Os Filhos da Água

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Sessenta e sete anos antes…
Dentro da água. Não há companhia na morte, tudo que vive morre sozinho. Fora da água. Marcus tentou chamar alguém, gritou os nomes de seus amigos. Dentro da água. Imaginou onde os outros meninos estavam, será que ninguém havia o visto ser levado pela correnteza? Fora da água. Ele berrou, extinguindo o pouco fôlego que tinha. Dentro da água. Não conseguiria emergia outra vez. Não haveria mais chamados berrados para serem ouvidos ou ignorados. Era o prefácio de seu fim.
Nenhuma luta teria efeito contra o destino. O menino se agitou de baixo da água, balançou seus braços e pernas, usando toda sua força contra a correnteza, mas não adiantava. Sua vida escapava rapidamente no formato de bolhas cujas quantidades se tornavam cada vez mais escassas. Marcus tentou prender o fôlego, mas não havia mais ar para ser contido. Então o desespero começou.
O vazio em seus pulmões queria ser preenchido. Como portas em contradição que querem ao mesmo tempo se abrir e se manter fechadas, uma pressão atacou as vias respiratórias do menino. Algo tão poderoso que não podia mais ser contido, o que resultou em uma inundação interna. A água do rio criara mais um afluente em seus pulmões, tomando todo o espaço de sua curta vida. Mas não era o fim.
O corpo do menino mulato fora abandonado como um peso morto, o que de fato era. Uma leveza de alívio se fez presente. O menino vira sua carne ser carregada pelas águas enquanto seu espírito ficava parado no fundo, ignorando as leis da física. Não queria se mover. Continuou parado olhando para o alto, sendo banhado pelas linhas de luz que vinham do horizonte, até perceber que não estava sozinho.
Diante de si vira olhos magentas, estrelas de um céu de pele negra e cabelos longos. Uma menina pequena, provavelmente mais nova que Marcus, olhava para ele com um sorriso doce.
— Você também morreu? – perguntou Marcus à garota.
A menina fez que não com a cabeça.
— Eu acho que eu sim. – disse Marcus voltando a olhar ao redor, então sentiu algo.
— Não se preocupe. Você não está sozinho. – disse a menina segurando sua mão. – Eu posso te proteger, se você quiser.
— Me proteger? Do quê? Eu já estou morto. – resmungou Marcus largando a mão da menina.
— Você é tão inocente. Quantos anos você tem?
— Onze. – disse entredentes.
— Onze! Só isso? Bem, vou te contar um segredo, quer ouvir? – a menina se aproximou para sussurrar ao seu ouvido. – Você vai viver durante muitos mais anos agora. Sua verdadeira vida apenas começou.
— Isso é besteira! – retrucou Marcus. – Estou morto. Minha vida acabou.
— É? Então por que você ainda está aqui? – questionou a garota.
O garoto arregalou os olhos e virou o rosto, sem conseguir achar uma resposta.
— Nosso tempo está acabando. – prosseguiu a garota. – Logo, alguém vai aparecer para falar com você. Essa pessoa vai te dizer que está aqui para te ensinar a viver depois da morte, mas é uma mentira. Ela só estará querendo te usar. Não confie nela.
— Parece você. – Marcus deu as costas à menina.
— Tudo bem, isso é tudo muito novo para você, eu entenderei se não confiar em mim ainda. – a menina lhe tocou o ombro. – Mas sabe de uma coisa? Gosto de você. Se um dia você precisar de ajuda, ou melhor, quando você precisar, procure a água e diga o meu nome e a ajuda virá.
Marcus ficou em silêncio durante alguns segundos, mas quando sentiu a garota se afastar, virou-se e perguntou:
— Qual é o seu nome?
A menina que já caminhava para longe, olhou para ele e disse:
— Vivian Obá. – então desapareceu nas águas.
Marcus mal teve tempo de processar o que acabara de acontecer quando outra presença se fez. Ele sentiu alguém andando atrás dele, então se virou e a viu. Uma mulher loira com um vestido branco cheio de flores que por onde passava fazia com o que o chão ao seu redor ficasse vermelho como sangue.
— Olá, Marcus. – disse a mulher com um sorriso tenro. – Meu nome é Ardina.

Os próximos meses da vida póstuma de Marcus se passaram como um período de convalescência lento e doloroso. Durante os dias ele ficava na água, observando a vida ribeirinha que havia em seu interior. Durante as noites ele emergia e fazia o caminho de volta para os barracões. Sempre visitava um barracão diferente, mas nunca o que um dia fora o seu. Ardina o alertara que a felicidade dos vivos poderia machucá-lo, e o menino sabia que com sua morte, seu barracão seria o mais feliz de todos, afinal, ninguém ali jamais o quis com vida.
Não demorou muito para ele tivesse que ir embora. Olhar os amigos dormirem durante a noite, entrando em seus sonhos uma vez ou outra só estava lhe fazendo mal. Marcus queria puni-los por terem deixado que ele se afogasse, por não terem o visto sendo levado ou o ouvido chamando por ajuda. Então, fazia com que sonhassem que eles estavam se afogando, passando cada sensação agonizante dessa experiência para eles. Em pouco tempo toda a comunidade suspeitava de sua presença, suspeitavam de um fantasma. Foi então que eles vieram.
Assim que Marcus viu as asas de fogo branco, ele soube que estavam ali para destruí-lo. Anjos guardam apenas os vivos, eles não se importam com os mortos. Marcus se escondeu nas águas, mas sabia que não ira demorar muito para que o achassem. Ele pensou em chamar Ardina. A mulher fora doce e gentil com ele desde o aparecera, aturara seu mau humor sem reclamar e ficar ao seu lado sempre que pedira, e até mesmo quando não pedira. Entretanto, ao ver a luz do fogo branco entrar nas águas do rio, o menino se encolheu no chão e desesperado pronunciou duas palavras:
— Vivian Obá…
A ameaça foi exterminada com brutalidade. A menininha negra de olhos magentas apareceu ao seu lado, então as águas vibraram. Havia uma corrente de madeira em seu pescoço com um pingente em forma de um bebê cujos olhos estavam abertos e cheios de luz rubra. A garota estendeu a mão para o alto e imediatamente os anjos pararam de se mover. Torrentes de sangue jorraram de suas axilas, coxas e pescoços, então seus braços, pernas e cabeças foram separados de seus corpos. O fogo de suas asas se apagou e seus pedaços remanescentes caíram no fundo do rio.
— Fez bem em me chamar, mas não pode mais ficar aqui. – disse Vivian ao menino. – Outros virão.
— Mas… para onde eu vou? – perguntou Marcus chorando.
— Venha comigo. – a menina esticou a mão para ele. – Há outros como você, todos nascidos na água. E eu os protejo. Venha comigo e nunca terá que ter medo de novo.
Marcus não hesitou. Pegou sua mão e aceitou o convite.
A legião de fantasmas de Vivian Obá era acolhedora e divertida. Eles moravam em vários lares diferentes, mas todos próximos de rios ou do mar. Marcus conhecera várias crianças que morreram como ele, afogadas e esquecidas. Eram todos irmãos de certa forma, filhos da pequena bruxa. Os dias se passavam como uma festa atrás da outra.
— Você está feliz. – disse Horácio, o mais alto dos filhos da água, olhando para Marcus.
Os dois meninos estavam sentados em um tronco de um jequitibá rosa. Era um dos lugares preferidos de Marcus. A árvore era extremamente grossa e tinha mais de trinta metros de altura, porém, seus galhos só começavam a se dividir e formar a copa a dez metros do topo, o que tornaria impossível uma escalada para alguns vivos, se não possuíssem equipamentos. Mas nada era impossível para os póstumos.
— Talvez esteja. – disse Marcus balançando as pernas no ar e aumentando seu sorriso.
Abaixo deles, alguns espíritos faziam um banquete com a comida que coletaram pela manhã, desperdiçada pelos vivos. Sempre se questionara se o céu era real, mas quando estava ali, sabia que era. Contudo, nem tudo era paz, família e festa. Não o tempo todo.
— Tem certeza disso, Marcus? Você não precisa fazer isso se não quiser. Não faz nem dez anos que você está conosco. – disse Vivian Obá, com a mesma aparência de pueril imutável.
Marcus estava em um espaço morto, um necrotério. Uma imensa estátua de Vivian Obá se erguia a sua frente, e diante dela três colunas onde normalmente ficavam as gatas juízas. Vivian estava em uma lagoa redonda ao lado de uma consumida e de outro fantasma. A consumida era uma mulher vestida com uma burca cinza que segurava um violino branco e ocultava seu rosto com uma máscara de porcelana. Córade, uma das consumidas da legião, líder do exército de mascarados. E o outro fantasma era uma mulher muito velha e muda que servia como profetisa da legião.
— Eu também quero ajudar. – disse Marcus ajoelhado perante ambas. – Não vou ficar só desfrutando da paz que vocês me dão. Quero ajudar a mantê-la.
— Ótimo. – disse Vivian sorrindo orgulhosamente para Marcus. – Deixo você com Córade então.
A consumida começou a tocar uma melodia com seu violino, então Marcus sentiu seus ossos serem impulsionados para fora de seu rosto e formarem uma máscara de crânio. Através de seus vermelhos olhos de cristal, o menino olhou ao redor enquanto a multidão mascarada o aplaudia. Ele nunca sentira tanto orgulho de si mesmo.
A guerra também era algo prazeroso. Juntamente com Córade, Horácio e os outros mascarados, Marcus lutou contra grandes ameaças, e logo foi se dando conta de sua própria força.
— Daqui você não passa. – disse Marcus com os braços abertos e estendidos, bloqueando o inimigo.
O monstro era um bestiador, um demônio que se alimentava do ódio e sofrimento causado ao inocentes. Ele era alto, com quase três metros de altura, tinha pele preta e suja de sangue. Garras longas e pontiagudas no lugar de unhas. Músculos torácicos fortes e protuberantes, com a barriga côncava e magra. Suas pernas tinham ângulos abertos para frente, como a de um quadrúpede, e sua cabeça era similar a de um chacal, e fumaça vermelha saía de suas cavidades oculares. Sua postura resoluta fazia com que Marcus tremesse com medo. O bestiador mantinha-se ereto e imóvel. Não precisava se mexer para atacar, seus espectros caninos fariam o trabalho sujo.
Seu alvo era Aman Jaques, um dos feiticeiros de Vivian Obá que tivera sua alma presa ao corpo de um gato negro de olhos violetas. Normalmente o bruxo sabia se defender sozinho, era naturalmente mais poderoso do que um fantasma, mas seus poderes haviam sido bloqueados pelo veneno do bestiador, que conseguira deferir um golpe em suas costas. Apenas Marcus impedia que os cinco enormes rasgos na carne do gato aumentassem sua quantidade.
O menino havia destruído os vários necranis que o bestiador enviara contra ele, mas não era o suficiente. Córade havia lhe ensinado a usar magia de empatia, que o permitia fazer com que outros experimentassem sua morte, fazendo com que outros mortos se afogassem. E mesmo que seu inimigo não estivesse morto, pois nunca havia estado vivo, a empatia não era a única magia que Córade havia lhe ensinado. Com rapidez, o menino avançou antes que o bestiador invocasse mais espectros e fincou seus dedos no rosto do monstro. Quando os puxou para fora, trouxe consigo seu crânio negro de chacal, e o arrancou de sua face.
A fera ganiu como um cão ferido e então se desfez em fumaça rubra. Porcelana negra brotou sobre os ossos negros que deixara para trás, formando uma máscara de chacal na mão de Marcus. O fantasma olhou para trás e viu Aman fitando-o com um olhar sério, porém agradecido.
— Obrigado, rapaz… - disse Aman com esforço. – Estarei sempre em dívida com você.
— Não se preocupe com isso. – disse Marcus. – Somos uma família, certo?
— Certo… - concordou o gato com certa descrença. – Ainda assim, irei saldar esse débito… quando surgir a necessidade. E acredite… ela sempre surge.
A ascensão de Marcus continuou por anos, e logo sua mentalidade de criança se tornou o casulo para um jovem homem que teria que como tal que tomar decisões difíceis e complexas. Anjos, demônios, outros espíritos, feiticeiros… Em todas as batalhas os filhos da água se saíram vitoriosos de tal forma que muitos de seus inimigos resolveram se tornar seus aliados. Mas ainda havia a pior ameaça de todas: tutores.
— O Imperador dos Póstumos também tem um lar, menininho. Maior do que o de Vivian Obá. – explicou Ardina com um sorriso. – Você poderia ir para lá.
Os dois espíritos estavam na comunidade na qual Marcus nascera. Anos haviam se passado e o local agora estava destruído. Os barracões haviam sido queimados e derrubados. Havia buracos de bala e sangue seco por toda parte. Uma chacina acontecera ali. Um combate entre duas facções de traficantes. Porém, aquilo era um problema dos vivos. Não importava mais a Marcus.
— Já ouvi falar do Vale Nirvana. Sei qual é o preço de ficar lá. – disse Marcus de braços cruzados. – Não vou abandonar a legião. Sou leal a Vivian Obá. – ele ficou cabisbaixo. – Eu sinto muito, Ardina.
— Pelo o que, menininho? – perguntou Ardina com um ar pesado de quem já sabia a resposta.
— Os tutores estão tentando roubar os espíritos de volta, você sabe disso. Vivian não vai deixar que isso continue. – Marcus fechou os olhos e respirou fundo. – Esta noite, os feiticeiros irão se unir e conjurar uma maldição. Nenhum escravo do Imperador será capaz de pisar em qualquer lugar que esteja sob o domínio dos Filhos da Água.
Houve silêncio entre os dois, pois nenhum deles queria continuar a conversa. Sabiam quais seriam as próximas palavras a serem ditas.
— Contar isso a você é um ato de traição, espero que entenda isso. – disse Marcus olhando para o lado.
— Não contar isso ao Imperador também é. – Ardina sorriu com pesar. – Mas, contar seria um ato de traição a nós, menininho. Ao que sentimos.
Marcus não conseguiu conter o choro. Ele abraçou Ardina e silenciosamente disseram: Adeus.

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