Uma nota seguida de muitas outras. Rápidas e curtas elas formavam uma sinfonia de toques. Dedos de um lado e dedos do outro, cada parte ligada através de placas de vidro e luz, como se não estivessem separadas de verdade.
— Pq vc não foi pra aula hj? – digitou Ágata. – ?????
— Sono. – respondeu Fábio. – E daí?
— Vou te socar, garoto!!! 😒😒 Tô indo aí.
— Tá. Vou comprar algo pra comer. O q vc quer?
— Eu q – o celular de Ágata caiu no chão. – HEI! Você é ce…? - ia dizer a garota olhando para o lado enquanto se abaixava para pegar o celular.
Um clichê de filme surgiu em seu dia como um pop-up. Um jovem alto e negro movia-se ao seu lado, também agachado, tateando o chão à procura de algo. Seus olhos estavam ocultos por um par de óculos escuros, porém a verdade sob eles estava bem explícita. O rapaz era cego.
— Desculpa, desculpa! – pediu o jovem envergonhado segurando o joelho de Ágata. – Eu derrubei algo? Quebrei alguma coisa?!
Ágata viu três linhas finas traçando o destino de seu celular, mas resolveu que contar aquilo não era necessário.
— Não. Não quebrou nada, não se preocupe. – mentiu. – Você está perdido? Quer ajuda?
A menina tentou ajudar o rapaz cego. Ela pegou sua mão e ao mesmo tempo em que se levantava também o ajudava a se erguer. O garoto era apenas um centímetro mais alto que ela, mas aparentava ser alguns anos mais velho.
— Na verdade eu estou perdido sim. – disse o jovem. – Algum imbecil roubou minha bengala, tentei correr atrás dele e perdi a conta dos meus passos. Quando vi já estava perdido.
— Tinha que ser no Brasil. – comentou Ágata apoiando a mão no ombro do rapaz. – Onde você mora? Não tem ninguém que possa te buscar?
— Bem, tem a minha mãe… mas eu não tenho como ligar pra ela. Roubaram meu celular também.
— Mas você se lembra do número? – Ágata pegou seu celular e tentou desbloqueá-lo, mas a tela estava cheia de manchas pretas, arruinada pela queda.
— Lembro. – confirmou o rapaz.
A menina olhou ao redor. Ambos estavam em uma praça não muito longe da entrada do colégio no qual Ágata e Fábio estudavam. Todos os seus amigos e colegas já haviam ido embora. Poderia voltar e pedir ajuda para algum funcionário ou professor, ou…
— A casa do meu amigo é bem perto daqui. Você pode ir comigo e de lá ligamos para sua mãe. O que acha? – propôs Ágata.
Sem muitas opções o rapaz cego aceitou o convite e, guiado por Ágata, foi até a casa de Fábio. O menino atendeu a porta com o rosto amarelo de uma noite mal dormida e tédio. Ele usava roupas levas e uma touca cinza, hábito que adquirira quando não podia usar casacos e capuzes devido ao calor. Apesar de não dizer nada, as perguntas do menino estavam estampadas em seu rosto.
— Hã? – balbuciou Fábio.
— Aconteceu algo no caminho. – disse Ágata balançando o celular quebrado. – Ele precisa de ajuda.
Podemos usar o seu telefone?
— É claro. Entrem.
— Muito obrigado. – agradeceu o rapaz cego esticando a mão para Fábio. – Não sabe como estou aliviado com a sua ajuda. Meu nome é Joel.
— Prazer, Joel. Sou Fábio. – respondeu o menino. – Não precisa agradecer.
— Preciso sim. – respondeu Joel avançando para dentro da casa. – Você não faz ideia do quanto.Olhar para Otávia era como observar chamas avançando lentamente por um pavio cujo comprimento era incerto. Após o julgamento, Charles e Leonardo foram levados de volta para os trilhos ferroviários onde a batalha de Marcus acontecera. De lá, o menino carregou Leonardo pela névoa de volta para Nagameiro, bairro no qual o prédio em que moravam residia. Otávia esperava por eles diante da parede na qual os desenhos da família de fantasmas estavam desenhados. Ela ouvira cada palavra do relato de Charles sem olhar para ele. Sem se mover ou falar. Sua única reação era pousar a mão sobre o desenho de um menino pequeno e gordinho na parede. Um toque saudosamente aflito.
Charles sentia-se responsável por tudo que acontecera. Se não tivesse descido ao estacionamento, não teria ouvido a conversa de Marcus. Não teria o seguido. Não seria feito de refém. Não teria entregado Marcus a seus captores e feito um pacto com eles.
— Não foi sua culpa. – disse Otávia finalmente, como se soubesse exatamente como ele se sentia. – Se vocês não tivessem intervisto, o resultado seria pior.
— Como? Ele só foi pego por minha causa. – argumentou Charles.
— Ela está certa, Charlie. – comentou Leonardo que estava sentado no chão encostado à parede enquanto sua perna lentamente readquiria forma. – Marcus não tinha chance contra aquela consumida, sem reféns, ela provavelmente teria o obliterado.
— “Obliterado”. O que é isso afinal? Ouvi isso várias vezes no julgamento. – questionou Charles.
— Não podemos “morrer de novo”, mas podemos ser obliterados. – respondeu Leonardo tirando os óculos escuros. – Não é como ser devorado por demônios, queimado pelos anjos ou apodrecido pelos espectros. Ser obliterado é deixar de existir de vez. Não sobra nada de você. Você é esquecido.
Talvez esse não fosse um destino tão cruel assim. Se Charles fosse esquecido, Heitor, Fábio, seu pai, Laiza, nenhum deles estaria sofrendo por tê-lo perdido. Todos estariam felizes e seguindo com suas vidas sem nem ao menos sentir que algo ou alguém estava faltando. E se Charles não existisse, também não sentiria falta deles, e nem sentiria qualquer outro sentimento, bom ou ruim.
— Mesmo se ele não fosse obliterado, sem você no julgamento… ele… - Otávia não terminou de falar apenas se virou.
Seus olhos desiguais, um normal e outro verde-água apagado, sempre o lembravam do que houvera em seu templo. Lembravam-no dos anjos e do desespero de fogo que eles trouxeram. Assim que seus olhares se cruzaram, Charles se encolheu, sentindo-se ainda mais culpado, e como uma reação refletida, Otávia fez o mesmo, envergonhada por sua aparência mutilada.
— Se, se, se… isso não importa! – resmungou Leonardo. – O que aconteceu, aconteceu. Como resolvemos agora?
— Temos que achar esse amuleto que Charles roubou. – disse Charles cabisbaixo. – Em uma semana.
— Otávia, você está aqui há mais tempo do que eu. Já viu algum amuleto nas coisas do Marcus? – perguntou Leonardo.
— Nunca vi amuleto nem nas coisas dele, nem em qualquer outro lugar desse prédio. Não foi aqui que ele escondeu isso.
— A Velha pode saber de algo? – indagou Charles.
— Talvez, mas como ela nos contaria? Ela não fala. – relembrou Otávia.
— Temos que achar algum fantasma surdo para ensinar LIBRAS pra ela. – Leonardo balançou os dedos do pé recém-reformado. – Isso já passou da hora.
— Ela não é “muda”… ela é… antiga. Marcus já havia me contato sobre essa Vivian Obá. Ele disse que ela obrigava a Velha a fazer profecias pra ela. Por isso ele a levou com ele quando fugiu. Ela foi o primeiro fantasma que ele acolheu. – contou Otávia voltando a olhar para o desenho de Marcus. – Mas não pode nos ajudar. Mesmo para um fantasma a Velha é muito velha. Tipo bem mais que milenar. Ela não consegue mais se comunicar direito através de linguagens.
— Então estamos ferrados. Não tem mais ninguém a quem perguntar. – enraiveceu-se Leonardo.
— O Maquinista talvez? – disse Charles percebendo a idiotice de sua sugestão segundos depois. – Ou… bem, exceto dessa vez, sempre que tive problemas teve alguém que me ajudou.
— Não. – disse Otávia secamente. – Ele. Não.
— Mas, Otávia, não temos mais ninguém. – retrucou Charles.
— De quem vocês estão falando? – quis saber Leonardo.
— Nepecrapto. – disse Charles. – Ele pode ajudar.
— Sim, ele “pode”. – Otávia cruzou os braços e apertou o olhar com raiva. – Mas você é ingênuo e imbecil se acha que ele vai. Aquele crápula é um manipulador. Tudo o que ele fala e faz, qualquer ajuda que ele dá tem um motivo egoísta por trás. Toda vez que você o ouve, ele controla você!
— Por quê? – questionou Charles em ceticismo. – Por que ele me controlaria? O que ele quer? Você vem dizendo essas coisas desde que eu cheguei, mas até agora nunca explicou o que tem contra Nepecrapto. Se você sabe de alguma coisa mesmo, por que não me diz de uma vez?
Otávia arregalou os olhos e enrijeceu o corpo, surpresa com uma pergunta mesmo que já a esperasse. Mas ao invés de respondê-la, ela simplesmente piscou os olhos como alguém que suprime lágrimas, e abandonou o cômodo. Sozinho na discussão, Charles olhou para o lado e viu Leonardo começando a se levantar.
— E então, Charlie? – perguntou o amigo. – O que você vai fazer?
Charles sabia que, mesmo sem argumentos expostos ou claros, Otávia podia muito bem estar certa. Nepecrapto não era bem intencionado, isso era algo que sabia desde o primeiro momento durante o qual o vira. Contudo, sem saber o que o bizarro realmente queria, restava se perguntar se poderia tirar mais dele do que ele poderia tirar de Charles. Usá-lo sem deixar-se ser usado. Será que conseguira? Charles não tinha certeza, mas sabia de algo crucial.
— Não há mais nada que possamos fazer. – concluiu Charles. – Vou chamá-lo.
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Deus dos Erros
HorrorCharles Correia era um adolescente gentil e amoroso, porém, um gesto de carinho flagrado por aqueles que cultuam o ódio tira-lhe a vida. Agora, o rapaz deve se ajustar a sua pós-vida com o auxílio de um tutor cujas lições lhe ensinarão que não há pa...