Vozes de Madeira

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Os rangeres das portas eram o coro quiróptero de uma caverna de abandono, ninho dos esquecidos. Otávia entrou em uma das salas do prédio abandonado no qual residia. Era um cômodo consideravelmente grande, o chão empoeirado um dia já estivera cheio de cubículos de escritório, mas agora sustentava apenas algumas paredes de plástico derrubadas e tapetes de papéis cimentados pelo tempo. Em seu centro havia uma fogueira pequena irradiando do interior de um balde de ferro uma pira improvisada por um ser humano tosco com roupas rasgadas e uma barba adolescente suja, longa, e cheia de buracos.
— Olha quem chegou. – comentou Leonardo, que estava sentado em uma antiga máquina de xérox, vendo a garota adentrar o salão.
No outro lado do cômodo, uma mulher muito velha de cabelos alvos se levantou do chão e olhou para Otávia com um sorriso banguela. Faltava apenas um de seus colegas de casa.
— Onde está Marcus? – perguntou a garota.
O sorriso da velha banguela se transformou em uma boca aflita e repuxada, mas ela ainda assim não pronunciou uma única palavra.
— Procurando pelo novato. Ele sumiu da festa. – explicou Leonardo recolocando seus óculos escuros.
— Eu sei. – contou Otávia fazendo com que Leonardo arqueasse uma sobrancelha. – Ele estava comigo.
— Hum… vamos chamar o pirralho então. – Leonardo pulou da máquina de xérox fazendo-a tremer.
Imediatamente o jovem mendigo olhou para trás, em busca do autor do movimento. O fantasma foi até uma porta na extremidade sul da sala e fez com que ela se fechasse e se abrisse duas vezes. Um sinal ao qual o jovem já havia se acostumado. Ele saiu de perto do balde flamejante e passou pela porta que Leonardo abrira, assim chegando a escadas largas com corrimões enferrujados, os quais Leonardo fazia tremer de minuto a minuto, guiando o jovem indigente através do som até que chegassem a uma porta do terceiro andar.
O menino já sabia para onde deveria ir. Ele entrou no terceiro andar e seguiu por um corredor sujo até chegar à pequena sala com desenhos rabiscados na parede. Um retrato dos fantasmas do lugar.
— Qual? – perguntou o jovem esticando a mão em direção à parede rabiscada.
Leonardo então tocou em seus dedos e os guiou até o desenho de um menino baixo e gordinho.
— Certo. – assentiu o garoto, tirando uma vela e um isqueiro dos bolsos. – Vou chamá-lo.
Ele levantou uma pequena chama faiscada, queimando a base da vela e prendendo-a ao chão antes de acender seu pavio. Então o mendigo se ajoelhou e fechou as mãos como se fosse fazer uma oração para enfim dizer sua prece:
— Marcus dá um pulo. Marcus dá um pulo. Marcus… dá… um pulo…
A vela se apagou, e calafrios percorreram o corpo do jovem indigente indicando a presença ausente de quem invocara. Estava diante de Marcus, e mesmo sem poder vê-lo, sentia sua respiração falsa e cadavérica.
— Por favor… - tremulou o mendigo. – Vai me dar um sonho bom? Um com… comida?
— Vou. – sussurrou Leonardo ao ouvido do jovem. – Não se preocupe. Não vai sentir fome esta noite.
— Outro sonho com comida? – criticou Marcus observando o jovem. – Desse jeito ele vai acabar se juntando a nós de verdade.
— Já imaginou o Maquinista como fantasma? Vai fazer todo mundo se cagar. – brincou Leonardo voltando às escadas com Marcus.
— E vai comer a merda de tanta fome. – complementou Marcus. – Mas enfim, por que me chamaram? O novato conseguiu voltar para cá?
— Não. – chegaram ao salão maior. – Acho que a Otávia pode explicar melhor.
Otávia baixou a cabeça ao ver os amigos entrando no cômodo.
— O que você sabe? – perguntou-lhe Marcus.
— Charles está com o amigo. Parece que Nepecrapto o fez achar que o Solstício de Inverno era hoje. – explicou. – Ele achou que pudesse ser visto.
— Ingênuo. – comentou Leonardo cruzando os braços fortes.
— Ele não tem culpa. É aquele maldito… temos que nos livrar dele. – Otávia defendeu.
— Não podemos mexer com os tutores. Você sabe muito bem disso. – relembrou Marcus.
— É. O dono deles não ia gostar nem um pouco.
— E não é como se tivéssemos poder pra isso. Ainda mais quando se trata de Nepecrapto. Não. Isso está fora de questão. Tudo que podemos fazer é não o deixar sozinho. – propôs Marcus. – Tutores não aparecem quando não estamos sós.
— “Geralmente”. – ressaltou Otávia. – Mas ele não vai querer vir pra cá agora. O amigo tinha um tabuleiro ouija.
A velha que até então estava imóvel começou a puxar os cabelos e fazer uma expressão muda de gritos.
— Esse garoto… - riu Leonardo tirando os óculos para limpá-los. – Nunca vi um novato fazer tanta merda no primeiro mês.
— Pois nós vimos. – resmungou Marcus ironizando-o com o olhar. – Isso não é bom. Não é à toa que esses jogos quase nunca funcionam. Exigem energia demais de nós, e quando não temos o suficiente…
A Velha cobriu o rosto com as mãos como se estivesse com medo ou chorando.

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