Provando a inocência
De Bia para Felipe
Sentado no café as oito da manhã, a luminosidade incomodava os olhos de insônia, se arrependera de não pegar os óculos escuros. Agora que não tinha horário de trabalho, o seu corpo demorava a dissolver a adrenalina que sentia cada noite sem dormir. O café iluminado pelas janelas, as pessoas falavam alto como se fossem mal entendidas, ou era apenas os seus ouvidos sensíveis?
Havia trabalhado como agente secreto há anos, tendo os sentidos desenvolvidos para qualquer ruído, os olhos atentos a qualquer movimento que poderia lhe causa mal. O bater da colher na xícara ao mexer o açúcar no fundo ou os passos da garçonete que ia de mesa em mesa servir, era alto demais para ele. Até que seus sentidos ficaram em choque ao ouvir a notícia que a televisão insistia em anunciar, os olhos arregalaram automaticamente e os ouvidos aguçados apenas para a tv.
"O corpo foi encontrado no quarto de hotel cinco estrelas no Rio de Janeiro, onde ela estava instalada por conta de seu trabalho. Areta Souza, desfilaria essa noite no mesmo hotel, no evento de alta moda que acontece aqui no Rio. A perícia suspeita ser overdose de calmantes com álcool, mas ainda não há certeza..."
Areta...
Ela fora o motivo de pedir demissão da cooperação, não se podia fazer a segurança de algo amado. A paixão era um sentimento que interferia em seu corpo, deixando aéreo no momento que tinha que manter atenção. Nos olhos azuis vieram lágrimas, mas não as deixou cair. Apesar de magro e de estatura normal, seu corpo era definido pelo treinamento e ágil como um felino. Já passará por muitas situações complicadas, mas nada que fora comparada a briga que teve com Areta ao descobrir seu envolvimento com o dono do tráfico, sabia que deveria denunciar o filho da puta, mas não o fez por ela.
Seu celular vibrou e ele o pegou sem desviar a atenção da televisão que ainda falava da top modelo brasileira de mais sucesso do mundo. A mensagem sim o fez ficar apreensivo. Olhou para trás e analisou cada rosto dali. Levantou e com a comanda pagou o café que mal tocara, deixando o celular em cima da mesa, ganhou a rua como se nada tivesse acontecido.
— Senhor, esqueceu o celular - a garçonete ainda tentou, mas ele já havia sumido, ela não resistiu e leu a mensagem: "Tu és um homem morto". Ela deu ombros e colocou o celular no bolso, afinal era o smartphone top de linha.
Felipe parou no telefone público e discou o número de seu amigo. Carlos poderia lhe ajudar mas ele ainda trabalhava para a cooperação. Se ele era um homem morto, muitos iriam morrer antes.
— Não fui eu, e você sabe disso. - não esperou a resposta quando ouviu o barulho de ser atendido.
— Seu nome apareceu na lista negra, cara. Não sei o que fazer. - ao ouvir a resposta de Carlos percebeu um movimento pelo canto do olho.
— Sabe que eu gostava...
— Felipe, vai para o subsolo. Te encontro lá.
Nem resposta ele deu, desligou o telefone e saiu andando com as mãos no bolsos e passos acelerados. Atrás dele, dois homens o seguiam, porém bem disfarçados, com um mapa na mão para ver onde estavam. Será que era imaginação dele?
Subsolo era o nome de um restaurante frequentado pelos agentes, ele ficava no subsolo de um museu do centro da cidade. Desde de seu afastamento, ele não era bem vindo ali. Porém confiava em Carlos. Enquanto caminhava duas quadras a mais para chegar, apenas para despistar os "turistas", lembrava do corpo moreno de Areta. Era magra, mas tinha o quadril largo e bumbum arrebitado, os seios pequenos e cintura fina, o que a fez famosa no mundo da moda, pelas curvas diferentes de qualquer modelo. Também pela sua cor negra e o cabelo crespo, na realidade Areta era um camelão que todos os estilistas queriam em sua passarela. Ele sabia que tinha sido o Marcinho, mas não tinha como provar.
"Pensa, pensa, pensa..."
A cada passo que dava era uma olhada para trás, a cada olhada uma espiada para o lado, no bolso secreto da calça, a mão estava na arma pequena que ele sabia fazer fatal. Chegou ao museu suado pela caminhada longa e foi recebido por mais turistas, que tiravam foto na frente do museu. Virou a esquerda para descer ao restaurante e apagou no primeiro degrau, rolando escada a baixo.
...
Risos era o que ouvia, dores o que sentia e as mãos atadas não davam a possibilidade de se proteger. A arma era o que ele não sentia. Abrir os olhos era ruim, então usou a audição para se localizar. Pelos donos dos passos, era um piso frio e pela acústica um salão fechado, parecia que estava no meio com quatro homens de companhia. Como fora parar ali ele suspeitava que fora pelo soco, mas ao sentir o cheiro, bem poderia ser algum alucinógeno. Respirou fundo mais uma e teve certeza, abriu os olhos devagar e viu os quadros principais da exposição do museu, as brancas com adornos dourados lhe diziam estar no alto e dentro do museu, e não onde deveria estar.
—Ele está acordando chefe - ouviu o homem falar da esquerda, passos chegavam perto dele e os olhares se encontraram.
— Não sabia que agora você resolvia pequenos problemas - riu ao dizer e levou um soco pela audácia. O chefe tinha os cabelos brancos e nariz afilado, mas o olhar frio causava medo em qualquer um.
— Você está perdido, Felipe. Como pôde matar uma protegida e sua amada? - o tom era zombateiro.
— Eu não a matei, seria incapaz de fazer isso a ela - Felipe gritou, apenas para receber outro soco e cuspir o dente longe, sujando de sangue o piso impecável.
— Tenho provas que você foi vê-la no hotel ontem...
Aquilo lhe despertou a lembrança da despedida, pois era isso que era, porque ele sairia do Brasil para trabalhar no Canadá. Lembrou-se de Areta sorrindo e fazendo o carinho desejado, depois de se despedir e sair pela porta dos fundos, onde não havia câmeras. Fechou os olhos ao perceber que talvez tenha sido ele o estopim para a sua morte.
"Burro, burro, burro..."
— Eu não a matei. - falou baixo dessa vez. Viu os homens do local fazerem um rodízio e Carlos estava ali. Olhou para o amigo que deu de ombros sutilmente e depois levantou a mão, passando o dedo pelo nariz, código que apenas os dois sabiam. Mas Felipe teria que ficar atento porque não sabia dos planos do amigo e nem se confiava nele. A luz piscou mas ninguém percebeu, Carlos coçou o nariz de novo.
"Puta que pariu! Ele está louco..."
— Eu sei quem fez isso a ela e vou provar!
— Você me dará as informações, depois eu te mato. Nosso trabalho foi exposto e questionado. Como passou por Silva? - todos no salão riram a menção do agente distraído, até Felipe. O chefe sem entender, mas captou a mensagem. - Chame esse babaca aqui. - ficou enfurecido.
— Eu não vou contar nada, você que investigue. - Felipe foi audacioso de novo.
— Veremos se não vai contar...
Os golpes começaram devagar, mas ele sentia cada um no corpo já moído pela queda da escada. Um soco, um chute e a boca fechada. Uma coronhada é uma faca no pescoço, mas a boca fechada. Um corte na bochecha e perto dos olhos azuis mas... Um grito se fez ouvir no museu, um apagão surpreendeu a todos ali, o salão ficou em total escuridão, já que a luz do sol não era permitida para a conservação das obras primas. Felipe sentiu suas mãos livres e as pernas bambas, não era hora de pensar nisso, saiu caminhando no escuro e conseguiu chegar na rua cambaleando. Agachou atrás de um carro e viu os homens que os espancanram procurando.
Quando se sentiu confiante, caminhou para outra direção sem ser visto, a não ser pelos transeuntes que faziam cara de espanto para seus ferimentos. Para no motel do centro da cidade e tomou um banho, pediu roupas ao dono e curativos. Ele agiria naquela noite, porém agora teria que repousar.
...
A noite caia enquanto Felipe chegava no porto. Saberia que seu alvo estaria ali, esperando a arremessa de drogas que chegaria de navio. O capuz ajudava no disfarce mas ele não estava ligando para isso, discreto mas não escondido. Sabia que apanheria mais um pouco porém era a única forma de chegar perto de Marcinho. Era conhecido assim, mas seu nome de batismo era Júlio César, dito senador da república que abastecia os morros de sua facção criminosa para ganhar mais dinheiro. Assim, viciava e maltratava o povo que deveria proteger.
Nunca tinha pisado em uma comunidade e quando um de seus homens davam trabalho, logo a polícia invadia o morro do dono da boca, de forma surpreendente o prendia e depois outro tomava o seu lugar. Assim Marcinho conseguia lucrar e nunca chegar nele as denuncias de tráfico de drogas e armas.
Porém na entrega era diferente, não podia colocar um homem sem estudo, com vocabulário chulo para lidar com os fornecedores de outro país, correção outros países. Então Felipe tinha a certeza que ele estaria ali, afinal eram bilhões em drogas que estava chegando.
Entrou sorrateiro no navio e caminhou para a sala do comandante. Tirou o capuz ao entrar e viu a reunião de homens de termos falado espanhol, ele entendeu todos a conversa. Sem ser notado pelo segurança, ficou parado ouvindo até que chegou o ponto que queria.
— Ela ia me denunciar. Eu não pude fazer nada - a fala fria e o dar de ombros, dizia o homem que era Marcinho. O sangue de Felipe ferveu e ele deu um passo a frente.
O segurança o viu e a bagunça começou, lutou e apanhou até ser alterado mais uma vez. Ele riu silencioso pelo sucesso. Cuspiu sangue de novo e ficou satisfeito por estar de frente com o verdadeiro assassino.
— Você a matou, seu filho da puta! - gritou e conseguiu o que queria, mais agressão no seu corpo.
— Ela não era ninguém. Uma viciada qualquer.
— Ela não usava drogas, idiota! Você sabe bem disso.
— E daí? - o traficante sorriu com os dentes perfeitos e brancos, se aproximou de Felipe afastando o segurança que o batia. - Você era o amorzinho dela. O agente secreto. Imagino porque esteja aqui, o acordo era claro e ela precisava de segurança, mas você falhou ao se apaixonar pelo objeto protegido - riu da estupidez do agente. - Vamos fazer assim, vou amarrar seus pés a um saco de pedras, te jogo na Baía de Guanabara, e depois faço parecer um suicídio. Depois contaram a história que após matar a mulher amada, fazendo-a se drogar, ele se matou.
— Isso é o que vamos ver! - o som do helicóptero foi alto e a corrida frenética.
A polícia federal invadiu o navio, graças a escuta que Carlos ajudou a colocar em seu corpo antes de ser pego. "Trabalho fácil", dissera ele. Depois da agência ouvir a confissão do senador, chamariam a polícia para prende-lo. Bom plano que será certo. As armas apontadas para todos na reunião, os seguranças não reagiram mas correram também. O que não deu certo, o seu antigo chefe estava lá também, com outros agentes ajudando a polícia.
— A confissão foi gravada? - Carlos o soltava em meio a confusão e correria, ele pôde perguntar.
— Cada palavra, meu caro. Agora suma, mesmo que tenha provado a sua inocência, não é boa ideia você ficar por aqui. - O amigo fez um aceno lhe indicou o caminho livre.
Dessa vez Felipe correu, rápido saiu do navio e sem ser visto, entrou na rua onde um carro o esperava. Não sabe como conseguiu tal façanha já que a perna quebrada dois demais e o ombro fraturado lhe matava aos poucos que o sangue pingava. Qualquer pessoa naquela situação iria a um hospital mas ele precisava sair do país. E assim o fez.
...
Sentado no café, dois meses depois, Felipe respirava um ar diferente, mais frio fazendo o café quente ser bem vindo. No Canadá as tarefas eram mais tranquilas e depois da noite em que acabara a missão se dera ao luxo de um café caprichado. O piso de madeira e as cadeiras rústicas lhe faziam bem, mas a visão de neve pela janela ainda lhe dava arrepios. Seus sentidos ainda não haviam descansado, então os passos eram altos e o som dos talheres, incômodos.
Mas um notícia na televisão ligada o fez parar de prestar atenção ao ambiente. Tudo parecia ter se calado e percebeu o cansaço chegando ao seu corpo, sorte daquele café ter quartos para passar a noite, acima dele. No jornal local chegara uma notícia internacional.
"O senador da república Júlio César que foi preso pela polícia federal há dois meses, será julgado novamente pelo crime de homicídio. Ele já foi condenado pelo tráfico de drogas e tráfico de armas, totalizando 20 anos de prisão. Agora, será investigado pelo assassinato da top model Areta Souza. Os policiais chegaram a essa informação por um denúncia anônima."
Felipe riu. Com aquele homem não se preocuparia mais, tomou o goleiro de café e mordeu a torrada. Depois pediu um quarto e chegando nele discou o número no celular comprado recentemente.
— Foi você não foi?
— Que nada! Agora esquenta essa bunda e come uma mulher, senão vai morrer congelado aí - Carlos riu e desligou sem se despedir. Essa amizade ia longe, pensava Felipe se aconchegando na cama.
Pela primeira vez, em dois meses dormiria feliz e tranquilo, já que o ex chefe não tinha acesso a áreas do Canadá e o novo, gostara tanto de seu trabalho que era só continuar. Quanto ao conselho do amigo, bom... O dia estava só começando.
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Amigo Oculto Literário 2
القصة القصيرةSorteio entre amigos do grupo do Whatsapp ajudando escritores, em que cada participante recebe em sigilo o nome de outro a quem deve presentear com uma one shot.