A Cura de Fogo

8 1 0
                                    

A face de Otávia refletia-se em tons de necrose no olhar da alva pomba de fogo. Será que a via? Será que a notava? De toda forma, a menina morta estava presa, paralisada em seu vislumbre, tentando veementemente não tremer com o abraço do pavor temoroso. Charles, por outro lado, estava mais confuso do que amedrontado. Em silêncio, ele olhou para o cenário no qual se encontrava a ave de flamas. O ser estava pousado em um campo gramado repleto de lápides que descreviam o lento falecimento da luz do dia. O cemitério no qual o menino fora enterrado.
Havia um silêncio irritante cantando aos ouvidos da paranoia. Uma mudez inconformada que logo fora assassinada com grito sofrido de desespero. Um solo agudo que, voz a voz, abria uma orquestra completa. Otávia segurou a mão de Charles, apertando-a com força digna de um semideus. A pomba soltara-a de seu olhar e virara a cabeça para trás, ansiosa para ouvir o concerto. Então eles vieram.
Ao longe pareciam estrelas brancas, apagando-se uma a uma. Mas não eram estrelas.
— Otávia… - gemeu Charles arregalando o olhar.
Não muito longe, uma garota com a aparência de três anos apareceu. Ela corria e gritava. Chamas brancas comiam-lhe as costas, as pernas, e os olhos. A pele de seu rosto endurecia, rasgava-se e se desprendia de uma carne sangrenta que, aos poucos, secava incinerada. Ela berrava, e o som de seus gritos não era parecido com nada que Charles tivesse ouvido. Um pio oscilante, rouco e agudo como de um animal torturado. Ela corria, corria… corria. Mas não havia fuga das chamas. Não havia êxodo para este holocausto. Então continuou a correr, até que sua garganta explodisse em fogo e suas pernas fossem reduzidas a ossos quebrantados, culminando em sua queda.
Charles assistiu à menina rastejar em busca de ajuda até ser completamente devorada pelas chamas e desaparecer, deixando apenas suaves linhas de fumaça.
— Otávia… - voltou a chamar, mas a garota estava em choque. – Estamos seguros aqui, não estamos? – perguntou Charles puxando seu braço. – Não estamos?!!! Otávia?!
Outros fantasmas estavam desaparecendo. Consumidos pelo fogo. Eram tantos… a fumaça do massacre cheirava a doces, um odor saboroso que fazia com que a garota quisesse vomitar seus próprios órgãos. Então, ela os viu. Duas figuras aladas que traziam a chacina quente. Uma usava uma armadura e empunhava uma lança cuja lâmina assemelhava-se a um imenso cutelo. A outra trajava um volumoso casaco de pele branca e segurava um cajado brilhante cuja ponta era feita de fogo.
Os espíritos que estavam no cemitério tentavam correr, mas o lanceiro era rápido. Com um bater de suas asas ele alcançou uma mulher, imediatamente descendo sua lança sobre ela. A mulher tentou se esquivar, mas o cutelo arrancou-lhe seu ombro esquerdo, desprendendo um de seus braços. Ela caiu no chão enquanto suas partes decepadas tornavam-se massas de fogo. O lanceiro pousou e pisou em seu pescoço, impedindo-a de fugir para começar a fatiá-la. Primeiro cortou a mão que lhe restava, dedo a dedo, depois sua perna direita e um de seus seios. Por fim, partiu-a ao meio, seguindo uma linha de sua virilha até sua fronte, incendiando tudo o que restava da pobre finada.
O outro genocida mal se movia. Olhava distraído para o sol poente por minutos para então apontar a ponta flamejante de seu cajado na direção de algum fugitivo. A chama, então, dava forma a imensos rostos de leões brancos que se esticavam em alta velocidade, abocanhando fantasmas e incendiando os locais que mordia.
— Eles não podem entrar aqui, podem? – perguntou Charles dando um passo para trás sem soltar a mão de Otávia. – Podem?!
A pomba voltou a olhá-los. De alguma forma, ela parecia sorrir.
Sem esperar nem mais um segundo, Otávia quebrou sua paralisia e puxou Charles para trás, correndo o mais rápido possível na direção oposta à porta de cristal. Estava tão desesperada que começara a tropeçar em seus próprios pés, caindo na água anil várias vezes.
— Como eles podem entrar? Achei que aqui fosse seguro! – questionou Charles.
— Seria, se você estivesse sozinho. – disse levantando-se. – Necrotérios podem ser trancados, caso seus donos queiram, mas não se houver mais alguém com eles. Foi assim que conseguimos te salvar daquele Curumim.
— Mas…
— Sem “mas”, Charles. Cale a boca e corra! – ordenou voltando a puxá-lo pelo braço.
Os dois se apressaram até chegar à outra extremidade do templo, o segundo ponto de encontro entre os jardins com outra porta de cristal idêntica à anterior.
— Quando sairmos, corra como se o diabo estivesse atrás de você, pois algo muito pior estará. – instruiu. – Não podemos parar nem por um milésimo, temos que ir o mais longe possível até achar um caminho na névoa e voltar para casa. Entendeu?
— Sim…
— Ótimo! Vamos!
Assim que Otávia se virou para a porta, parou de se mover. Outra pomba de fogo lhes bloqueava o caminho.
— Por aonde vamos? O que vamos fazer? – perguntou Charles. – Otávia?
A garota não conseguia mais conter seu desespero. Sabia o que aconteceria. Vira acontecer antes. Ela se encolheu na água e arranhou a própria testa, frustrada com a situação. Queria desistir, deixar que a pegassem, mas… ele estava ali. Esperara por tanto tempo… não podia abandonar tudo agora. Não podia.
— As flores! – disse Otávia se recompondo. – Vamos nos esconder nelas. Vá para um jardim e eu vou para o…
Um buraco se abriu violentamente na garganta de Otávia, fazendo sangue jorrar no rosto de Charles. Por ele passara uma corrente branca que parecia ser feita de luz. Seus elos se moveram rapidamente, enrolando-se no pescoço da garota e penetrando em seu olho direito até sair pela parte de trás de sua cabeça.
Charles não hesitou. Deu meia-volta e se jogou dentro de um dos jardins enquanto novas correntes transpassavam os pulsos e os calcanhares de Otávia, avançando posteriormente para seu abdômen e para sua cintura. Áreas perfuradas que pareciam estar sendo queimadas pelas correntes de luz. O sangue que as sujava fervilhava até evaporar. A menina caiu de joelhos, boquiaberta e absorta. Apesar da dor indescritível que a dominava, não conseguia ter uma reação que a expressasse. Estava em um estado de transi, infectada pelo próprio horror.
— Ora, esta aqui eu conheço. – disse alguém entrando no templo.
O homem era alto e esguio. Sua pele era branca como nuvens, e seus cabelos pareciam curtos e finos fios de luz. Ele tinha enormes asas, arqueadas como as de cisnes, e usava uma armadura incompleta. Um colete que se assemelhava a finas patas de uma aranha marcando suas costelas, ombreiras ovaladas simbolizando abdomens dela, e escarcelas feitas com três chapas de um metal luminoso que lhe cobriam os glúteos e as laterais das coxas. Em sua mão, empunhava-se um cajado branco, da ponta do qual se estendiam as cinco correntes que acometiam Otávia. Apenas seu olhar cor de musgo escapava de sua brancura doentia.
— Do que está falando? – disse outra pessoa ao seu lado.
Esta era uma mulher. Sua fisionomia assemelhava-se a de seu companheiro, porém, no lugar de uma armadura, a mulher trajava simples roupas brancas e um diadema com longas orelhas de coruja. Não portava nada além de uma cabaça, um recipiente grande e oco composto por duas partes redondas, oculta por panos e presa às suas asas como uma mochila. Seus olhos eram vermelhos como feridas abertas.
— Não se lembra, Defádora? Quase capturamos essa aqui há alguns anos. – disse o homem aproximando-se e fazendo com que as correntes se apertassem cada vez mais sobre corpo de Otávia.
— Não costumo me lembrar de alvos. – respondeu Defádora.
— Eu também não. Apenas daqueles que escapam. – disse o homem ficando de frente para Otávia. – Sim, é você. Eu me lembro. Você e mais alguns correram de mim uma vez, mas nem todos conseguiram fugir, não é mesmo?
Otávia tentou virar o rosto para o lado, em busca de ajuda, em busca de Charles, mas o menino estava deitado sob as flores, imóvel e escondido.
— O que está acontecendo aqui? – perguntou outra pessoa.
De seu esconderijo Charles viu dois homens alados chegarem pelo lado oposto, os dois que vira antes incendiando espíritos. O lanceiro vestia-se de forma semelhante ao mestre das correntes, porém, ao invés de seu colete ser feito de patas de aranha, representava a face de um javali com duas presas pontiagudas espetadas para fora. Suas ombreiras pareciam serras circulares, e seus olhos eram de um marfim velho e amarelado. O outro parecia estar vestindo uma enorme juba branca de leão, perdido em um olhar azul, distante e vítreo.
— Mancarê achou uma conhecida. – brincou Defádora.
— Deixe-me cortá-la. – pediu o lanceiro.
— Não. – negou Mancarê, pondo-se entre Otávia e o sádico anjo. – Ela tem amigos.
— Vou cortá-los também. – insistiu.
— Sim, Baríxope, você irá cortá-los. Mas antes, temos que saber onde eles estão.
— É uma rata de ninho então. – o lanceiro cuspiu no rosto de Otávia e a chutou nas costelas, fazendo-a tombar na água. – Diga-nos onde as outras ratazanas estão!
Não havia em Otávia nada além de dor, um sofrimento imensurável que descia em uma única torrente de lágrimas por sua face esquerda. Ela queria gritar por ajuda, mas para quem? Charles a abandonara, e mesmo que não o tivesse feito, como poderia ajudá-la? Não haveria ajuda.
— Hei… – chamou Mancarê, virando o rosto de Otávia para cima e acariciando seu rosto. – Antes de começarmos, eu quero que você entenda algo: estamos aqui para te ajudar. Para te curar. Quanto mais cedo você entender isso, mais cedo poderemos assistir você e os seus amigos.
Então o anjo afastou sua mão, e uma expectativa nasceu em seu olhar verde. Uma ânsia sanguinolenta. Ele fincou seu cajado na água e suas correntes começaram a se mover, saindo da e entrando na carne de Otávia várias e várias vezes. Furando-a em todas as áreas de seu corpo, exceto no rosto. Chorar já não era o suficiente, seus berros começaram.
— Onde fica o seu ninho? – perguntou Mancarê calmamente, mas ela não respondeu.
O anjo apertou seu cajado, dando um novo comando às correntes. Os elos de luz afundaram lentamente na carne de suas coxas, fazendo-a gemer de dor, e se enroscaram em seus ossos, apertando-os mais um pouco a cada segundo.
— Rena……! – berrou Otávia, suplicando por um nome que não pronunciava há muito tempo. – Re…! NÃO! Renato…! AHHHH!!
— Isso. Chame por ajuda. Chame os seus amigos. – incentivou Baríxope, lambendo a lâmina de sua lança com um sorriso perverso. – Quero conhecê-los.
— Onde fica o seu ninho? – perguntou Mancarê mais uma vez, e novamente não houve resposta.
Então duas correntes entraram pelos ouvidos da garota, e outras duas por seu nariz. Os berros de Otávia se tornaram tão intensos que se tornaram guturais e desumanos, como se o timbre jovial de sua voz estivesse se transformando em algo débil e monstruoso. Charles tapou os ouvidos e tentou segurar seus próprios gritos. Não conseguiria mais suportar aquilo. Não iria. Precisava sair dali, mas estava paralisado de medo.
Inerte, ele apertou suas mãos contra os próprios ouvidos, cerrando os olhos com força por horas até que finalmente os gritos parassem. Quando voltou a abri-los, deparou-se com o olhar mutilado e sem vida de Otávia imerso na água. Pela primeira vez desde que a vira, a menina fantasma parecia estar morta.
As correntes saíram completamente de seu corpo e se enroscaram umas nas outras, formando uma massa grossa de elos brancos que agora se preparava para atingir um único ponto de seu corpo. Mas, antes que isso ocorresse, a garota moveu seus lábios tenuamente.
— O quê? O que você disse? – perguntou Mancarê, impedindo suas correntes.
— A… a… ajude…
Seu olhar estava fixo em Charles. Era a ele quem pedia por socorro.
— Ajude? – Mancarê franziu o cenho. – Não. Não há ajuda. Somente você pode acabar com isso.
Charles lembrou-se de como Otávia o havia salvado do demônio das flores. Seu rosto angustiado guiando-lhe para longe do perigo. E antes que a massa de elos fizesse seu movimento mais cruel, ele se virou e nadou silenciosamente para longe dali, para longe de Otávia. Não haveria salvação para ela. Mas talvez… talvez Charles conseguisse escapar. Então continuou a nadar, oculto pelas flores até emergir na outra extremidade do templo e se deparar com a ponta de um cutelo direcionada ao seu rosto.
— Achou mesmo que iria escapar? – perguntou Baríxope planando sobre ele. – Não há quem possa.
O anjo pousou diante de Charles e chutou seu rosto, estourando seu osso zigomático e abrindo uma cratera sangrenta acima de sua bochecha direita.
— Seu verme covarde. Vou fatiar você bem vagarosamente, e ainda assim não vai sentir nem metade da metade do que a ratinha que você abandonou está sentindo agora.
— Mas você vai. – sussurrou uma voz conhecida.
Em um instante o anjo estava preparando sua lança para avançá-la contra Charles, no outro seus olhos tornavam-se vermelhos até se desfazerem em duas pequenas cachoeiras pastosas de sangue. Charles observou enquanto o anjo largava sua lança e caía de joelhos na água, balbuciando palavras sem nexo em um repertório catatônico. Uma cartola escura havia sido colocada sobre sua cabeça.
— Acho que isso é meu. – sorriu Nepecrapto retomando seu chapéu.
Não havia palavras. Charles fitou a figura bizarra fincar sua bengala nas costas do anjo caído, como um general que posicionava sua bandeira de vitória.
— Char…les… por que você chora? Onde está Otávia? – perguntou o ser bizarro assumindo uma postura severa. – O que você fez?
Charles olhou para trás, para mais uma ação imperdoável que cometera.
— Eu… eu a deixei… - a marca em seu peito começara a arder de forma descontrolada.
— É mesmo? – perguntou Nepecrapto, vendo veias negras tomarem o pescoço do menino. – E o que vai fazer a respeito?
Charles apertou sua marca. Estava começando a perder o controle de si mesmo.
— Eu não… não… - então voltou seu olhar para o tutor. – Por favor? Me ajude…
— Não sou seu amigo, Charles. – declarou. – Todavia, você não é meu único aluno.
Nepecrapto bateu sua bengala na água, fazendo com que uma única onda circular passasse por ele, por Charles e pelo anjo catatônico. O reflexo na água se deformou até se transformar no retrato de algo completamente diferente. Os três agora estavam na outra extremidade do templo, onde a água já estava escura e quente com o sangue de Otávia, que agora tinha cinco correntes puxando seus braços, suas pernas e sua cabeça em direções diferentes.
— Não pode ser… - disse Mancarê arregalando os olhos ao ver Nepecrapto.
Antes que pudesse dizer algo mais, Nepecrapto lançou sua bengala contra Defádora. O objeto voou como uma flecha, atravessando o ventre da anja e estilhaçando a cabaça presa as suas costas em centenas de milhares de cacos de cristal.
— Não vão me prender com isso. – disse Nepecrapto com um sorriso.
— Lequefire! – vociferou Mancarê sem tirar os olhos do fantasma.
O anjo com o casaco de leão apontou seu cajado para Nepecrapto. Contudo, antes que conseguisse inflar suas chamas angelicais, o bizarro exalou um pequeno sopro, fazendo com que o fogo se tornasse negro e inflasse para direção oposta, incendiando o rosto do anjo. As chamas pretas se espalharam por suas roupas e logo Lequefire estava completamente tomado por elas.
Ele tentou bater suas asas para afastar o fogo de trevas, mas suas penas desfizeram-se em cinzas e fumaça. Então, uma corrente branca foi lançada sobre sua silhueta, e o envolveu como um casulo, abafando o fogo. Outras duas correntes fizeram o mesmo movimento com os corpos de Defádora e Baríxope, e logo restara apenas um anjo ileso.
— Eu esperava encontrar apenas um ninho de fantasmas. Nunca imaginei que encontraria você. Nepecrapto, um dos consumidos mais procurados pelos Lordes da Morte.
— E considera isso… sorte? – questionou Nepecrapto dando um passo a frente enquanto lágrimas de sangue escorriam por suas bochechas.
— Vou levá-lo comigo. – jurou Mancarê. – E mesmo que eu não consiga isso…
As correntes começaram a rasgar os tendões de Otávia, iniciando seu desmembramento.
— Seja rápido. – disse o bizarro a Charles.
Nepecrapto jogou sua cartola para o alto e abriu sua mão direita. Sua bengala deixou o corpo de Defádora, rodopiando velozmente até atingir as correntes de luz, destruindo cinco de seus elos, separando-as de Otávia. Rapidamente, Charles alcançou o corpo da garota e a puxou para longe do anjo. As correntes partidas se retraíram como tentáculos feridos, mas já estavam prontas para revidar. Charles cobriu o corpo de Otávia com o seu próprio, esperando receber o golpe em seu lugar. Mas, ambos, de alguma forma, foram sugados para dentro da cartola de Nepecrapto, assim como ele.
As correntes atingiram o chão enquanto a cartola implodia até desaparecer no ar, como um truque de mágica. Mancarê rugiu de fúria e recolheu todas as suas correntes, guardando-as na ponta flamejante de seu cajado branco. Lequefire, o anjo de fogo, fora reduzido a um corpo nu em carne viva e queimada, com asas escuras e arruinadas. Baríxope babava absorto por convulsões epiléticas, e Defádora, ainda consciente, pressionava o ferimento em sua barriga com as mãos em uma tentativa pobre de estancar o sangramento.
— Somos apenas batedores… não… tínhamos como… - ofegou a anja. – Não se aflija… com isso.
— Eu sei. Não é isso que me aflige. – admitiu Mancarê, ajoelhando-se ao seu lado para ajudá-la.
— E… o que é?
— A garota… - disse olhando para a piscina de sangue que fora deixada. – Por que enfrentar três Raonins para resgatar uma alma que eu já havia tocado? Por que um consumido se arriscaria por uma garota que já está fadada a inexistência?

Deus dos ErrosOnde histórias criam vida. Descubra agora