Os Contos de Alquebrar

8 0 0
                                    

Havia uma corrente em movimento. Elos de eventos que se contorceram pelo tempo até alcançar aquele momento. Como uma ventania que arrasta um grão de areia até onde quiser. Charles podia sentir que, embora parecesse um mero acidente, estar ali era inevitável. Sempre fora e sempre seria. Não há como fugir de compromissos marcados pelo destino, adiados ou atrasados eles sempre aconteceriam.
Na presença de Holocausto, o Lorde dos Corpos, Charles deveria sentir medo ou temor, como o de um crente que encontrasse Deus, ou o Diabo. Contudo, o menino não conseguia prestar atenção a ele. Seu olhar passeava pelos mosaicos coloridos de vidro que forravam o chão. Seguindo seus padrões aleatórios que mudavam vez ou outra até que enfim chegasse a algo completamente fora do padrão. Debaixo dos pés do Lorde da Morte, os mosaicos eram apenas negros e brancos e formavam um desenho de um corpo negro em um círculo branco. Seus braços e pernas esticavam-se de maneira vitruviana.
— Ainda não, criança. – disse o Lorde dos Corpos olhando para Charles com um sorriso. – Não é agora.
Charles então respondeu seu olhar e foi aprisionado pelas íris de safira do homem.
— O que… não é agora? – perguntou o menino lentamente.
— Se não é agora, por que me pergunta? – respondeu o lorde. – Aguarde o tempo. Você voltará aqui, então responderei sua pergunta, mas, até lá… você já saberá a resposta.
O olhar do ser deixou Charles e repousou sua força sobre o pequeno menino negro de toga preta que estava parado na frente dos fantasmas. Ambos os espíritos não o viam mais como seus entes queridos, mas sim como o demônio realmente era. Não havia mais necessidade de enganá-los.
— Verlael, por que trouxe almas para a minha casa? – questionou o lorde. – Por que está fora de seu lugar? Quem o libertou?
— Foi ele, milorde. – respondeu o curumim apontando para Leonardo. – Ele me tirou de meu dever e tentou me forçar a guiá-lo para o portal de onde vieram. Mas eu jamais trairia o senhor, milorde. Nunca! Trouxe os intrusos para que eles recebessem o que merecem.
Holocausto sorriu para o curumim.
— Verlael, e quanto ao que você merece? – disse o Lorde dos Corpos estalando os dedos.
Os mosaicos de vidro mudaram de cor e padrão até criar o desenho de um rosto sob os pés do curumim. O demônio tentou fugir, mas, por onde ia, o desenho o acompanhava até abrir sua boca e engolir o pequeno anjo na escuridão de um fosso.
— Demônios têm duas maneiras de enganar alguém, com mentiras ou verdades. Se ele tivesse escolhido a segunda, talvez eu fosse piedoso e apenas o devolvesse para seu lugar. – o olhar de Holocausto focou-se em Leonardo, que tremia como se estivesse com frio. – Nunca mintam para mim.
— O que você fez com ele? – perguntou Charles olhando para o desenho de rosto voltar a aderir os padrões aleatórios de cor do chão.
— Preocupa-se com seu delator. – Holocausto ergueu o queixo. – Que falta de humanidade da sua parte. Talvez tenha sido isso que o trouxe aqui. Afinal, é da natureza humana criar inimizade, seja com quem for. Aqueles que não fazem isso são os primeiros a ser aniquilados.
Charles olhou para baixo, tentando não se lembrar dos rostos daqueles que o espancaram e causaram sua morte.
— Por favor, queremos ir embora. – disse Leonardo tremendo.
Holocausto o olhou com desprezo nítido.
— Diga, humano, quando encontra uma barata na sua casa, você a deixa ir embora? – indagou o lorde.
— Não somos baratas. – retrucou Leonardo criando coragem.
— Não, não são. – concordou Holocausto. – Baratas não envenenam a si mesmas conscientes disso. Eu vejo dentro de você, humano. Nunca teve respeito pela carne que eu criei. – os mosaicos ao redor de Leonardo formaram imagens de vários rostos. – Acha que eles causaram sua morte? Nenhum humano nasce com o dever de proteger o outro. Você fez isso a si mesmo ao escolher desonrar a minha criação com seus vícios mundanos. Pode pertencer ao Destino, mas deve contas a mim!
O fantasma asiático voltou a tremer. O rapaz não iria conseguir aguentar o olhar de Holocausto, então Charles decidiu intervir.
— Sua criação? Como assim? Achei que fosse dono de cadáveres. – disse Charles chamando a atenção do Lorde da Morte.
Holocausto acalmou-se ao olhar para Charles. Havia uma peculiar simpatia de sua parte para com o garoto.
— Vocês pouco sabem, não é mesmo? – Holocausto riu. – Muito bem, menino. Ao contrário do outro humano, você sempre cuidou bem do corpo que eu criei, então, como agradecimento, vou adiar minha decisão sobre o que fazer com vocês até ter lhes contado sobre a verdade deste mundo. Tudo começou com um pensamento e o alquebrar que ele trouxe em forma de amor…
“Antes mesmo que eu existisse, vocês estavam lá, mas não como quem são hoje.” Os mosaicos de vidro no espaço entre os fantasmas e o Lorde da Morte se desprenderam do chão, mudando de cor, forma e brilho para ilustrar a narração. Assim formando uma esfera de pedaços de vidro brancos incandescentes sobre um pequeno abismo. “Todas as almas um dia já foram partes de uma única entidade. Uma massa de poder chamada de Energia. Não havia nada além do poder em si até que Energia teve seus primeiros pensamentos sobre quem ela era, assim criando o primeiro ser.” Dentro da esfera, alguns pedaços de vidro tornaram-se negros, revelando a forma de um pequeno homem preto.
“Sua primeira perspectiva sobre si mesma era interior, mas Energia sabia que isso não bastaria, então ela desejou poder ver-se de fora. Assim criando o segundo ser.”  Pedaços de vidro marrons e vermelhos voaram para de baixo da esfera, criando uma superfície sobre o abismo. Em cima desta, formou-se uma mulher de vidro branco com cabelos negros que olhava para dentro da esfera. “Ambas as visões, interna e externa, passavam o tempo se analisando, sem jamais poderem fazer parte do mesmo lugar, ou entender um ao outro. Assim, Energia concluiu que era impossível conhecer a si mesma e desejou conhecer outros seres. Assim ela me criou, o terceiro ser a existir.”
Sobre a mesma superfície que a mulher branca estava, a forma de um homem negro de cabelos brancos se ergueu. Este se mantinha longe e oposto à esfera. Ele tirava vidro vermelho e marrom e formava vários bonecos parecidos com ele. “Por muito tempo eu e meus irmãos vivemos assim. Minha irmã olhava para dentro de Energia, e conversava com meu irmão que olhava para fora. Enquanto eu tentava criar novas formas, os dois conversavam e tentavam entender a si mesmos, afinal, foram para isso que foram criados. Contudo, em algum momento, sua interação deixou de ser instinto inato e passou a ser algo… diferente.”
“Mais e mais meus irmãos afeiçoavam-se, e mais e mais o desejo de estarem juntos era alimentado. Porém, da mesma forma que meu irmão não podia sair de Energia, minha irmã não podia entrar. Sua frustração se tornou seu desespero, e os torturou até que não aguentassem mais ficar separados.” O homem de dentro da esfera pressionou sua mão contra o limite da massa de vidro branco, como alguém que coloca a mão em uma janela tentando tocar o outro lado. “Juntos, eles desafiaram os limites de Energia…” A mulher de vidro branco pressionou uma de suas mãos contra a esfera. “… e destruíram sua forma.”
O homem e a mulher tocavam o mesmo ponto da esfera, ele por dentro e ela por fora. Então, o ponto de encontro entre suas mãos partiu a camada de vidro que os separava, permitindo que enfim se tocassem. De dentro da esfera, várias linhas feitas por pedaços de vidro branco saíram passando pelo homem, ganhando diversas cores diferentes ao alcançar o exterior da esfera.
“O interior de Energia se espalhou pelo seu exterior, buscando novos recipientes para habitar. E encontrando como lar os bonecos de terra feitos por mim.” A linhas de vidro colorido se esticaram até os corpos criados pelo terceiro ser, envolvendo-os com suas cores e fazendo-os se elevar em um vórtice de linhas que se agitava a cima da esfera branca como um redemoinho. “Assim, os primeiros de vocês foram criados juntamente com o Mundo Vivo. Cada um contendo uma parte da entidade primordial, as quais vocês chamam de almas. Finalmente, meus irmãos poderiam ficar juntos.” O homem de vidro preto e a mulher de vidro branco se abraçaram. “Ou assim eles pensaram.”
“A casca de Energia, tudo que sobrara de sua forma, foi tomada por um desejo incontrolavelmente desesperado de estar completa outra vez, e assim, um novo ser teve sua vez na existência.” Um corpo de vidro branco e preto se formou de baixo da esfera, agora vazia. Este possuía uma asa branca e outra negra. “Ao quarto de nós, pensamentos primordiais, foi dada a missão de reunir todas as partes de Energia que escaparam. Este novo ser deu origem a dez filhos, oito deles receberam poderes para causar os diferentes tipos de mortes que um humano pode sofrer: acidentes, violência, suicídios, catástrofes, fome, doenças e velhice.” Dez novos seres menores e transparentes se ergueram ao redor do homem bicolor. Oito delas receberam cores e símbolos diferentes cada uma.
“Fui castigado pelo meu mais novo irmão por ter criado os recipientes que ele julgava serem ladrões de almas. Como punição, tive que me unir aos seus outros dois filhos remanescentes. A nós foi delegada a tarefa de cuidar do que os humanos deixariam para trás ao morrer: o luto, seus passados e seus corpos.” A representação de Holocausto se juntou ao círculo de seres que rodeavam o anjo de vidro. “Meu castigo foi árduo e continua sendo até hoje, o que não se compara ao que meus outros irmãos sofreram.” O homem preto foi arrancado pelos outros seres dos braços de sua amada branca e preso ao rombo que fizera na esfera. “Meu irmão mais velho foi condenado a ser parte da casca de Energia, reparando eterna e continuamente seu crime. Já minha irmã…”.
A mulher de vidro branco acorrentada ao chão de vidro marrom e vermelho, próxima a seu amado, mas não próxima o suficiente para alcançá-lo. “Ela foi condenada a trazer todas as almas e guiá-las até seu carrasco”. Algumas linhas de vidro colorido abandonaram os corpos que envolviam e desceram do cone espiral que girava a cima da esfera. A mulher branca pegou as linhas e as levou até o anjo bicolor. “Meu irmão mais novo assumiu a tarefa de separar as partes boas e ruins das almas e enviá-las de volta para Energia, colocando-as em lugares diferentes que hoje vocês chamam de Céu e Inferno.” O anjo de vidro sacou uma espada transparente e cortou as linhas ao meio, dando a cor vermelha para uma metade, e azul para as outras.
“Fora através de meu irmão mais velho que a vida fugiu. E seria através dele que ela voltaria.” O anjo pegou as linhas e as lançou na direção do homem preto que tampava o rasgo na esfera. Elas o perfuraram e fizeram seu caminho dentro dele até conseguirem entrar no local primordial de onde vieram. “Por isso, hoje, meu irmão mais velho é conhecido como o Rasgo, o Senhor da Vida. Minha irmã, a Guia, a Senhora dos Mortos. E meu irmão mais novo, o Veredito, o Lorde do Julgamento.”
O cenário de vidro se reorganizou. Um cone espiral de vidro incolor se formou abaixo da esfera, como um redemoinho invertido. Ambos os redemoinhos juntamente com a esfera vazia pareciam-se com uma ampulheta. Dentro de sua parte inferior estavam todos os pensamentos primordiais, exceto aquele que era usado para remendar a esfera. “Sem que percebêssemos, havíamos criado um mundo oposto ao mundo dos vivos, um lugar no qual habitavam todos aqueles que nunca viveram ou viveriam. O Mundo Morto. Nós, os responsáveis por devolver as almas para sua origem, e cuidar daquilo que elas deixaram para trás, nos tornamos os Treze Lordes da Morte. E assim a ordem dos mundos foi estabelecida.”
Então o cenário de vidro voltou ao chão, retomando as formas e cores aleatórias do átrio. Charles olhou para baixo, processando tudo que havia ouvido.
— Se há todo esse sistema… por que fantasmas existem então? – questionou.
— Porque todo sistema tem falhas. Por isso, o Veredito criou raonins e unains, anjos de luz e de trevas. Para purificar as almas que a Guia não consegue achar e enviá-las de volta para sua origem. Os curumins são apenas uma sombra disso. Criar é como tirar uma foto, sempre há o negativo. – explicou Holocausto. – E assim como o positivo e negativo de uma foto, eles compartilham semelhanças. Anjos querem destruir fantasmas, e demônios querem consumi-los. É o jeito de reparar as nossas falhas. Vocês.
— Isso está errado. – disse Charles após ouvir toda história de Holocausto. – Não explica… não justifica nada! Não justifica o que tem acontecido. Não explica o porquê de estarmos aqui!
— Charles… - disse Leonardo tocando seu ombro, mas o garoto se sacudiu com raiva.
— Por que temos que ser caçados e tratados como abominações terríveis como se tivéssemos tido escolha de ser o que somos? Nascemos assim, morremos assim. Ninguém nos perguntou o queríamos ser ou onde queríamos estar. Apenas somos e estamos. O que lhes dá o direito de nos julgar e punir?!
A fúria em Charles estava explodindo dentro de si. Toda sua frustração era como um gás inflamável, pressionado dentro de si até o limite.
— Humano, você está certo. – disse Holocausto descendo os degraus a sua frente caminhando até Charles. – Somos o que somos. Não vou julgá-lo por isso. Minha função nesse mundo não é essa.
Charles arfava com ódio, queria continuar discutindo… reagindo, não importava o quão grandioso fosse seu opressor, mas não era opressão que vinha do velho lorde.
— Fui criado para criar e fui punido por isso. – disse Holocausto segurando seus ombros de forma paternal. – Não somos parecidos em nada e jamais nos entenderemos. Não somos aliados, e não seremos amigos. Somos inimigos, sempre fomos e sempre seremos. Mas eu sou o Lorde dos Corpos, não das almas. Não é meu dever repreendê-los por existirem. Por isso, e apenas por isso, permitirei que você parta. Apenas desta vez. Lembre-se disso, menino. Pois, certamente nos veremos de novo. É nosso imutável destino.
A respiração de Charles diminuiu pouco a pouco, reestabelecendo uma calmaria temporária. Haviam conseguido o que queriam daquele lugar, todo o resto era apenas um contratempo que durara horas demais. Não podiam mais ficar ali. Precisavam voltar e honrar o acordo com Vivian Obá.
— Preciso achar o portal de onde vim para ir embora. – disse Charles controlando a raiva e olhando para Leonardo. – Nós dois precisamos.
— É claro. – disse o Lorde da Morte também olhando para o fantasma paulista. – Está feito.
Como se o ambiente concordasse com Holocausto, a imensa luz vermelha que brilhava a cima do átrio pulsou com mais força que o normal. Um grosso caminho de relâmpagos vermelhos se fez nas nuvens de cinzas e desceu do horizonte em forma de poderosos raios vermelhos.
— Sigam os raios. Eles indicarão onde seu portal está. – instruiu Holocausto voltando a subir os degraus redondos de seu altar. – Agora vão.
Charles viu o Lorde dos Corpos dar-lhes as costas e então o imitou.
— Vamos. – disse a Leonardo. – Já está mais do que na hora de irmos embora.
— Concordo plenamente.
Os dois espíritos foram até o topo do desfiladeiro de corpos, de onde conseguiam ver com clareza o ponto onde os raios vermelhos atingiam o chão. Como sangue pulsando, as correntes de energia eram descarregadas de duas em duas vezes. Charles e Leonardo as seguiram por apenas algumas poucas horas até finalmente chegarem ao local onde os raios encontravam o desfiladeiro.
— É aqui. – disse Charles vendo o imenso rombo feito no chão.
As descargas elétricas destruíam todas as estruturas de ossos que tocavam até que o corredor onde o corpo de Marcus estava ficasse exposto a céu aberto. Porém, no intervalo curto entre os raios, os corpos destruídos se reconstituíam, reformando a superfície do desfiladeiro.
— Temos que ser rápidos. – disse Leonardo analisando o local. – Vamos pular assim que os raios pararem e antes de recomeçarem. Tudo bem?
— Sim. – respondeu Charles apático.
Uma nova descarga elétrica atingiu o desfiladeiro seguido quase que imediatamente por outra, cada uma abrindo uma metade do caminho e expondo o corredor do corpo de Marcus. Leonardo segurou a mão de Charles e os dois pularam, caindo próximos ao esqueleto gasto do menino.
— Ai… - gemeu Leonardo sentindo as sequelas da queda.
Ele e Charles olharam para o alto e viram o teto de esqueletos se refazer. Esperaram que ele fosse destruído pelos raios mais uma vez, mas as descargas de energia pareciam ter cessado. A esfera negra estava dentro da boca do esqueleto de Marcus, tudo que precisavam fazer era tocá-la e sairiam dali. Estavam tão perto…
— Charles! – berrou Leonardo apontando para algum lugar atrás do menino.
O fantasma de cabelos encaracolados seguiu seu alerta e viu algo inusitado acontecendo atrás dele. Um dos esqueletos que compunha o chão começou a ser coberto por uma membrana azul e translúcida. Ele se levantou, carregando dentro de si apenas metade dos ossos, e abrindo duas enormes narinas que farejavam o odor de almas próximas.
— O portal! Rápido! – disse Leonardo tentando se levantar.
Charles correu na direção de Leonardo, que estava mais próximo ao corpo de Marcus. Antes que o alcançasse, outros cinco esqueletos foram envoltos por membranas azuis e se levantaram, bloqueando seu caminho. O menino deu um passo para trás e sentiu alguém tocar seu braço direito. Impulsivamente, ele moveu o braço para o lado oposto, e imediatamente sentiu uma dor lancinante. À sua direita, um oco estava com a mão estendida. Pedaços da carne astral de Charles estavam grudados nela, sendo absorvidos e desaparecendo rapidamente. O ser havia arrancado um grande naco do braço de Charles apenas com o toque.
Em poucos segundos, o número de ocos triplicara. Tanto Charles quanto Leonardo estavam cercados e incapacitados de chegar ao portal. O fantasma asiático começou a lançar ondas de estática contra os monstros, destruindo vários deles como se os estivesse atropelando, mas era algo ineficaz. Mais e mais esqueletos ganhavam formas de ocos, e até mesmo aqueles que haviam sido destruídos eram novamente envoltos por membranas e se reerguiam. Havia quase uma centena deles agora.
Charles olhou ao redor e não viu nenhuma saída. Os monstros iriam despedaçá-lo completamente em pouquíssimo tempo. O ódio e a frustração dentro de si já estavam se acumulando há muito tempo, crescendo como uma árvore com raízes profundas e incisivas. Ele fechou os olhos e se deixou lembrar-se da noite em que esse sentimento nascera.
— Você vai ficar bem? – perguntara-lhe Heitor.
— Acho que sim. – disse Charles cabisbaixo.
Então Heitor o puxou para um abraço que fora desfeito com violência. Um homem jogou Charles no chão.
— Vamos acabar com essas bichinhas! – disse um homem mais jovem atrás de Heitor.
— Solta ele!! – vociferou Heitor tentando chegar até Charles, mas também foi jogado no chão.
Havia oito pessoas ao todo, oito pares de olhos cheios de ódio infundado. Eles riam enquanto acertavam o garoto com chutes, socos e golpes com pedaços de madeira. Charles tentou se soltar, queria chegar até Heitor, queria protege-lo, então começaram a espancá-lo também. Primeiro acertaram suas costelas com três chutes com bicos de chuteiras. Charles gemeu de dor e cuspiu sangue enquanto se encolhia no chão de forma defensiva, mas era inútil.
Os atacantes começaram a golpear suas pernas com pedaços de madeira, quebrando-as diversas vezes em diversos lugares. Ele sentia tanta dor que não conseguia pensar mais em nada, nem mesmo em Heitor.
— Ele gosta! Olha só como ele geme! – riu um dos homens.
Charles implorou que parassem, mas isso só piorou tudo. Os homens começaram a pisar em seu peito, esmagando-o a cada pisada e o fazendo engasgar com o próximo sangue. Colocaram-no de costas no chão, esticaram seus braços para trás e os puxaram até ouvirem os ossos se partindo.
— Isso! Dá para essa bicha o que ela quer! – bravejou um dos homens.
Charles foi virado para que ficasse com o rosto virado para cima. Um dos atacantes pegou o pedaço de madeira e o enfiou em sua boca, quebrando alguns dentes. Um depois do outro, golpe após golpe, o homem atingiu o rosto de Charles como se estivesse prendendo uma estaca no chão. Seu sorriso enojado e orgulhoso fora a última coisa que Charles vira antes de aparecer morto no hospital ao lado de seu próprio corpo.
Mesmo depois de morto, era como se nunca tivesse saído daquele cerco. Charles abriu os olhos e se viu novamente encurralado por ocos. Estavam tão perto que bastavam esticar a mão para tocá-lo, e foi o que fizeram. O menino imaginou que seria destroçado em centenas de pedaços, mas estava enganado.
Charles sentiu todo seu corpo ser energizado. A dor de todas as feridas que levaram a sua morte estavam visitando seu corpo mais uma vez, enchendo-o com uma energia terrível e violenta que transbordava de seu espírito. Assim que os ocos o tocaram, tiveram seus corpos jogados de uma lado para o outro, como se dezenas de pessoas invisíveis estivessem o espancando nas mesmas áreas que Charles fora espancado.
Muitos dos seres translúcidos não tiveram apenas suas membranas rompidas, mas também os ossos esmigalhados, não tinham mais como se reerguer. Ainda assim, havia muitos mais ocos. Charles viu três deles puxando as pernas de Leonardo, o que fez com que várias camadas de sua carne astral fossem arrancadas. No mesmo instante Charles apareceu atrás das criaturas. A energia estática característica da magia de empatia o envolvia com tanta intensidade que a proximidade para com as criaturas foi o suficiente para afetá-las e espancá-las.
— Charles… - disse Leonardo incrédulo.
— Não vou mais ser um inútil. – declarou o menino com uma voz gutural e fantasmagórica. – Entre no portal Léo. Eu vou acabar com isso.
Leonardo arregalou e acenou a cabeça negativamente.
— Não faça isso, seu idiota! Não se pode usar isso dessa forma por tanto tempo assim, você vai…
O fantasma asiático foi ignorado. Antes que pudesse terminar de falar, Charles já havia desaparecido e reaparecido no meio de um grande grupo de ocos que estava se aproximando. Deixou que as criaturas o tocassem, transmitindo para elas todos os traumas de sua morte. O menino estava repleto de revolta e adrenalina, tomado pela vontade de reagir e consertar o que fora feito com ele no passado. Apenas Leonardo via a situação como ela realmente era. Não se podia consertar o passado, assim como não se podia sustentar tanto poder por muito tempo. Era como tomar um estimulante potente, a impressão seria de que Charles possuía mais energia do que ele realmente tinha, quando na verdade estava concentrando sua energia e a usando de uma vez só. Se continuasse forçando essa situação, corria o risco de exaustar sua própria alma e perder a própria forma.
— Charles!!! – berrou Leonardo vendo o menino começar a falhar.
A energia estática que o cobria era interrompida em intervalos de segundos, até que enfim não retornou mais. O corpo astral de Charles começou a perder camada por camada, exalando uma fumaça branca que atiçava ainda mais os ocos. Ao seu redor, mais e mais seres translúcidos se levantavam, não havia mais paredes separando os corredores daquele andar, todos os corpos que a compunham agora marchavam na direção do menino de cabelos encaracolados.
Charles caiu de joelhos no chão, apoiando-se com os punhos. Uma postura de desistência.
— Não… - murmurou Leonardo, reerguendo-se.
Pedaços grandes de suas pernas haviam sido tirados pelos ocos, mas ainda assim ele se forçou a andar até Charles.
— Tome. – disse entregando uma corrente de madeira para o menino.
Charles pegou o amuleto e olhou para seu amigo com lágrimas nos olhos.
— Não…
— É com você agora, Charlie. – Leonardo sorriu para ele. – Salve Marcus. – ele caminhou para frente. – Ah! E dê um banho bem gelado naquele pulguento por mim.
Uma horda de milhares de ocos estava se aproximando com velocidade dos espíritos. Leonardo relembrou as palavras de Holocausto, a forma como ele disse que deixaria Charles partir, como o veria de novo, não ele. Então o fantasma começou a brilhar. Sua imagem sumia e reaparecia como se estivesse piscando, e cada vez que assim o fazia, mais energia estática se acumulava ao seu redor.
— VÁ!!! – vociferou para Charles com um timbre desumano. – VÁ!!!
Charles não queria deixá-lo, mas moveu-se até o esqueleto de Marcus. Viu os ocos alcançarem Leonardo, porém, antes que o tocassem, o menino explodiu em uma imensa e intensa onda de energia que atropelaria brutalmente todos os ocos em um raio de quilômetros. Charles apertou o amuleto com força e tocou a esfera negra dentro da boca do esqueleto de Marcus. Ele foi sugado pelo portal e retornou para o Templo de Marcus… sozinho.

Deus dos ErrosOnde histórias criam vida. Descubra agora