A Tela pintada de Vermelho

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Capítulo 1

 Andando pela floresta foi possível ouvir um gemido estranho, a garotinha se aproximou e viu que um coelho branco estava preso em meio a alguns espinhos, ela não sabia como ele havia parado lá, mas sabia o que ia fazer com ele a seguir, sem pensar duas vezes ela pegou o canivete que carregava sempre consigo e deu fim a vida do animal, ela observou o sangue encharcar o pêlo branco e para ela foi como se uma tinta vermelha acidentalmente tivesse sido despejada em uma tela branca de pintura, a comparação teria sido boa caso não houvesse uma pequena diferença: não havia acidentes ali...

 Voltando para a cabana que chamava de casa, Ailuj limpava o objeto na roupa, deixando assim seu vestido sujo de sangue.

Ao ver aquilo a avó de Ailuj passou a fazer diversas perguntas para a menina, mas ela não respondia, apenas observava os movimentos repetitivos que a velha senhora fazia tentando limpa-la. Olhando fixamente para o rosto da criança, a Velha Senhora se abaixou para ficar do mesmo tamanho que ela.

-Querida... O que houve? – Ailuj a encarava, mas diferente de outras crianças não havia inocência em seus olhos e tampouco malicia, só havia frieza e a Velha pôde notar isso com veemência, era típico de Ailuj se mostrar tão distante e intocável, a Velha sabia que ela não era uma criança normal, mas também não imaginava quem ou o que era Ailuj.

A menininha apenas sorriu diante da pergunta, seu sorriso não carregava brilho, nem alegria, nem sequer uma única emoção, parecia estranho pensar isso, mas o sorriso de Ailuj nada mais era que um mostrar os dentes, pois até em uma atitude tão simples e que costumava carregar a verdade... A verdade de Ailuj era a pura e mais densa cinza...

Ailuj se afastou da Velha Senhora e correu para fora, sua cabana ficava afastada das demais da pequena aldeia, era uma casa isolada, pois todas as outras pessoas ali não gostavam delas, o que não importava para nenhuma das duas.

A garota começou a brincar com seu canivete fazendo desenhos na terra.

-Você gostou? – Ailuj perguntou e olhou para frente esperando uma resposta. Um pouco mais a frente dela estava Notyelc, seus olhos amarelos brilhavam, seu corpo negro se escondia detrás das arvores escuras da floresta. Ailuj pode perceber que ele sorria doentiamente, para alguns aquele sorriso causaria calafrios até a espinha, mas para a pequena Ailuj era reconfortante, ela sabia que ele a tinha visto com o coelho morto em mãos e tinha consciência que sua atitude fora aprovada.

-O que esta fazendo ai princesa? – o apelido teria soado carinhoso se não partisse de uma entidade... Se a voz que pronunciara essas palavras não fosse tão arrastada e sombria.

-Estou escrevendo Notyelc! – afirmou ela como se isso fosse a coisa mais natural do mundo, e até seria se Ailuj ao menos soubesse escrever com apenas quatro anos. Achando estranhas as palavras da menina ele se aproximou, Ailuj podia ser criança e pequena, mas não era burra sabia das coisas, pois nela havia uma sabedoria peculiar e ela sabia distinguir rabiscos de palavras.

Quando a sombra se aproximou dela viu que ela havia escrito palavras em uma linguagem estranha e ele reconhecera tal escrita, a garota se levantou e pronunciou as palavras e ali bem diante deles surgiu uma enorme sombra, ela ganhava formas enquanto se movia ambos apenas observavam e então a sombra tomou forma de um cão, mas não era um cão normal. Sua estrutura era maior que Ailuj, quase do tamanho de Notyelc, em sua boca havia dentes afiados como de um tubarão, seus olhos brancos como se não pudesse enxergar e em suas patas garras enormes capaz de cortar um humano ao meio. Ele rosnou e se aproximou de Ailuj, Notyelc manteve-se parado, pois sabia que o cão reconheceria quem o havia invocado e se percebesse um movimento dele acharia que Notyelc era uma ameaça para Ailuj, dessa forma atacaria sem pensar duas vezes e mesmo sendo uma entidade vinda da mesma origem do animal, seria impossível livrar-se dele, pois do inferno ninguém jamais escapa, especialmente quando se é o lanche de um cão infernal.

Ailuj olhou nos olhos do feroz animal e ele a encarou de volta, após se aproximar curvou-se perante ela reconhecendo-a, ela tocou nele, não para acariciá-lo ou qualquer outro tipo de afeição, apenas o tocou para sentir sua energia, a menina pôde sentir o mal com vida própria, sentiu as vontades e desejos de seu animal, ele queria sangue e em breve ela daria a ele...

Proferindo outras palavras naquela mesma língua, assim como o cão surgiu, desapareceu e aquela foi a primeira vez que Ailuj provara do que era capaz de fazer, mas isso era apenas o início. 


  Ailuj e sua avó seguiram para a feira da aldeia como todo dia da sétima lua*, elas seguiram em meio às pessoas passando de barraca em barraca para que a Velha Senhora pudesse comprar o que precisava. A menina estava cansada de segui-la por todo lado, sendo assim afastou-se dela e ficou observando curiosamente as coisas ao seu redor. Ailuj avistou um grupo de crianças, ainda com a curiosidade borbulhando dentro de si aproximou-se delas, ela os reconhecera, já havia os visto nas redondezas de seu chalé brincando na floresta.

-O que quer aqui? – perguntou uma das meninas que estavam ali. Ailuj não respondeu apenas a observou de cima a baixo friamente, depois voltou sua atenção às outras crianças. – Você é surda? O que quer aqui? – a garota elevou o tom de voz devida a sua falta de paciência, nesse momento todas as outras crianças pararam de fazer o que estavam fazendo para observá-las. – Eu já vi você, você é a garota que mora com aquela velha esquisita perto da divisão (ela se referia ao rio que dividia o Reino das Sombras para o Reino da Luz). – a garota se aproximou de Ailuj a olhando com desdém, a menina por outro lado não se moveu, porém atreveu-se a encará-la olho a olho. - Também te vi falando sozinha... O que tanto faz na floresta? – a menina se aproximou de Ailuj ao ponto de poder sussurrar em seu ouvido. – Daqui a pouco não haverá mais coelhos no Reino das Sombras, aberração! – com as duas mãos a garota empurrou Ailuj e esta caiu em meio à lama sujando assim toda a sua roupa. Uma mulher a chamou a menina pelo nome de Nila e como se nada tivesse acontecido ela deu as costas a Ailuj e foi ao encontro da mulher. Pelo seu tamanho Nila deveria ter no mínimo 9 anos e mesmo com tão pouca idade era nítido como a origem de sua natureza impiedosa lhe caia tão bem.

  A Velha Senhora procurava por Ailuj em meio às pessoas, quando a viu correu para perto dela com as sacolas em mãos e uma feição preocupada.

-Ailuj, onde se meteu? – perguntou segurando o rosto da criança em mãos. – Porque não ficou perto de mim? Tem noção do susto que me deu? Olha a sua roupa! – disse analisando-a de cima a baixo. – Porque você nunca permanece limpa?

  A Velha segurou na mão de Ailuj e juntas voltaram para casa, mas antes de adentrar a densa floresta Ailuj olhou para trás memorizando o rosto de Nila que ainda brincava com as outras crianças.


*Sétima Lua: é considerado como o sétimo dia da semana. 

Filha das SombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora