Lágrimas de Marte

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— Marcus dá um pulo… - repetiu o Maquinista pela última vez.
Todas as suas tentativas de evocar o espírito do menino foram frustradas pelo fracasso. Ele estava sentado na frente de uma vela, esperando que ela se apagasse como sinal de que o fantasma havia retornado para casa, mas sua chama recusava-se a diminuir.
— De novo. – disse Charles com amargura.
O garoto estava de pé ao lado do indigente, ofegando em uma respiração carregada de ódio e confusão.
— Charles… não vai adiantar.
— De novo! – Charles vociferou ignorando Otávia.
Mesmo sem conseguir ouvir a voz do fantasma, o tom enraivecido de Charles atingiu o Maquinista, lançando seu veneno sobre ele. O rapaz sentia como se ácido fosse despejado seus ouvidos. Ele se encolheu e começou a chorar enquanto inutilmente repetia o rito de evocação.
— Pare! Você está machucando ele! – Otávia segurou os ombros de Charles, soltando-o assim que o fez, pois a sensação que tivera era de que havia posto suas mãos em um bloco de gelo.
A garota analisou o menino. A energia da marca dos divididos corria tão rápido em suas veias que fazia com que sua pele se tornasse acinzentada. Seu símbolo ardia tão intensamente que conseguia ser visto através de suas roupas. Um círculo índigo com um traço para cima e uma semicircunferência em baixo. Como uma cabeça enlaçada que representava a Bruxa Enforcada, seu signo morto. Otávia arregalou os olhos e esticou o dedo para tocar o esquizograma iluminado de Charles, retraindo-se antes que o fizesse e desviando o olhar.
— Você não pode ceder a isso, Charles. Não importa o quão ruim as coisas fiquem. Não haverá volta se você se tornar um Consumido. Vai ser para sempre como ele.
— Dane-se! Pouco me importa o que essa merda faz! O importante agora é encontrar Marcus e Leonardo.
— Se Marcus quisesse ser encontrado, a evocação teria funcionado.
— Não! Não é possível. Algo aconteceu. Depois de tudo que a gente fez para salvá-lo… Não, ele não iria embora assim sem dizer nada. Não iria.
— Independente do que você fez por ele, você mal o conhece. Não o entende. – Otávia cruzou os braços e olhou para o desenho rabiscado de Marcus na parede. – Ele foi enfrentar Córade sozinho, não foi? Você e Leonardo nem ficariam sabendo disso se não o tivessem seguido.
— E daí? O que você quer dizer com isso?
Otávia olhou para Charles.
— Não sei onde ele está, ou que vai fazer. Mas, se ele foi embora desse jeito, sem dizer nada. É porque ele não quer expor você ao perigo. E, provavelmente, assim como antes, ele acha que não vai voltar.

A névoa deixara de encobrir os caminhos do mundo e se tornara ele próprio. Para todos os lados que Marcus olhava havia apenas neblina e brumas brancas, elas se inclinavam em uma descida pouco íngreme, como os pés de uma colina. Marcus olhou para trás e viu sua tutora sorrindo para ele. Apesar do gesto, ele sabia que Ardina estava triste por estar ali. Diferente de muitas consumidas que ele havia conhecido, sua antiga tutora sempre parecera arrependida pelas ações que a levaram àquela forma. Ela detestava conflitos, e sempre tentara proporcionar paz ao garoto. Contudo, em vida ou em morte, jamais houve paz para aqueles que possuem amor por outros.
— Obrigado por estar fazendo isso. – agradeceu Marcus segurando a mão da mulher. – E me desculpe.
— Não se desculpe menininho. Se eu… - Ardina apertou sua mão. – Se eu fosse livre, faria isso no seu lugar, mas infelizmente, não sou capaz de ir até o final disso com você.
— Não. Estou fazendo isso para proteger aqueles que eu amo, e isso inclui você. Não poderia pedir que você se arriscasse ainda mais por mim, mesmo se você fosse capaz.
— Sempre fomos muito parecidos eu e você. Se eu fosse capaz, não iria esperar você me pedir para te ajudar. – Ardina soltou a mão de Marcus. – Mas talvez ainda haja algo que eu possa fazer.
Algo havia mudado com o toque da consumida. Marcus olhou para a palma de sua mão e viu uma pequena flor cujo botão era vermelho como granadas e as pétalas verdes como esmeraldas.
— O que é isso? – perguntou o menino.
— Um presente. Quando for a hora certa, coma isso e talvez você tenha como igualar o jogo. – Ardina acariciou os cabelos crespos e curtos de Marcus. – Não o deixe vencer.
— Não vou. – prometeu Marcus sorrindo e fechando a mão para ocultar o presente que ganhara. – Ainda falta muito para chegarmos ao vale?
Ardina parou de acariciar Marcus e olhou para o longe. Já haviam descido tanto, adentrando cada vez mais nas profundezas do Mundo Vivo e aproximando-se do limiar do Mundo Morto, que pareciam estar dentro de um funil de nuvens.
— Só mais um pouco, menininho. Só mais um pouco.
Os dois continuaram a sua descida pela colina de névoa até que finalmente algo novo aparecesse à sua frente. Diante de ambos, havia uma construção de rocha cinza anilada. Aos olhos daqueles que já viram o mundo dos vivos, a construção se parecia um supermercado. Uma extensão de retangular com mais de trinta metros de altura. Sua parte frontal era uma única e imensa abertura com várias pilastras na frente, o que fazia com que Marcus se lembrasse de uma jaula com um interior tão obscuro que era impossível de ser distinguir qualquer forma que lá estivesse.
Assim que ele e Ardina passaram pelas pilastras o negrume do lugar foi rasgado por novas fontes de luz. Não havia piras ou tochas em lugar algum, contudo, as paredes do lugar foram ensopadas por um brilho pálido e cinzento, assim permitindo que seus dois visitantes olhassem ao redor com certa clareza. O interior da construção parecia-se com um galpão imenso e vazio. Seus únicos moradores eram algumas poucas pilastras grossas que se viam aqui e ali. Sua única parte realmente distinta era a parede interior oposta à entrada da construção. Nela estavam esculpidas as imagens de rostos com olhos e bocas fechadas, todos com traços retangulares e fundos.
Marcus olhou para a entrada do Vale Nirvana, lar do Imperador dos Póstumos e suposto refúgio para todos aqueles que desejavam viver após a morte em paz e segurança. Um lugar que estava fora do controle dos Lordes da Morte. Apenas aqueles que eram leais ao Imperador podiam o encontrar. Durante toda sua vida póstuma, o menino evitara ir até ali, porém, cada passo que dera fora orquestrado pelo destino até aquele local. Ele respirou fundo e olhou para Ardina. A consumida acenou com a cabeça para ele. Chegara a hora.
— Exijo a presença dos responsáveis pelos espíritos que eu acolhi. – declarou Marcus trêmulo e ofegante. – Que os escravos do Imperador apareçam e me enfrentem, ou renunciem aos meus amigos!
Por alguns instantes o brilho pálido das paredes desapareceu, retornando a entrada do vale à escuridão absoluta. Então, seis esferas púrpuras brotaram no escuro. Três dos vários pares de olhos que estavam esculpidos na parede dos fundos se abriram, preenchidos com estrelas violetas. Assim que o brilho cinzento das paredes retornou, as três bocas respectivas aos pares de olhos abertos também se abriram como entradas de túneis retangulares. De cada uma delas saiam grandes rajadas de vento, tão fortes que atrapalhavam o equilíbrio do pequeno fantasma. Ele cruzou os braços em “X” diante de si para diminuir o impacto e quando finalmente recobrou o equilíbrio, voltou a olhar para frente, assim vislumbrando os três horrores que se somavam ao lugar.
De cada bocarra saíra um consumido diferente. Um deles era um homem obeso com a pele suja e seca. Ele tinha um sorriso muito bondoso e andava com os olhos fechados. Vestia-se com um longo sobretudo feito de feltro reciclado, além de luvas negras e botas de borracha de cano longo. Havia doces grudados pelo tecido de suas roupas, e ele carregava uma enorme rede de barbante com barras de chocolate de todos os tipos. Ao seu lado estava uma criatura híbrida. Ela lembrava um homem negro esquio e forte. Segurava uma lança de osso e vestia uma tanga feita com pele humana ensanguentada. Seu rosto tinha o formato da cabeça de um leão.
Havia pouco que Marcus sabia sobre eles, mas já havia os visto antes. O primeiro chamava-se Decópedro e o segundo Ulibitúr. O tutor de Leonardo e o da Velha, respectivamente. Por mais ameaçadores que pudessem ser, aparentando ou não, nenhum deles preocupava Marcus, pois, assim como Ardina, nenhum deles tentara fazer mais do que seu papel de tutor, ou seja, ensinar e cuidar de seus pupilos. Não, eles não eram o problema.
Ao lado dos dois consumidos havia um terceiro, um homem de pele branca como osso e olhos completamente negros que sangravam. Ele usava uma cartola e uma bengala e se vestia como um homem da alta sociedade inglesa de outrora. Um largo sorriso divertido esticava-se em seu rosto como uma feição enlouquecida de um assassino.
— Nepecrapto. – sussurrou Marcus para si mesmo ao ver o tutor de Charles e Otávia.
— O que significa isso, Marcus? – perguntou Ulibitúr. – Você realmente quer enfrentar três de nós? Qual é a necessidade dessa estupidez?
— Você deveria controlar melhor o seu pupilo, Ar-di-na. – disse Nepecrapto arrastando as palavras.
A mulher deu um passo para frente, ficando ao lado de Marcus.
— Meu trabalho é proteger, não manipular. Não sou como você. – devolveu Ardina.
— De fato você não é. – concordou Nepecrapto. – Eu jamais corroboraria com uma traição dessas. Parece que ser uma tutora tem sido muito difícil para você. Mas… - Nepecrapto olhou para Marcus e ficou sério. - …logo, logo isso não fará mais diferença. Nenhum espírito comum enfrenta três consumidos e continua existindo.
Marcus analisou seus três oponentes. Se vencesse, os tutores seriam obrigados a cortar seus laços com seus amigos, porém, era impossível vencer todos os três. Derrotar um deles já seria um milagre. Entretanto, era esse seu objetivo desde o início.
— Vou mudar meu desafio então. – disse Marcus cerrando os punhos com nervosismo. – Enfrentarei apenas um de vocês.
— Qual? – indagou Decópedro, o tutor de Leonardo.
— Ele. – Marcus apontou para Nepecrapto. – Apenas ele.
Decópedro, Ulibitúr e Ardina olharam para Nepecrapto.
— Você não pode recusar. – continuou o menino. – Tem que aceitar. São as regras.
— Ele está certo, Nepecrapto. – concordou Ulibitúr, virando-se para voltar ao túnel de onde viera, porém, parando antes de entrar para olhar para Marcus. – Você salvou minha pupila quando eu não pude. Agradeço pelo que você fez. Embora eu deseje que você remanesça, sei que não vai. Adeus.
Dito isso, o consumido com rosto de leão entrou no túnel e voltou para o Vale Nirvana.
— Antes que você vá também, me conte, por favor, o que houve com Leonardo? – pediu Marcus a Decópedro. – Você é o tutor dele, ainda está ligado a ele, senão não estaria aqui. Então deve saber como ele está ou onde ele…
Antes que Marcus pudesse terminar sua pergunta, Nepecrapto estalou os dedos e tanto Decópedro quando Ardina foram sugados cada um por um dos túneis na parede. Assim que as atravessaram, as três bocarras se fecharam e seus olhos se apagaram. Marcus esticou a mão na direção da boca pelo qual a sua tutora havia sumido, desejando poder ter se despedido dela, pois poderia nunca mais voltar a vê-la.
— Não… - o menino fechou o punho e abaixou o braço.
A derrota não podia estar em seus pensamentos naquele momento. Não era uma possibilidade, pois nunca aconteceria. Vencer era a única opção, o único caminho.
— Como dizem as pessoas do seu país, não se lava roupa suja na frente dos outros. – justificou-se Nepecrapto balançando um de seus indicadores negativamente. – Agora, eu estou curioso. Otávia teria motivos para fazer isso e mesmo assim ela não fez. Já você… você eu não entendo.
Marcus não podia relaxar e conversar com o Nepecrapto. Seu adversário era um consumido forte o suficiente para literalmente sobrepujar outros dois iguais a ele com apenas um estalo de dedos. Enquanto o menino formulava a resposta, também repassava tudo que sabia sobre magia espiritual. Fantasmas eram feitos de uma energia chamada spectrum. As lembranças da época em que eram vivos moldava o spectrum, dando-lhes a forma similar a de tal época. Os sentimentos que espírito tinha após a morte podiam alimentar o spectrum e fazê-lo se expandir. A forma mais básica de usar essas duas informações era utilizar as lembranças do momento de sua morte para recriar os traumas sofridos ao seu antigo corpo e mente, ampliando-os com sentimentos intensos. Assim, Marcus poderia externar sua própria morte, realizando então a magia de empatia. Contudo, o básico jamais seria o suficiente contra um consumido como Nepecrapto. Outras estratégias eram necessárias.
— Seu maldito sonso… - xingou Marcus. – Eu sei o que você quer e o que tem feito pra conseguir.
— Mas… o que eu fiz? – fungou Nepecrapto como uma criança antes de assumir um tom pesado em sua voz. – O que exatamente você acha que eu fiz?
— Xainael… os anjos no cemitério… Vivian Obá. Foi você, não foi? Você deixou Charles sozinho depois do enterro dele, e por isso o demônio das flores conseguiu pegá-lo. Você queria que ele o pegasse.
— Por que eu iria querer isso? Ele é meu pupilo, é meu dever protegê-lo.
— Renato também era. Otávia ainda é. E você sabe muito bem o que aconteceu aos dois. O que você fez com os dois! – Marcus apontou para Nepecrapto. – Eles confiavam em você, e você precisa que Charles também confie. É por isso que você quer que ele te veja como um protetor.
— Eu sou o protetor dele. – retrucou o consumido, mas Marcus o ignorou e continuou a acusação.
— Você teria o salvo de Xainael se Otávia e eu não tivéssemos feito isso primeiro. O tiro saiu pela culatra e Charles passou a confiar em você menos ainda. Então você fez com que ele estivesse em um cemitério no dia mais perigoso possível para isso. No Halloween.
— Charles estava lá porque não soube usar o tabuleiro ouija direito. Eu não tive nada a ver com isso.
— Mentira! – vociferou o menino. – Foi você que disse a ele que os vivos podiam ver os mortos no solstício de inverno, convenientemente esquecendo-se de esclarecer que apenas no hemisfério norte essa data era no Halloween. Se não tivesse dito isso, nada daquilo teria acontecido. Você não teria tido a chance de bancar o herói enfrentando aqueles raonins. E isso nem era tudo o que você queria.
— É mesmo? O que mais eu queria? – debochou Nepecrapto.
— Você esperou Otávia ser torturada pelos anjos para só depois aparecer. Você queria ela fora do seu caminho porque enquanto Charles estiver conosco ele nunca estará sozinho. Enquanto ele estiver conosco, vamos sempre salvar uns aos outros. E por isso você contou onde eu estava à Vivian Obá!
Enquanto Marcus ofegava com a intensidade das acusações que fizera, Nepecrapto apoiava um cotovelo na ponta de sua bengala e batia palmas lentamente.
— Mas que garotinho inteligente. Muito, muito esperto. – parabenizou Nepecrapto. – Eu admito que não me importaria nem um pouco se vocês desaparecessem. Contudo, se eu quisesse fazer algo com Charles, e não estou dizendo que quero, por que eu precisaria que vocês desaparecessem? Afinal, de acordo com você, eu fiz o mesmo com Renato, e não precisei acabar com nenhum de vocês para isso. Tem certeza de que sou eu quem está fazendo tudo isso?
A mente de Marcus não podia parar de trabalhar. Em meio a conversa acalorada, o menino pensou em várias maneiras diferentes de atingir o consumido. Além da magia de empatia, ele poderia usar o seu próprio esquizograma para fazer outros encantos e maldições, mas só faria isso em último caso. Ainda assim, ele precisava utilizar seu spectrum em sua potência máxima para causar algum efeito em Nepecrapto.
O problema era que sendo um fantasma comum, o limite de até onde poderia estender sua energia era bem pequeno. Assim como os humanos possuíam um código genético que ditava como sua forma era construída, os espíritos também possuíam uma forma fixa ditada por um código espiritual. Quando usavam o spectrum com muita intensidade, corriam o risco de quebrar esse código. Por isso, o próprio spectrum se desfazia antes que esse ponto fosse alcançado, o que fazia com que os fantasmas se transformassem em fumaça. Só então o código espiritual remontava o fantasma de maneira correta.
Já espíritos como Nepecrapto, já tiveram seus códigos espirituais destruídos e reformulados ao serem consumidos pela marca dos divididos. Por isso suas aparências eram tão diferentes, e o limite de poder de cada um deles tão absurdamente maior. Se Marcus quisesse ter uma chance contra o consumido, por menor que fosse, ele precisava de algo que mantivesse sua forma intacta mesmo ao esticar seu spectrum. Felizmente, Ardina havia lhe dado algo assim.
— Quem mais seria? – continuou Marcus olhando para a flor que Ardina na palma de sua mão.
— Se você não sabe… - o consumido voltou a segurar a bengala normalmente e segurou a aba de sua cartola. –… não há mais nada a ser dito.
Marcus comeu a flor. A mesma reapareceu como uma tatuagem em seu peito. Com o mesmo aspecto de desenho, dois caules vermelhos saíram de trás da flor e se esticaram pelo corpo do menino até que tivessem feito quatro espirais, duas ao redor de seus braços e duas de suas pernas. Parte do spectrum de Ardina estava naquela flor e agora se somava à alma de Marcus, dando-lhe a chance de que precisava.
O menino deixou suas lembranças vagarem até o momento de sua morte e transformou seu spectrum em magia de empatia. Ele sabia que não podia simplesmente atacar Nepecrapto diretamente, então fez com que sua energia estática saísse de seu corpo com uma silhueta semelhante à dele, criando uma réplica de energia.
Imediatamente, o espectro que Marcus criara correu na direção de Nepecrapto seguido por outros três iguais. O consumido não saiu de onde estava, ao invés de mover seus pés, ele tirou a cartola e a atirou para cima. Os espectros de Marcus desapareceram no meio do caminho e reapareceram ao redor do consumido, um às suas costas, dois aos seus lados, e um à sua frente. Eles estavam a poucos centímetros de tocar o consumido, porém, antes que conseguissem, uma força invisível como a gravidade os puxou para dentro da cartola.
Marcus vira as tatuagens de caules vermelhos começarem a regredir alguns poucos centímetros, marcando o quanto de poder extra era perdido. Ele prevera o que Nepecrapto iria fazer em seguida, então começara a fazer novos espectros de si mesmo, diminuindo os caules um pouco mais, contudo, as novas silhuetas de energia estática esperaram vários segundos, tremendo loucamente enquanto concentravam a magia de empatia dentro de si.
Ao mesmo tempo, a cartola de Nepecrapto flutuou sobre sua cabeça até estar vários e vários metros a cima do consumido. Ela virou de cabeça para baixo, apontando sua face para o teto, e então cuspiu os quatro espectros no ar. Assim que o fez, a bengala de Nepecrapto voou com velocidade e movendo-se sozinha perfurou os espectros como uma agulha em tecido. Todos os quatro estouraram como bolhas, criando quatro ondas de magia de empatia que teriam afogado qualquer um que estivesse em um raio de cinco metros.
Nepecrapto sorriu para Marcus enquanto as ondas de magia se desfaziam em uma pequena e fina chuva e sua cartola voltava para o topo de sua cabeça. Até agora, ambos os espíritos estavam apenas testando qual seria a melhor abordagem de ataque. Porém, Nepecrapto não pretendia permanecer na fase de testes por muito tempo. Os novos espectros de Marcus já começavam a se mover, desaparecendo e reaparecendo em distâncias que começavam curtas e se tornavam cada vez maiores. Antes que o alcançassem, o consumido levantou a mão esquerda, esticando seu indicador como alguém que pede permissão para falar em uma sala de aula. Então dobrou o dedo, apontando-o para Marcus. Em resposta, sua bengala, que ainda flutuava no ar, foi disparada com velocidade de bala na direção do menino.
As investidas de ambos os lados chegaram aos seus alvos ao mesmo tempo. Ao ver a bengala sendo disparada, Marcus puxou seu crânio para fora de seu corpo, como fazia quando queria usar a máscara da legião de Vivia Obá. Entretanto, desta vez ele não usou apenas seu rosto. Além de sua face, seus ossos saltaram de seu peito e de seus braços como uma armadura. Assim, quando a bengala atingiu o menino, os ossos de seus braços saíram de seu corpo e fecharam suas mãos ao redor do cilindro, segurando-o no ar e impedindo que Marcus fosse atravessado.
Enquanto isso, o segundo quarteto de espectros chegou até Nepecrapto. Diferentemente do grupo anterior, eles não tentaram tocar o consumido, ao invés disso, apenas pararam de se mover e explodiram. Já prevendo o ataque, Nepecrapto foi sugado para dentro de sua própria cartola. As novas ondas de magia de empatia eram mais fortes e com maior alcance, porém não tinham efeito algum sobre o objeto. Elas se dissiparam em poças volumosas de água enquanto a cartola flutuava leve e lentamente para cima.
Mesmo sendo segurada, a bengala do consumido ainda tentava perfurar Marcus e começara a quebrar seu esterno com a pressão que fazia sobre ele. O esqueleto do menino então saiu completamente de seu corpo, inclinando-se para à direita. Sem poder conter mais a magia de Nepecrapto, o esterno do esqueleto foi perfurado pela bengala, que continuou avançando até se fincar em uma pilastra a vinte e poucos metros de Marcus. O esqueleto, que havia sido empalado e preso à pilastra, continuara a segurar a bengala, mantendo-a fincada em seu peito para que Nepecrapto não pudesse mais usá-la.
O menino olhou para cima e viu Nepecrapto saindo de sua cartola e pisando no teto de cabeça para baixo. Ele segurou a aba do chapéu e começou a chorar sangue enquanto ria. Desde o início do confronto, o consumido previu e evitou cada movimento de Marcus. Ele foi cauteloso o suficiente para ferir o primeiro grupo de espectros longe de si, caso contrário, mesmo tendo destruído os espectros, ele teria sido enfeitiçado e afogado. Como se não bastasse, ao se dar conta disso, escondeu-se do segundo grupo em sua cartola, que estouraria mesmo que ele não os ferisse. E agora andava de cabeça para baixo no teto, ignorando a gravidade e ficando além do alcance de Marcus.
A situação poderia parecer uma derrota, mas não era assim que Marcus a via. Ele, um espírito comum, havia pressionado um dos consumidos mais perigosos a tomar várias medidas defensivas para evitar seus ataques. Era hora da segunda etapa do plano. Normalmente, em lugares tão próximos ao Mundo Morto, ele não seria capaz de se mover sem seu esqueleto, mas as tatuagens de caules vermelhos que ainda envolviam seus membros pareciam estar mantendo sua estrutura. O menino uniu as duas mãos como em uma prece e começou a piscar, sumindo e aparecendo no mesmo lugar milhares de vezes por segundo.
De longe, Marcus viu Nepecrapto erguer a mão para baixo como se estivesse segurando algo. Então sua bengala começou a se mexer para cima e para baixo, tentando se soltar das mãos do esqueleto de Marcus. O menino estava conectado aos seus ossos e sentia que eles não seriam capazes de segurar o cilindro por muito mais tempo. Ele precisava se preparar para fugir. Em poucos segundos a bengala se soltou, quebrando as mãos do esqueleto ao se afastar e voar com velocidade na direção do menino.
Marcus desapareceu mais uma vez, mas ao invés de reaparecer no mesmo lugar, ele se transportou para cem metros à esquerda, imaginando estar fora do alcance do ataque. Contudo, quando a bengala chegou ao lugar onde anteriormente Marcus estava, ela se dobrou para o lado milímetro por milímetro, assim mudando para esquerda. O menino não conseguiu perceber a mudança a tempo o suficiente de esquivar. Com um passo para trás, ele foi apenas capaz de impedir que a bengala acertasse sua cabeça, fazendo com que ela atravesse a lateral de sua caixa torácica e saísse pelo outro lado.
Um túnel se formara no corpo de Marcus, e grossas baforadas de fumaça vazavam por ele. Os caules vermelhos regrediram de seus pulsos e calcanhares até seus cotovelos e joelhos, marcando uma considerável perda de energia que foi necessária para reestabelecer sua forma. Marcus sabia que se não fosse pelo presente de Ardina, a luta teria acabado ali. Entretanto, não podia se desanimar. Tinha que aproveitar o spectrum extra que lhe sobrara em um único ataque que decidiria tudo.
Enquanto a bengala de Nepecrapto dobrava-se diversas vezes no ar, tomando distância para atacar de novo, o menino continuou a preparar seu novo encanto, voltando a desaparecer e reaparecer no mesmo lugar, juntando o máximo de energia estática que podia. Quando estava quase pronto, ele projetou um único espectro que se transportou até o esqueleto e se uniu a ele. Desta forma, o espectro, fortalecido pelo esqueleto, correu e se pôs na frente de Marcus.
— Isso não vai funcionar de novo. – disse Nepecrapto do alto, girando seu indicador em círculos.
Comandada pelo consumido, a bengala começou a girar em rotação em uma velocidade absurda, então se lançou como um tiro alvejando o menino. Marcus sorriu, ele não pretendia repetir seus truques. Ao invés de tentar segurar a bengala como da última vez, o esqueleto abriu a boca e cuspiu todo spectrum que o possuía. A energia envolveu a bengala ainda no ar e a prendeu e uma bolha de água. Ainda assim, o cilindro continuou em movimento, mas ao atingir o esqueleto, a bolha de água que o envolvia ricocheteou para trás, sem causar nenhum dano aos ossos.
Marcus estava pronto. Seu esqueleto retornou ao seu corpo, e então os caules vermelhos regrediram completamente e a flor de Ardina desapareceu de seu peito, indicando que ele usara toda a energia que a consumida havia dado. A cor do fantasma começou a desaparecer. Sua pele tornou-se podre, com vários rombos deixando ossos à mostra. Seu rosto estava tão fundo que se podia ver claramente os contornos de seu crânio. Ele havia levado sua magia de empatia a um nível superior na qual iria recriar a sua morte completamente.
Duas lágrimas volumosas pingaram de seus olhos para cima, subindo como se o teto as atraíssem, e explodindo em uma onda exorbitante de energia que se transformou em milhares litros de água que inundaram todo o interior da construção. Nepecrapto começou a afundar nas lágrimas de Marcus. Um sorriso assassino se formara, porém, assim como o consumido, agora pertencia a Marcus.

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