Tesouro dos Mortos

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Sete pessoas tecidas em linhas sem cor arranhadas na parede, lacerações mínimas no concreto que eram tão frágeis como rachaduras em vidro, mas carregavam significados resistentes. Os desenhos na parede da sala lembravam hieróglifos deixados por homens das cavernas e rabiscos infantis deixados por crianças. Duas das figuras eram claramente imagens de Otávia e Marcus, as outras cinco eram mistérios distintos. Uma velha de pijama, um jovem de óculos escuros, duas adolescentes gêmeas de mãos dadas e um homem de boné. Seriam esses os fantasmas que ali viviam, ou melhor, recusavam-se a morrer?
— Uma família… - sussurrou Charles para si mesmo.
Ele tentou tocar o desenho do homem de boné, pois havia um X arranhado abaixo dele, mas tentou esticar um braço que não estava mais em seu corpo.
— Isso é para sempre? – perguntou enquanto apertava seu ombro direito mutilado e olhava para trás.
— Não. – respondeu Marcus. – Ele vai crescer de novo. Não vai demorar muito.
— Nossos corpos são ilusões. – disse Otávia mordendo seu indicador enquanto fitava os desenhos na parede. – Você só estaria realmente machucado se o Curumim conseguisse te devorar inteiro.
Charles voltou a olhar os desenhos. Estava intrigado por eles, mas não podia permitir que novas perguntas germinassem em uma floresta abarrotada de questões. Precisava de respostas.
— Pode nos perguntar. – disse Marcus entendendo sua expressão.
— Só nunca pergunte como morremos. – completou Otávia olhando para Marcus. – É como na prisão. Ninguém gosta de falar como chegou lá.
Charles alternou o olhar entre os dois, não sabia nada além de seus nomes. Ainda assim, já tinham sua confiança.
— Aquele lugar… dentro da árvore… o que era aquele lugar? Como podíamos estar dentro de uma árvore? – começou Charles.
— É um lugar morto. – explicou Otávia. – Eles podem ser… confusos.
— Alguns são seguros, como os nossos caixões. Outros… bem, você viu como era lá dentro. Depende de quem é o dono do lugar. – continuou Marcus. – Nós os chamamos de necrotérios.
— Deveriam chamar de matadouros. – Charles lembrou-se de como fora fatiado e pendurado como pedaços de carne em um açougue. – E essa marca? Esse “esquizograma”? – ele tocou em seu peito. – O que é isso afinal? Por que ela me deixou daquele jeito?
Marcus olhou para Otávia também em busca de sua resposta, mas a garota mordeu novamente seu indicador e desviou o olhar.
— É sempre muito difícil deixar nossa vida antiga pra trás. – disse Marcus decidindo assumir a conversa. – Muitos fantasmas não conseguem e tentam se agarrar ao passado. Então eles mudam.
— Como assim “mudam”?
— Ficam loucos. Vingativos. Raivosos… Desumanos. – respondeu Otávia olhando com tristeza para Charles. – Se tornam um perigo para os vivos, para aqueles que eles um dia amaram.
— Mas… por quê? – questionou Charles. – Não podemos nem ficar perto das nossas famílias sem que isso aconteça? Não é justo.
— Justo ou não, é assim que é. – disse Marcus balançando os ombros. – Melhor aceitar isso de uma vez.
Charles apertou a marca em seu peito, arfando com raiva, lembrando-se do que quase fizera a Fábio e das palavras de Nepecrapto em seu enterro. É a última vez que os vi. – repetiu para si mesmo em silêncio. – A última.
— É importante que você saiba. – continuou Marcus. – A marca afeta cada pessoa de uma maneira diferente. A sua é no peito, então você é afetado pelos seus sentimentos. Se você se deixar levar por eles…
— Eu não vou deixar isso acontecer. – interrompeu Otávia com determinação. – Nós não vamos deixar isso acontecer. Não é mesmo?
— É claro… - respondeu Marcus franzindo o cenho enquanto olhava para a garota. – Vamos te ajudar nisso se precisar.
Charles havia achado aquilo estranho, e novas perguntas se formavam. Onde seriam as marcas de Marcus e Otávia? Se é que eles tinham alguma. Seriam iguais a dele?
— E o símbolo… disseram-me que havia treze marcas. O que significa a minha?
— É como um signo. – respondeu Marcus voltando a olhar Charles. – Só que ao invés de ser do dia em que você nasceu, é do dia em que você morreu.
— O seu é a Bruxa Enforcada. – contou Otávia. – No lugar do signo de Libra. Não sabemos muito bem que diferença isso faz.
— E o símbolo do apanhador de sonhos? – perguntou Charles se lembrando da primeira noite em que viu seu irmão dormir após sua morte. – Por que ele sempre aparece quando alguém está dormindo?
— Quando uma pessoa dorme, ela vai para um lugar entre todos os mundos, então nós podemos entrar em contato. Mas só se a marca estiver fraca. – disse Marcus. – Ela é como uma proteção que todos têm. Quanto mais assustado ou perturbado alguém está, mais fraco fica seu apanhador de sonhos. E mais fácil fica para visitarmos suas mentes. Por isso que as pessoas às vezes sonham com fantasmas.
— Assustados e perturbados. – repetiu Charles mais uma vez sendo lembrado de que não havia nenhum modo de estar com sua família sem machucá-los. Era uma tortura. – Por que nós existimos, então? Por que viramos fantasmas? Não existe Céu e Inferno? É só isso que resta?
Marcus e Otávia se entreolharam.
— Nós não sabemos o porquê. Mas existe, sim, um Céu e um Inferno. – respondeu Otávia.
— Como você sabe?
— Bem, nós nunca fomos a nenhum dos dois, né. – disse Marcus como se fosse uma piada. – Mas já vimos muita coisa nesses anos todos. Nem todo mundo vira fantasma e já vimos outros fantasmas sendo arrastados até…
— Não é um assunto legal. Próxima pergunta. – exigiu Otávia segurando seu ombro direito de uma maneira retraída.
Charles colou seus olhos em Otávia. Até então queria questionar Marcus, pois apesar de o garoto parecer ser um menino gordinho e baixo que não devia ter muito mais do que onze anos quando morreu, ele era muito perspicaz. Mas Otávia… Otávia era quem mais atiçava sua mente. Ainda mais quando agia de maneira tão visivelmente anormal.
— Por que você está sempre ao lado de Heitor? – perguntou Charles.
Otávia olhou-o com frieza, mas não era algo pessoal. Havia gelo em suas lembranças.
— Ele é o único que ainda se lembra de mim.
— Então vocês…
— Próxima. Pergunta. – disse Otávia rispidamente.
Charles ponderou insistir em saber sobre o passado de Otávia, mas claramente a garota não confiava tanto nele quanto ele confiava nela. De todas as perguntas que poderia fazer, resolveu dar lugar à mais desejada. Aquela que havia se enterrado no fundo de sua cabeça desde a noite em que morrera.
— O que e quem é Nepecrapto? – perguntou. – Por que ele apareceu pra mim? Por que ele tem que me ensinar sobre a morte?
Os olhos de Marcus se arregalaram e seguiram um lento percurso entre os desenhos da parede até o rosto cabisbaixo de Otávia.
— Nepecrapto… você não disse que o tutor dele era ele. – disse Marcus a Otávia.
— Agora você sabe. – respondeu Otávia assumindo uma postura mais ereta e séria. – Quando um fantasma chega à morte, ele precisa de um tutor. Alguém que o ensine a se proteger por aqui. Existem muitos tutores, mas nenhum tão perigoso quanto o seu.
— Por quê? O que ele fez? Como você o conhece? – disparou Charles ansioso por respostas.
— Ela está exagerando. Todos os tutores são um pouco perigosos. – contrariou Marcus. – Todos eles são Consumidos e foram obrigados a nos ensinar.
— “Consumidos”?
— Fantasmas que cederam completamente às suas marcas…
— E cometeram atrocidades imperdoáveis contra os vivos. – completou Otávia com um ar irritado. – E eu não estou exagerando. Nepecrapto é um dos tutores mais perigosos. Não confie em nada do que ele disser. Ele só quer te manipular.
Charles achou aquilo estranho. Desde o momento em que vira Nepecrapto, segundos antes de morrer, o achara bizarro, sinistro e realmente sombrio. Sentira uma malícia sarcástica em cada palavra que dissera e cada movimento que realizara parecia venenoso. Entretanto, tudo o que o bizarro havia feito fora lhe prevenir de uma realidade dura, dolorosa e inevitável.
Ele lhe dera verdades como lições, e Charles não quisera escutá-lo. Negara sua morte quando estava diante de seu corpo, permanecera em casa quando o sinistro o alertara sobre a impossibilidade de tal ato, perambulara por onde queria quando ele havia dito que não era seguro andar por aí. Nepecrapto fora apenas um professor. Duro, desagradável e insensível, mas verdadeiro para com suas funções.
Os erros de Charles eram apenas dele, ninguém o havia manipulado.
— Eu acho melhor pararmos esse interrogatório por hoje. – sugeriu Marcus olhando pesadamente para Otávia, e depois sorrindo para Charles. – Já está quase na hora do almoço. O que você quer comer?

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