe, me dava banho. Mesmo quando me vestiu. Era como se o cheiro nunca saísse. Continuei de cabeça baixa. Não consegui olhar para o homem que me encontrou. Passei três dias naquele lugar. Mas, pareceram uma eternidade. Desde então, não podia dormir com a luz apagada. Precisava de pelo menos, o abajur aceso. A porta aberta. Meus pais me levaram ao psicólogo. Com o tempo, eu pude aceitar a porta fechada. Apagar a luz, só se eu não estivesse sozinha. Mas, nunca me recuperei por completo. Em lugares totalmente escuros, estando sozinha, era como voltar no tempo. Como se ainda estivesse naquela cabana. Esperando o homem mal, que viria me empalhar. Era irracional. E no entanto, muito real para mim. Para uma vampira que podia manipular a mente das pessoas, não ter controle sobre a própria mente, era trágico.
     _ Nicolae, Drogo, Peter, Lorie... Alguém, por favor me tira daqui.
     Não houve resposta. A dor nas costelas passou. Graças ao dom de regeneração dos vampiros. Me levantei. Meu corpo tremia. Não era frio. Subi a escada com dificuldade. As pernas estavam fracas. Pela minha visão de vampira, eu podia ver no escuro. No entanto, eu não sabia se o que via era real ou imaginação. Vi sombras, dentro das sombras. Vultos. Senti - me ameaçada. Naquele momento eu voltei a ser aquela garotinha assustada. Com a mente confusa. Pior agora, com a audição apurada de vampira. O olfato apurado. A visão apurada. Uma mente em desequilíbrio, mais complexa que a de uma criança. Se eu me acalmasse eu podia explicar para Nicolae. Podia enviar um pensamento. Mas, como me acalmar?
      Afastei-me da porta e sentei na escada. No meio dela. Perdi a noção do tempo. Fechei meus olhos e esperei pelo sono. Eu estava agitada de mais para dormir.
       De repente, chegou até mim o som de um coração diferente. Um coração humano. Como podia haver um humano na casa? Eu conseguia distinguir as batidas do coração. Havia cinco batidas. Quatro vampiros, um humano. O que estaria acontecendo?
       Eu adormeci. Não sei quando ou como. Só sei que ao abrir os olhos, tive ânsia de vômito. Havia um odor de morte. Parecido com o da cabana. Terminei de subir a escada e vi que Nicolae, ou outro alguém, havia deixado uma taça ali dentro. O líquido nela era visivelmente sangue... De animal. Eles deviam ter ido caçar. Nicolae queria mesmo me forçar as regras dele. O problema é que aquele gesto só piorava o meu pânico. Aquele cheiro estava me enojando. Desci o resto da escada e me afastei o máximo que pude. Entrei embaixo de uma mesa e fiquei me balançando, para frente e para trás, abraçada aos meus joelhos.
      "Mamãe, papai, estou com medo. Está escuro. O que eu faço?" Eu só precisava me acalmar e pensar. Mas, como? Nicolae não podia ler meu pensamento? Ver meu desespero? Ou ele não se importava?
      O recado de Drogo começou a fazer sentido quando minha garganta começou a arder. Doer. Por pior que fosse o odor do sangue de animal, ainda era sangue. E meus instintos de vampira acordaram. Eu estava com sede.
     Ardia tanto e estava tão seca, que eu arranhei minha garganta. Era muito doloroso e desconfortável. Quanto tempo havia passado? Eu não sei. Mas, os impulsos de vampira começavam a superar o pânico. O instinto de sobrevivência falava mais alto. Quanto mais louca eu parecia ficar, mais controle eu adquiria. O suficiente para conseguir respirar e mandar uma mensagem clara à Nicolae. "Me tire daqui". Mas, não houve resposta.
      Eu bati na porta incontáveis vezes. Arranhei a porta até quebrar as unhas. Eu não conseguia usar a força de vampira para fugir dali. Eu estava fraca de mais. Ficava pior a cada dia. Eu estava a beira da insanidade. No limite do desespero. Quase perdendo a humanidade que me restava.
      Pensamentos de ódio começaram a me dominar. Como ele podia fazer isso comigo? Os humanos eram mais importantes para ele do que eu? Que amor era esse, dele por mim, que só me causava dor? Ele me mandou sair após tirar minha virgindade. Eu perdoei. Agora ele me machucava de novo. Quem era o ser humano que estava na mansão? Era mais importante que eu? Era por causa dele que Nicolae me mantinha presa, como uma fera selvagem? Eu queria extravasar a raiva. Mas, estava fraca. Minha mente em frangalhos. Vendo vultos. Me escondi tremendo de medo. Tentei concentrar minha mente para usar meus dons, mas, a fraqueza e a mente desequilibrada não deixavam eu me concentrar.
      "Não vai me dobrar, não vai. Nicolae não vai dobrar a Lívia. A Lívia pode escolher o que vai beber. Ela pode. Deixa a Lívia em paz". Eu gritava alucinando. Vendo coisas no escuro. Quando comecei a ter vontade de rir sem motivo, eu sabia que era o limiar da loucura. Pessoas criaram dupla personalidade para enfrentar algo que não podiam lidar. Eu sentia minha mente se quebrando. Dividindo. Eu ia perder a batalha se não fizesse alguma coisa. Num ato de desespero e buscando o controle, eu bati a cabeça na parede. A dor, me manteria lúcida. Clareou os meus pensamentos. E a primeira coisa que pensei foi nos meus pais. Ao lembrar deles, lembrei da única pessoa que podia me ajudar. Viktor! Meu último esforço. A última força que me restava, foi para enviar um recado ao "papai". Respirei fundo e foquei no meu dom. Tentei conectar minha mente com a de Viktor e enviei a mensagem : " Socorro!... Me tira daqui". Repeti a mensagem várias vezes, na esperança de uma delas atingir a mente dele. Foi um último esforço. Antes de sentir as forças me deixando. O corpo tombando. A garganta seca. O estômago dolorido. Os olhos pesados. Eu estava definhando. Era possível um vampiro morrer seco, por falta de alimentação?  Eu não queria saber. Mas, estava prestes a descobrir.


Is It Love? Nicolae - No limite do desesperoOnde histórias criam vida. Descubra agora