A Ágora de Cinzas

4 0 0
                                    

…Agora.
Luz verde trouxe em seus lampejos a revelação do passado. Décadas se passaram em segundos pelos olhos de Charles e Leonardo, mostrando-lhes os eventos que motivaram Marcus a trair Vivian Obá e sua legião. Assim que o lampejo verde se dissipou, Charles soltou o amuleto que jazia sobre o corpo falso de Marcus. A corrente de madeira amoleceu e se transformou em barro.
— É falso. – disse Leonardo vendo a corrente de barro se transformar em lama e escorrer até o chão.
Ambos os fantasmas respiraram fundo por alguns segundos, o que lhes pareceu muito estranho, já que estavam debaixo d’água. Charles olhou ao redor, vendo novamente os desenhos entalhados no chão de barro. Muitos deles referiam-se a momentos do passado de Marcus que agora Charles compreendia, assim como ele também entendia o porquê do desespero de seu amigo em relação ao amuleto ser devolvido para Vivian Obá. O feitiço contido no amuleto falso não apenas lhe mostrou o que acontecera, mas também o fez sentir parte do que Marcus sentira na época, o que deixara Charles muito mais abalado e transtornado do que ele já estava.
— Não sei o que pensar sobre tudo isso. – disse Charles apoiando a mão no pé do corpo falso de Marcus. – Não sei se quero continuar com isso. Talvez seja melhor…
O menino de cabelos encaracolados não terminou de falar, mas estava claro para Leonardo o que queria dizer. Mesmo sem entender muito bem o que Vivian havia feito exatamente com aquele amuleto, ele não podia deixar de sentir que devolver o objeto a ela era o mesmo que deixar que ela torturasse crianças por mais décadas, séculos, milênios, ou sabe lá até quando. Será que valia a pena salvar Marcus? O próprio dissera que não, protestando contra o acordo de Charles. Porém, não se tratava mais de Marcus. Charles havia dado sua palavra à bruxa, e se lhe faltasse com ela…
“Não seria muito bom, não é mesmo?” – uma voz ressoou na mente de Leonardo, a voz de Aman.
O fantasma asiático sentiu seu rosto arder no local onde o gato feiticeiro o havia arranhado. Algo gelado se apossava de suas veias e avançava até seu olho esquerdo.
— O que foi? – perguntou Charles vendo o amigo cair de joelho no chão e apertar a mão contra o próprio rosto. – Mas o que…?
O olho esquerdo de Leonardo havia se tornado púrpuro e tomado uma forma felina larga e cintilante. A metade esquerda dos lábios do rapaz se curvou em um meio sorriso seco enquanto a outra se contorcia de dor.
— Olá crianças. – disse Aman através de Leonardo.
— O que está fazendo? Saia do Leonardo! – exigiu Charles irritado.
— Não. Gatos não gostam de água. – declarou Aman. – Além do mais, vocês precisam de mim agora mais do que nunca.
— Eu juro que vou te dar um bom banho depois disso. – ameaçou Leonardo, usando apenas a metade direita da boca. – Mas não vai ser com água…
O único olho que Aman controlava se moveu para o lado, como se ele estivesse olhando para Leonardo.
— Parece que o feitiço de Marcus foi bem efetivo. – prosseguiu Aman voltando a olhar para Charles. – Creio que ele pretendia dissuadir qualquer um que quisesse encontrar o amuleto. Ele usou magia de empatia, mas ao invés de compartilhar sua morte, compartilhou seu ponto de vista. Uma arma perigosa. Mesmo a legião de Vivian Obá provavelmente desistira do objeto após ver o que ela faz com ele.
— Duvido que isso fosse impedir aquela velha. – disse Leonardo se levantando com esforço.
— Não precisaria. Ela é uma submortal, tira energia da morte, mas está viva. – explicou Aman. – Os vivos não podem ir para onde o amuleto está, nem mesmo Vivian Obá.
Charles franziu o cenho, farto de todo aquele assunto, então ele deu as costas para Aman e para Leonardo e empurrou o corpo falso de Marcus para o lado, revelando o alçapão que vira nas lembranças do menino.
— Bem, eu não estou vivo. – Charles segurou a alça do alçapão, pronto para puxá-la, mas foi impedido.
Leonardo segurou seu braço com força.
— Acho que você já tomou decisões impulsivas demais por hoje. Desacelera. – disse seriamente.
Charles encarrancou seu rosto, insatisfeito e irritado, então soltou a alça.
— Onde esse alçapão dá, pulguento? Fala de uma vez. – resmungou Leonardo entredentes.
— Vocês parecem conhecer muito pouco do Mundo Morto, são como bebês aqui, então prestem atenção. Imaginem o topo de uma ampulheta. – silêncio. – Imaginaram?
— Sim. – respondeu Leonardo com a voz arrastada de tédio.
— Esse é o Mundo Vivo, a superfície da ampulheta, é onde a névoa fica, e onde a maioria dos fantasmas permanece. Contudo, ao contrário do que muitos pensam, o Mundo Vivo não é a origem de tudo, mas sim o fim. Agora me digam, se o topo da ampulheta é o fim, onde é o começo?
Silêncio.
— Na base. – respondeu Charles.
— Errado. – respondeu Aman imediatamente. – A base e o topo foram criados ao mesmo tempo, o que significa que a origem de ambas é…?
— O centro… ok. E daí? – irritou-se Leonardo.
— Há milhares de milhares de milênios atrás, apenas o centro da ampulheta existia, uma massa de pura energia. Porém, em algum momento, essa energia “vazou” do centro e se espalhou pela superfície, assim criando o Mundo Vivo. Como reação oposta, nas profundezas foi criado o Mundo Morto, e nele habitam os Lordes da Morte. Estão acompanhando até aqui?
Charles já havia ouvido falar sobre os Lordes da Morte em pedaços de conversas, porém, nunca entendera de verdade o que eles eram.
— Muito bem. – continuou Aman. – Retomando: Temos uma ampulheta, o topo é o Mundo Vivo, onde estamos agora. O centro é a origem dos mundos, é lá que fica o que vocês chamam de “Céu e Inferno”, mas não vamos falar disso agora. E a base da ampulheta é o Mundo Morto, é nele que estão os Lordes da Morte, e é lá que Marcus escondeu o amuleto, especificamente no lar de um dos Lordes.
“Há vários detalhes sobre isso tudo que são irrelevantes agora, mas eis o que precisam: - continuou Aman. – Um dos Lordes da Morte mais antigos é o Holocausto, o Lorde dos Corpos. Ele é responsável por todos os corpos dos mortos, e os mesmos estão ligados a ele. Por isso, em cada templo de cada fantasma há uma passagem que leva até a Ágora de Cinzas, o lar de Holocausto. Foi lá que Marcus escondeu o Amuleto de Moloque, e é para lá que o alçapão leva.”
Charles e Leonardo ficaram em silêncio por alguns segundos, processando toda a informação nova que haviam ouvido. Desde que morrera, Charles vira coisas cada vez mais insanas, e mesmo que a explicação de Aman intencionasse dar algum sentido a tudo aquilo, ele apenas se sentia mais confuso, o que o deixava ainda mais frustrado. Novas perguntas se formavam em seus pensamentos com a mesma velocidade que a vontade de não saber as respostas. Se pudesse, deitaria em uma cama e se enfiaria debaixo de grossas cobertas e dormiria por meses, isolando-se de tudo e de todos, mas nem sequer podia dormir.
— O que mais de útil você sabe sobre esse lugar? – perguntou Leonardo, quebrando o silêncio.
O rapaz paulista piscou seu olho esquerdo, e quando o abriu ele já não estava mais púrpuro.
— AH! Mas que gato maldito! – vociferou Leonardo com ódio. – Alguma barraquinha vai ter carne extra pra fazer churrasquinho depois disso.
Então seu olho esquerdo piscou novamente, retomando uma cor púrpura e aspectos felinos.
— Nossa conexão está acabando. Serei breve. – disse Aman com o olho arregalado. – Não deixem que os ocos os toquem. Voltem por onde entraram. E acima de tudo não confiem em…
O olho esquerdo de Leonardo piscou mais uma vez, dissolvendo a conexão com Aman e voltando a seu estado normal. Antes que tivessem tempo de processar as últimas instruções do gato, Charles liberou um pouco de magia de empatia para a mão de Leonardo que o segurava, fazendo com que o garoto sentisse como se alguém tivesse batido em sua mão com uma marreta.
— AH!!! – gemeu Leonardo soltando Charles e balançando a mão no ar. – Mas que merda, Charlie!
Charles puxou a alça do alçapão e abriu o portal, revelando uma esfera densa e negra. As cores de tudo que estava ao seu redor pareciam estar sendo distorcidas e sugadas aos poucos pela esfera, e ao mesmo temo cuspidas de volta pela mesma.
— Vamos. – disse olhando para a esfera negra. – Não temos mais o que fazer aqui.
Leonardo segurou a mão machucada e olhou para Charles. O menino estava cabisbaixo e sério. O doce jovem, gentil e carinhoso que Marcus e Otávia haviam trago para o prédio abandonado estava aos poucos desaparecendo, e Leonardo não fazia ideia de quem iria tomar o seu lugar.
— Ok. Vamos. – concordou Leonardo se reaproximando de Charles e segurando sua mão. – Juntos.
O menino de cabelos encaracolados acenou com a cabeça em concordância. Então os dois fantasmas pularam para dentro do portal, sendo tragados pela esfera negra.
Leonardo sentiu como se estivesse dentro de um oceano completamente negro, o que era irônico, já que estava dentro d’água antes de entrar no portal e não sentira nada. A sensação era extremamente gelada, de forma que se estivesse vivo, morreria de novo. Após alguns segundos, a situação se inverteu, tornando tudo ferventemente quente e seco. Era tão luminoso que Leonardo ficou sem enxergar por vários minutos. Quando finalmente recuperou a visão, preferiu ter continuado cego.
Ambos os fantasmas estavam em um corredor largo e escuro. Uma cúpula invertida pendia no teto como um pequeno lustre, era feita de pedaços de vidro e cristais vermelhos que refletiam feixes de luz pelo corredor, dando certa iluminação ao lugar.
As paredes e o chão não eram feitas de pedra, metal, ou qualquer outro tipo de material inorgânico, mas sim de ossos. Fileiras e fileiras de esqueletos estavam empilhados uns em cima dos outros, dando forma a estrutura do corredor. Próximo a Leonardo e Charles, havia um esqueleto pequeno com ossos bem gastos e finos. Em sua boca havia uma esfera negra igual a do portal pelo que passaram, porém sete vezes menor. E em suas mãos jazia uma corrente de madeira, o verdadeiro Amuleto de Moloque.
— Marcus… - sussurrou Charles olhando o esqueleto. – Esse é o verdadeiro corpo dele… se isso é possível.
— Vamos pegar o amuleto e ir embora. – disse Leonardo tirando o amuleto das mãos do cadáver.
Os fantasmas se colocaram de pé e olharam para baixo. Através dos espaços dos ossos, podiam ver que abaixo dos esqueletos também havia corpos com menores níveis de decomposição. Um dos lados do corredor levava a mais corredores, e o outro levava a uma abertura larga e semicircular. Charles se aproximou da abertura, sentindo os ossos sob seus pés gemerem, e então viu o que havia além. Eles estavam em uma espécie de desfiladeiro. Duas enormes faces se erguiam, ladeando um caminho de terra a centenas de metros abaixo de Charles. As faces do desfiladeiro tinham como base corpos ainda não decompostos, e seguiam para cima conforme o nível de deterioração aumentava. Para que lado que olhasse, não conseguia ver o fim do desfiladeiro e nem o começo.
— Charles, melhor deixarmos esse lugar enquanto podemos. – disse Leonardo se aproximando.
Charles olhou para trás, para ver Leonardo, então o puxou pelo braço e se jogou com ele para fora do corredor, caindo pelo desfiladeiro. Como eram espíritos, não morreram com a queda, mas sentiram ondas de dor espatifando todos os seus ossos astrais.
O céu acima deles era feito de nuvens escuras e cinzentas da quais cinzas eram salpicadas como neve. Trovões vermelhos se acendiam e se apagavam em sua massa escura, revelando momentaneamente o que havia ao redor. Leonardo olhou para os lados e viu inúmeras aberturas nas imensas faces do desfiladeiro. Não havia mais como saber qual era a de qual vieram. Estavam perdidos.
— Por… quê.…? – perguntou Leonardo com esforço enquanto seus ossos se recompunham.
Charles ficou em silêncio deitado no chão de terra, olhando para cima. Quando finalmente haviam se recuperado, ele se levantou e disse:
— Tinha alguém atrás de você.
— Como assim tinha alguém atrás de mim? – resmungou Leonardo se levantando também.
— Não sei explicar direito. – disse Charles olhando ao redor. – Era um… corpo, eu acho. Mas… diferente.
— Você não está falando coisa com coisa.
Charles arregalou os olhos e puxou Leonardo pela jaqueta de couro, então apontou para frente.
— Ali… foi aquilo que eu vi.
Leonardo seguiu sua indicação e viu um ser estranho andando ao longe no caminho de terra. Ele parecia um esqueleto, mas ao redor de seus ossos havia uma membrana translúcida e azulada que lhe dava uma silhueta humana. O ser translúcido saiu do caminho de terra e entrou em algum lugar na face esquerda do desfiladeiro. Atrás dele, vieram outros seres. Alguns destes eram como o primeiro, esqueletos envoltos pela membrana azulada, outros tinham apenas órgãos dentro da membrana, ou possuíam pele e carne em algumas partes de seu corpo.
— Que ótimo. – disse Leonardo rindo de nervoso. – Isso é mesmo fantástico.
— O que foi? – perguntou Charles sem tirar os olhos da trilha de seres translúcidos.
— Temos menos de dois dias para entregarmos o amuleto àquela velha, e aqui estamos: em um mundo bizarro feito de corpos, com coisas estranhas que eu não faço ideia do que são, e sem saber onde fica a saída. Por que eu não trouxe uma garrafa de cinquenta e um?
— Eu sei como chegar à saída. – disse Charles com um sorriso seco enquanto mantinha seu dedo apontado para a fila de seres.
Leonardo franziu o cenho e apertou os olhos enquanto começava a entender o que Charles queria dizer.
— Não… não, não, não. Nós não vamos seguir essas coisas. Não mesmo!
— É o único caminho. – Charles abaixou a mão. – Elas estão entrando em algum lugar, e uma delas estava no nosso corredor, se as seguirmos talvez consigamos voltar para ele.
— Isso é bem arriscado. Você já notou o tamanho desse lugar? Podemos…
— Léo, eu estou indo. Você pode ficar aqui e tentar escalar os corpos se quiser.
Dito isso, Charles deu as costas ao amigo e começou a seguir o caminho de terra. Leonardo cerrou os punhos com raiva e o seguiu.
— Ok. Mas vamos tomar cuidado. O gato disse para não deixarmos “os ocos” nos tocarem. Não sei se ele estava falando dessas coisas, mas de qualquer jeito vamos manter distância.
— Que seja. – Charles deu de ombros.
Os dois fantasmas andaram sorrateiramente pelo caminho até estarem bem próximos da fileira dos seres translúcidos. Eles se dirigiam para uma entrada na face esquerda do desfiladeiro parecida com a abertura da qual Charles e Leonardo haviam caído, porém feita de corpos nus e recém-mortos. Olhando para os seres de perto, Leonardo notava que eles não tinham rostos, apenas duas cavidades fundas no lugar das narinas. Um deles, que possuía um rim e apenas a parte inferior de seu esqueleto, virou a cabeça na direção dos fantasmas e dilatou as narinas, como se estivesse sentindo o seu odor.
Leonardo pegou na mão de Charles e o puxou para trás, afastando-se do ser translúcido até que ele perdesse seu rastro. A criatura então ficou parada olhando ao redor até que fosse a última da fila que não havia entrado na abertura do desfiladeiro, quando se deu por vencida, seguiu suas companheiras.
— Vamos. – disse Charles avançando.

Deus dos ErrosOnde histórias criam vida. Descubra agora