A Parada Negra se aproximava. Linhas de frente de um exército vestido com o escuro, tentando expressar o que as tintas nunca conseguiriam pintar. A Parada Negra se aproximava. Uma procissão muda que tinha o silêncio quebrado por uma chuva de lágrimas. Pequenas nuvens em forma de gente, nem todas chuvosas, mas tempestuosas em seu todo. Algumas delas Charles nunca vira, outras já haviam passado por seu céu, e algumas poucas ele jamais desejaria que fossem embora. Eram precisamente estas as mais diluviosas.
Eles carregaram o corpo de Charles pelo campo verde até uma cova aberta. Sobre ela, quatro coveiros posicionaram o caixão em uma espécie de aparelho com cordas. Então um padre começou a falar, mas sua voz era como o ruído da grama para Charles. O menino mantinha sua atenção em outras pessoas.
— Olhe bem para eles. – disse Nepecrapto parado atrás de Charles. – Diga a si mesmo que esta é a última vez que os verá. Diga.
Charles estava sentado perto de outros túmulos, mantendo a distância necessária para se sentir separado deles, mas ainda assim ser capaz de vê-los. Estavam todos lá, todos que importavam. Júlio e Fábio, Laiza e Fátima, e Heitor com seus pais. Ele queria tanto…
— É a última vez que os vejo. – repetiu Charles encolhendo-se entre suas pernas.
— Bom. Continue dizendo isso a si mesmo, até que um dia a mentira se torne verdade, pois é uma mentira. Veja a si mesmo como um viciado que logo, logo, entrará em abstinência. E então, terá que se lembrar dessas palavras e repeti-las quantas vezes forem necessárias. Eles nunca verão você de novo.
O bizarro tinha razão. Charles sabia muito bem disso. Mas encarar a realidade era como ser espancado por ela. O menino colocou a mão em seu peito sentindo sua marcar arder de frio.
— É a última vez que os vejo. – repetiu mais uma vez, e outra após outra até que a dor passasse.
Olhou mais uma vez para seu enterro, a cerimônia logo acabaria e o exército negro voltaria para casa, carregando todas as nuvens para ventos diferentes e deixando seu céu limpo e solitário. Era sua última chance de vê-los. Tinha que ser, e Charles iria aprisionar cada detalhe que pudesse; como Fábio segurando a mão de Júlio, que tremia cada vez um pouco mais. Em todos os momentos, seu irmão apertava fortemente sua palma, tentando ajudar seu pai. Porém, ele mesmo tinha suas forças sangrando em lágrimas silenciosas.
Fátima tampava a boca e escondia os olhos atrás de óculos escuros. Charles e ela nunca gostaram um do outro, mas agora que ele não estaria mais lá, tentaria pensar melhor sobre ela, pois seria ela aquela que cuidaria de sua família em seu lugar. Laiza estava vestida com cores escuras, sim, mas ainda assim muito diversificadas. Talvez ela soubesse que Charles gostaria de ver aquilo, sempre gostara disso sobre a amiga. Talvez ele sorrisse com aquele gesto, se o preço dele não fosse o rosto desolado e desesperado de Laiza.
Os pais de Heitor se abraçavam e choravam em silêncio. Não eram seus pais, mas sempre o haviam tratado como um filho. Será que se sentiam como Júlio? Provavelmente não, ainda tinham Heitor afinal. O melhor amigo que Charles já tivera. Este não derramava nenhuma lágrima, não expressava nenhuma tristeza, não como os outros. A Parada Negra era feita de óleo frio, mas ele entrara em chamas. Revoltado e indignado com aquela perda.
Então, começaram o final. As pessoas começaram a jogar flores no caixão enquanto os coveiros lentamente o desciam ao fundo da cova. De longe, Charles viu seu pai desmaiar e ser carregado para outro lugar. As pessoas começaram a ir embora, recusando-se apenas duas a isso.
— Quem é aquela garota? – perguntara Charles vendo novamente uma menina muito alta de pé ao lado de Heitor.
Ela tinha cabelos negros cortados um pouco abaixo da altura das orelhas. Usava batom marrom escuro e uma jaqueta de couro sobre um vestido branco. Seus olhos negros estavam direcionados a Charles. O menino olhou para os lados, talvez houvesse alguém perto dele, mas não havia. Ela realmente estava olhando para ele. Mas quem ela era?
— Achou que você fosse o único? – indagou Nepecrapto, mas quando Charles virou para olhá-lo o bizarro já havia desaparecido.
E quando voltou a olhar para frente, também havia Heitor e a menina. O enterro acabara.
Horas atrás, Nepecrapto havia lhe avisado que fantasmas não deveriam vagar por aí. Era perigoso, mas por que sentiria medo, agora que já havia morrido? Já haviam o espancado e o tirado de sua família e amigos, o que mais podiam fazer? O que mais Charles podia fazer? Nada. E foi o que fez.
O menino fantasma ficou sentado ali observando a sua própria cova recém-fechada até que a noite caísse. A imagem das flores sendo enterradas com ele o incomodava muito, pois Charles sempre gostara muito de flores. E com esse pensamento ele se levantou. Não havia mais nada ali para ele além de uma placa com um nome e uma data. Queria ver as flores outra vez, pelo menos essa vida ele podia observar sem machucar.
Seus pensamentos trouxeram a névoa que logo o engoliu e o cuspiu diante de uma imensa torre vermelha. Estava de volta a UNISB. Havia estado ali apenas uma vez antes, mas fora o suficiente para que o lugar ficasse marcado em suas lembranças.
Charles andou até os jardins da faculdade. Havia todo tipo de flor, todo tipo de cor e de odor. Seus conjuntos o atraíam como a uma abelha. Ele passou as mãos sobre um grupo de copos-de-leite, sem realmente tocá-los, sabia que não poderia.
— Vamos todos estar aqui, ou eu mato vocês! – ecoara uma lembrança de Laiza e de Heitor em sua mente.
Lembrar-se daquilo o fez sorrir. Lembrar era tudo que lhe restara, tinha que aprender a apreciar isso, ou não conseguiria segurar a marca em seu peito. Então, uma brisa leve e cheirosa começou a se mover contra Charles. Um doce cheiro de paz. Ele virou para trás e viu o destino da brisa. O vento a levava até um gazebo branco, não muito longe dali.
Entre todos os gazebos do jardim, aquele era sem dúvida o mais bonito. Era ornamentado com cachos de uvas feitos de madeira e luzes douradas que coroavam sua copa. Havia alguém dentro dele. Sem realmente comandar seus pés, Charles caminhou até o gazebo e subiu seus poucos degraus.
— Boa noite, Charles. – disse um menininho.
O garoto não devia ter mais de seis anos. Sua pele era avermelhada como a de um índio, e seus cabelos negros e cacheados iam até os ombros. Charles ficou sem responder por algum tempo, admirando a beleza pueril e desumana do menino. Seus olhos pareciam ser feitos com o sol da manhã, variando entre tons alaranjados e dourados. Ele vestia nada além de uma toga cinza com folhas de guaraná costuradas em suas bordas. Todos os perfumes do jardim pareciam vir não das flores, mas sim dele.
— Um anjo… – disse Charles bem baixo.
— Sim, Charles. – confirmou o menininho. – Você não esperava por mim, não é mesmo? Mas eu esperava por você. Todos nós esperávamos. Desde que você nasceu nos preparamos para recebê-lo.
— Receber… onde? – perguntou confuso.
O pequeno anjo segurou a mão de Charles, e no mesmo instante toda dor e toda tristeza que sentia derreteram como gelo na luz. Mais uma vez… sentia-se vivo.
— Você sabe para onde. – disse o anjinho levando-o para fora do gazebo. – Agora venha comigo.
— Mas… eu achei… achei que fosse ficar aqui… Nepecrapto…
— Não diga esse nome. – pediu o anjo com sutileza. – Diferentemente dele você não pertence aqui. Você é bom, Charles, sempre foi bom. Seu lugar é conosco.
— Mas… por que não vieram antes? – questionou.
— Por que você ainda não havia decidido partir. – respondeu o anjo. – Mas agora você está livre, e podemos cuidar de você. Vamos. Há outras pessoas esperando por você além de nós.
— Outras pessoas…?
Charles não precisou completar a pergunta. A resposta viera em pessoa. O jardim se transformara em cores etéreas, como se todas as flores fossem feitas de luz. Mil milhares de estrelas brilhavam no alto horizonte. E ao longe mais anjos o aguardavam, pequenas crianças dançando ao redor de uma mulher de cabelos longos, castanhos e encaracolados.
— Mãe… – disse Charles deixando-se levar pelo anjinho.
O menino caminhou até ela, guiado pela luz dourada de sua aura. Sua mãe abriu os braços, pronta para abraçá-lo. Charles sentia-se tão feliz…
— É mentira… – sussurrou uma garota muito distantemente. – Não acredite…
Charles balançou a cabeça, como se espantasse um mosquito e continuou seu caminho.
— Charles… acorde… é mentira… – repetiu a menina, sua voz cada vez mais alta e clara.
Charles balançou a cabeça mais uma vez, e tudo o que via ao seu redor tremeluziu, desmantelando-se aos poucos, até que finalmente visse com clareza. Havia flores, mas ele não estava em um jardim.
— O que… - disse Charles sentindo gosto de sangue na boca.
Olhou para baixo e viu cravos e rosas negras dormindo na lama escura. Sangue pingava sobre eles. O menino revirou os olhos e avistou a garota que o acordara, a mesma menina que vira ao lado de Heitor. Ela estava escondia atrás de uma rocha, olhando fixamente para Charles.
— Ele acordou… – ela sussurrou para alguém ao seu lado. – Vamos, temos que ser rápidos…
Charles tentou falar, mas não conseguiu, era afogado por ondas de dor e sangue em sua garganta. Tentou se mexer, mas também foi impedido pela dor que o assolava, principalmente em seu braço direito. Sentia como se vários cortes fossem abertos e remexidos em seu músculo de novo e de novo, numa agonia insuportável.
O menino olhou para baixo, tentando ver o que estava causando a dor, e sentiu uma vontade desesperadora de gritar. Seus braços e pernas haviam sido decepados. O que restara estava pendurado, sangrando e vazando tripas que caíam na lama. Ele arregalou os olhos e viu que suas pernas, seus pés, e um de seus braços estavam pendurados por ganchos como em um açougue. Apenas seu braço direito não estava lá, mas Charles logo o avistara.
De pé na poça de lama, à esquerda de Charles e de costas para ele, estava o pequeno anjo que encontrara no gazebo, mastigando a carne de seu braço direito.
— Fique calmo… - sussurrou a menina agora diante do tronco de Charles. – Vamos te soltar…
Havia um pré-adolescente mulato ao seu lado. O garoto observou os membros decepados de Charles com concentração, então disse algo à menina. Os dois ergueram as mãos apontando para as partes do corpo de Charles.
— Quando te soltarmos… - disse o menino mulato a Charles. – corra… e não pare por nada.
Então eles moveram as mãos como se puxassem algo e todos os ganchos caíram na lama. A princípio, Charles imaginou que estivesse se afogando e tentou se debater. Foi assim que descobriu que seus membros haviam retornado, exceto seu braço direito. Com muita dor ele se pôs para fora da lama e fez o que o menino pedira. Correra, mas para onde? Agora que estava livre conseguia ver que estava no interior de uma árvore, e não parecia haver saída.
— Por aqui… - sussurrara a menina alta entrando em uma fenda na casca da árvore.
Charles se apressou para chegar até a passagem, mas quando estava a centímetros dela o anjo apareceu diante dele.
— Ora… para onde você vai, Charles? Não quer ver sua mãe? – sua voz já não era mais doce e nova como a de uma criança, mas sim velha e seca como uma árvore morta. – Eu mal comecei a jantar.
Ele segurava o braço direito de Charles que agora era apenas um conjunto de ossos sujos de sangue. O desespero correu pelas veias do menino com a velocidade de um gatilho pressionado. Ele berrou aterrorizado e correu o mais rápido que pôde para o lado oposto.
— Não! – berrou a garota. – Ele está te enganando! Volte! Volte!
Charles respirou fundo e voltou para fenda, pulando direto para seu interior.
— Volte aqui, Charles! – vociferou com a voz de velho enquanto segurava a perna do fantasma. – Venha ver a vaca da sua mãe! EU ESTOU COM FOME!
Então a menina alta e o garoto mulato puxaram-no pelo o braço que restara e o tiraram de dentro da árvore. Os três estavam diante de um ipê seco e morto em uma rua residencial.
— Venha! Corra! – ordenou o garoto mais novo.
A menina ajudou Charles a se levantar e ambos correram atrás do menino.
— Quem são vocês? O que era aquilo?! – perguntou Charles com a voz exaurida.
— Meu nome… é Otávia… ele é o… Marcus… – ofegou enquanto corria.
Quando estavam bem distantes do ipê, o caminho à frente se transformou em névoa. Otávia segurou a mão de Charles e o arrastou para dentro da neblina, levando-o para frente de um prédio mal construído. O lugar tinha parte de sua estrutura ainda no tijolo, e vários buracos nas paredes. Apenas o enorme muro que o cercava estava sólido e inteiro, e era muito provável que ninguém vivesse ali. Ninguém vivo, pelo menos.
Otávia e Marcus levaram Charles para dentro do lugar, sentando no chão empoeirado de uma sala vazia de concreto. Havia alguns esqueletos de sofás antigos, roupas sujas e esfarrapadas jogadas pelo chão e uma fogueira apagada. Charles sabia que não tinha realmente um corpo, mas a dor de seus ferimentos era tanta que o fizera vomitar pelo menos quatro vezes.
— Você teve muita sorte, parceiro. – disse Marcus sentando-se ao lado de Charles. – Se não fosse por nós, aquele Curumim teria comido a sua alma.
— Aquele o quê? – perguntou Charles.
— Curumim. – repetiu. – Eles parecem crianças inocentes, mas na verdade são demônios que adoram comer fantasmas.
— Ele não parecia um demônio.
— Não? Já tinha visto um antes? – questionou Marcus sarcasticamente.
— Achei que sim. – Charles lembrou-se da primeira vez que viu Nepecrapto.
— Agora você viu. E um dos piores. Xainael, o Demônio das Flores. Já vi muito fantasma cair na dele. Maldito perfume de anjo…
— Achei que ele fosse um demônio. – relembrou Charles.
— E qual é a diferença? – Marcus revirou a sala com o olhar. – Onde está Otávia?O céu estava vermelho, pintando de cinza as sombras que cobriam o terraço do prédio. Abaixo dele, podia-se ver uma estação de trem lotada de pessoas vivas, mais um dia para os mortos e menos um para os mortais.
— Você se arriscou muito esta noite. – disse Nepecrapto encostado ao lado da porta do terraço. – Muito mesmo.
— Não tenho medo de demônios. – declarou Otávia sem olhá-lo.
— Não falava deles. – corrigiu caminhando até ficar atrás da menina. – Acha que não sei o que você está fazendo?
— Não sei do que você está falando.
— De fato, não sabe. Se realmente soubesse, não estaria jogando esse jogo. Não comigo.
Otávia virou-se para encará-lo.
— “Jogo”. Você é único que o vê assim. Mas, de qualquer forma, você não conhece o garoto. Não como eu. Não vai conseguir o que quer dele. – então voltou a olhar para os vivos.
— Talvez… contudo, aquela marca… o que você quer de Charles pode acabar sendo aquilo que me fará ganhar. Assim como eu ganhei… dele.
Otávia arqueou as sobrancelhas, e se virou carregada de ódio. Mas tudo que achara de Nepecrapto fora o eco de uma risada cruel e o temor pesado em seu coração. O jogo havia começado.
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Deus dos Erros
TerrorCharles Correia era um adolescente gentil e amoroso, porém, um gesto de carinho flagrado por aqueles que cultuam o ódio tira-lhe a vida. Agora, o rapaz deve se ajustar a sua pós-vida com o auxílio de um tutor cujas lições lhe ensinarão que não há pa...