O Abraço da Morte

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E fez-se luz. Forte e agressivo brilho, inimigo dos olhos e opressor do sono.
— Ah… – gemeu Charles protegendo o rosto daquela terrível luz matutina, até perceber que não se tratava do nascer do dia. – Binho… já te pedi pra não tirar foto quando eu estiver dormindo.
Os olhos de Charles subiram até encontrar o pestinha parado na frente da mesa segurando seu celular. Estava encapuzado com um casaco cinza, como de costume, sempre capturando momentos constrangedores.
— Ninguém mandou você dormir aqui… de novo. – disse Fábio sentando-se à mesa enquanto mexia no celular.
Charles se endireitou na cadeira e deu grande bocejo tentando de acordar de vez. Ele e seu irmão estavam sentados à pequena mesa redonda da cozinha. Ele olhou para baixo e viu dois livros abertos e cheios de baba. Não era ali que Charles deveria ter dormido. Algumas pessoas não conseguem dormir a não ser que estejam deitadas sobre um bom travesseiro, mas Charles dormiria em pé se precisasse, como já fizera várias vezes.
— Arruma isso. – ordenou Fábio como se tivesse muito mais do que doze anos. – Ou eu posto essa foto.
— Chantagista. – brincou Charles fechando os livros e pegando-os ao se levantar. – Cadê o Pai?
Fábio olhou para a porta da cozinha, que era ladeada por duas enormes janelas, e como se tivesse adivinhado, ela se abriu, e um homem alto de cabelos castanhos curtos e encaracolados entrou no cômodo.
— Bom dia. – disse Júlio com seu jeito amenamente carinhoso e distante.
— Bom dia. – disseram seus filhos em coro.
Júlio avançou até a geladeira, ficando próximo a Fábio. Sempre que estavam assim, Charles reparava o quanto seu pai e seu irmão eram parecidos. O mesmo olhar negro e semblante de seriedade. E ainda que Fábio fosse muito novo, Charles sabia que seu irmão seria mais alto do que ele. Cresceria até a altura de Júlio, e provavelmente seria tão forte quanto ele próprio. Apenas os cabelos eram diferentes. Ambos eram castanhos escuros, mas Fábio tinha cabelos lisos, e Júlio tinha cabelos encaracolados como os de Charles.
— A Fátima vem hoje? – perguntou Fábio vendo seu pai guardar um refrigerante de uva no frízer.
— Vem. – respondeu Júlio tirando leite e geleia da geladeira. – Charles, para de dormir fora do seu quarto.
— Eu estava estudando… – explicou Charles colocando os livros em uma bancada que separava a cozinha da sala.
— Estuda no seu quarto. – pegou achocolatado e torradas do armário. – Você vai acabar com um problema de coluna. – então colocou tudo sobre a mesa. – Agora vai escovar os dentes e vem tomar café.
— Sim, pai… - disse Charles cambaleando pela casa.
Ele parou diante do espelho do armário do banheiro e olhou para si mesmo. Seus cabelos eram bem mais claros que os de seu pai e muito mais volumosos. Júlio lhe dissera uma vez que sua mãe o comparava a um anjinho de alguma história em quadrinhos, mas fora um comentário de uma única vez. Nunca mais tocaram no assunto.
Charles abriu o armário e pegou sua escova-de-dentes. Ao fechá-lo, não havia nada novo em seu reflexo, nenhuma sensação estranha ou incomum de medo. Mas havia algo incomum. Alguém estranho. E mesmo que o garoto não pudesse vê-lo, ele podia ver o garoto.
O observador acompanhou Charles de volta à cozinha. Assistiu-o comer o desjejum preparado por seu pai, ouviu-o brincar com seu irmão mais novo, sentiu-o se alegrar com aquela manhã. Era quinze de outubro de dois mil e dezesseis. Seria o dia mais importante da vida de Charles Correia.
— O último dia é sempre o mais importante. – disse o observador a si mesmo enquanto a rotina de Charles se quebrava.
Aquele sábado seria diferente. Era a véspera da primeira fase de seu vestibular, não ficaria sentado em frente ao computador assistindo a suas séries favoritas, não ficaria em casa. Era o dia. O momento pelo qual sempre ansiara. Finalmente iria visitar o lugar no qual passaria os próximos quatro anos. E não estaria sozinho.
— Não mesmo. – disse o observador com um sorriso sombriamente irônico.
A manhã correu e já ia alcançar a metade do dia. Estava na hora. Charles tomou um banho e se vestiu com roupas novas que comprara para aquele dia. Uma blusa quadriculada azul aberta por cima de uma blusa branca com o desenho de um cravo negro, calças jeans escuras e sapatos all star de cano médio. Só precisava de mais uma coisa antes de partir.
— Você já vai almoçar? – perguntou seu pai vendo Charles tirar uma tigela de sopa de ervilha da geladeira e colocar no micro-ondas. – Espera mais um pouco, cara. Eu estou fazendo strogonoff. Daqui a pouco a Fátima está aí. Por que você não espera?
Charles prendeu os dedos na porta do micro-ondas. Tanto seu pai quanto seu irmão o fitavam.
— Não se esqueça de mim. – disse o observador.
— A Laiza combinou de sair mais cedo com o Charles. – disse Fábio capturando a atenção do pai.
— Entendi. – disse Júlio voltando para as panelas. – Jantem aqui mais tarde pelo menos.
— Claro, pai. – Charles sentou-se à mesa e agradeceu Fábio com o olhar.
A verdade é que queria ir embora o mais rápido possível, e a presença de Fátima só agravaria essa vontade, mas isso não era algo que seu pai gostaria de ouvir. A mãe de Fábio havia morrido há sete anos, e desde então a amizade entre Júlio e Fátima tinha se fortalecido até se tornar “algo além”. Ouvir que ela e Charles se odiavam não alegraria muito seu pai, e ele nunca fora a pessoa mais feliz.
Charles terminou de comer sua sopa, bagunçou o cabelo de Fábio, deu um abraço em seu pai e foi até a porta da cozinha.
— Me avisa quando você chegar lá. – disse seu pai começando a pôr a mesa. – E me avisa quando você estiver voltando também.
— Sim, pai… - sorriu Charles abrindo a porta.
— Olá. – disse uma mulher de forma seca.
Fátima estava diante da porta da cozinha segurando um molho de chaves.
— Oi. – respondeu Charles tentando soar menos indiferente.
Os dois se encararam por alguns segundos. Infelizmente, Fátima não era uma mulher feia, ela era quase tão alta quanto Júlio, tinha longos cabelos loiros escuros, olhos verdes como musgo e um rosto delicadamente arredondado. Estava usando um vestido negro e segurando uma sacola.
— Você já vai? Eu trouxe sorvete. – disse Fátima.
— Hum, eu estou de dieta. A sua irmã não veio com você? – perguntou Charles sorrindo educadamente.
— Ela está lá fora. – respondeu Fátima entrando na cozinha. – Você já é muito magro pra estar de dieta. Essas escolhas que você faz… vai acabar doente.
— Até mais. – disse Charles passando pelo quintal e abrindo o portão da casa.
Na frente da casa de Charles estava uma versão mais jovem e bizarra de Fátima. Uma garota loira de dezesseis anos usando uma saia enorme e botas que cobriam até suas coxas. Ela tinha dois cordões com pedras da lua e em sua blusa de regata estava o desenho de um coelho vomitando arco-íris
— Amigo!! – saudou Laiza correndo para abraçá-lo. – É hoje!!
— Eu sei. – disse Charles com uma voz esmagada.
— Desculpa. – pediu Laiza o soltando. – Vamos. O Heitor está esperando a gente na estação.
Um sorriso diferente se abriu no rosto de Charles enquanto os dois caminhavam até a estação ferroviária de Água Grande, o bairro no qual viviam. Passaram pela catraca e desceram as escadas até as plataformas. Um garoto negro os esperava em um dos bancos de madeira. Heitor não era muito alto, mas ainda assim era mais alto que Charles. Seus cabelos crespos estavam cortados em um moicano mais largo que o comum. Ele vestia uma camiseta negra pintada com a Máscara de Guy Fawkes, bermudas camufladas e tênis de corrida. Seus olhos castanhos pareciam feitos de chocolate amargo.
— Até que enfim. – disse Heitor sorrindo para Charles. – Então... vamos ou não?
Os três pegaram o trem que ia para o centro da Baía de São Sebastião. Depois de algumas estações alguns torcedores de futebol saíram do vagão, deixando espaço para que eles se sentassem. Charles ficou entre Laiza e Heitor, como era de costume, mas havia alguém a mais naquela viagem. Seu observador estava de pé a poucos centímetros do garoto. Seus olhos negros fixados em Charles. Aguardando o momento.
Não houve muita conversa. Laiza pegara canetas de quadro branco e começara a desenhar arco-íris na parede do trem, Charles havia adormecido e Heitor olhava para ele enquanto ouvia música. O caminho se seguiu em calmaria até que finalmente chegaram ao centro da cidade.
— Acorda, moleque! – disse Laiza balançando os ombros de Charles.
— Ah hu… - balbuciou confuso.
— Chegamos. – disse Heitor segurando seu ombro. – Vamos.
Os três mais o observador deixaram o trem. As plataformas da estação ficavam em uma ponte no meio da cidade e lhes davam uma vasta visão do local. Próximo dali havia uma imensa torre vermelha envolta por um jardim redondo e um estacionamento lotado. Bem no alto da torre havia uma extensa placa de pedra com o símbolo de uma pira acesa e a sigla UNISB, Universidade São Sebastião.
— Estamos mesmo aqui. – disse Heitor maravilhado com a vista.
— É… - concordou Charles parando ao seu lado.
— Vocês vão ficar só olhando? Vamos lá! – animou-se Laiza puxando-os pelas mãos.
Eles saíram da estação e desceram por uma imensa rampa que dava na rua da universidade. Caminharam até lá e passaram por um alto arco branco que marcava a entrada do jardim. Charles, Heitor e Laiza não eram os únicos a visitarem a torre: uma grande quantidade de pretendentes a futuros “unisbianos” havia se espalhado pelas praças e gazebos que havia nos jardins. Era uma tradição que ocorria todo ano na véspera do vestibular. Ou os estudantes iam até a torre, ou não iriam fazer uma boa prova no dia seguinte.
— Eu consigo muito me ver estudando aqui ano que vem. – disse Laiza enquanto lambia um picolé de manga. – Muito mesmo!
— É legalzinho. – zombou Heitor esticando-se no banco de pedra. – E você, Charles, quer estar aqui ano que vem?
— Talvez. Se vocês também estiverem.
— É claro que ele quer. Vamos todos estar aqui, ou eu mato vocês! – brincou Laiza fazendo o observador dar um risinho.
Ao cair da noite, Laiza, Charles e Heitor foram até o pub que ficava próximo a faculdade. Vários estudantes haviam se reunido ali para conhecer seus futuros veteranos.
— Acho que eu já vou indo. – disse Charles levantando-se da mesa.
— Já? A gente nem começou a beber direito! – reclamou Laiza segurando uma lata de cerveja.
— Você tem dezesseis anos, Laiza. E eu também. – disse Charles.
— Não é o que diz a minha identidade. – discordou Laiza.
— Eu vou também. – disse Heitor também se levantando. – Não quero fazer prova de ressaca.
— Sei… bem, vão vocês então. Eu vou dormir na casa de uma amiga por aqui mesmo. Assim não preciso acordar muito cedo.
Os três se abraçaram.
— Vamos com tudo amanhã, ok?! – disse Laiza.
— Ok. – responderam os dois garotos antes de sair do pub.
O observador ajeitou sua cartola e olhou para o céu escuro. Logo teria de fazer seu trabalho. Estava quase na hora. Quase. Ele seguiu os meninos até a estação e juntos regressaram para Água Grande. Não havia muitas pessoas na estação àquela hora. Dali Charles andaria para sua casa, e Heitor pegaria um ônibus para outro bairro. Era hora de se separar.
— Vejo você amanhã? – perguntou Charles a Heitor.
— É… - ia dizer Heitor.
— Não corre. – disse alguém se aproximando dos dois com um facão na mão.
— Calma… – disse Charles olhando para faca.
— Só quero os celulares. Se tentar fugir eu te furo. – ameaçou o homem.
— Aqui. – disse Heitor entregando seu celular.
Charles pensou em entregar seu celular, mas estava paralisado pelo choque da situação. O assaltante encostou a faca na sua barria, e o observador colou seu rosto no dele. Então, um novo trem chegou e antes que os vagões se abrissem o homem guardou a faca e se apressou para fora das plataformas.
— Você é idiota?! – resmungou Heitor dando uma tapa na nuca de Charles. – Um celular não vale sua vida!
— Eu entrei pânico. Desculpa… – disse Charles recuperando o fôlego. – Vamos logo embora daqui.
— Tudo bem. – disse Heitor apiedando-se dele. – Vamos.
Os dois saíram da estação e pararam em um ponto de ônibus.
— Meu ônibus já deve estar chegando. – disse Heitor ficando de frente para Charles. – Você vai ficar bem?
— Acho que sim. – disse Charles cabisbaixo.
Heitor o olhou por alguns segundos, então pegou sua mão e o puxou para um abraço. Não precisavam falar, nunca precisaram, aquilo já dizia tudo que queriam. Foi só então que Charles sentiu. Ele abriu os olhos e o viu. Um homem com uma cartola cinza escura, um enorme sobretudo negro apoiado em uma bengala. A escuridão cobria seu rosto, mas Charles conseguia ver o sangue que descia por seus olhos. O observador parou de sorrir. Ele não era o único que os assistia.
O abraço foi brutalmente quebrado, Charles fora jogado no chão, vários pares de olhos se direcionavam a ele. Olhavam-no, mas não conseguiam vê-lo. Estavam cegos por um ódio tão sanguinolento que podia ser sentido na alma. Primeiro foram as suas costelas, então suas pernas, seu peito, seus braços e seu rosto. Mais e mais, de novo e mais uma vez. Até não haver mais nada além da dor, do sangue e do escuro.
Quando finalmente abriu os olhos, já não sentia mais nada. Não havia mais dor, nem sangue ou ossos quebrados. Charles não estava mais no chão. Estava de pé diante de uma cama. Alguém estava deitado nela, um corpo ligado a aparelhos e tubos. O rosto estava muito roxo e inchado para ser reconhecido, mas ele tinha uma volumosa cabeleira castanha clara.
— Não… - disse Charles com uma voz ecoada.
— Sim. – contradisse alguém atrás dele.
O menino se virou e viu o homem de cartola e bengala. Ele não tinha cabelos e sua pele era mais branca que leite.
— Quem é você…? – perguntou Charles.
Um sorriso maniacamente louco se delineou na boca do homem.
— Meu nome é Nepecrapto. – respondeu como se fosse uma piada. – E você, Charles, está morto.

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