Dedo por dedo, tom por tom, e cada pensamento. Todos banhados em ácido, corroendo-se no esvanecer. Mesmo a após a morte, o medo não só se fazia presente, mas também não deixava espaço para nenhuma outra emoção. Charles olhou ao redor, procurando em desespero por Nepecrapto, mas o crápula não estava lá. Havia o abandonado. Assim como todos os outros. Pior que todos os outros.
O menino ofegou e tentou correr para fora da casa, mas assim que pisou no chão sua perna esquerda se esmigalhou, dando luz a centena de cacos pálidos que evaporavam logo após o parto. Berrou com a sensação lancinante. Sabia que não possuía um corpo, que tudo aquilo era apenas uma projeção de sua mente, mas a dor de desaparecer, o sofrimento de ser esquecido era mais insuportável do que qualquer tipo de male físico.
— Não… - balbuciou Charles vendo seu braço esquerdo e seu pé direito começarem a se destruir.
Estava tão perto da porta… talvez conseguisse se arrastar e fugir. Mas era isso que queria? Aquela era sua casa. Era um morador tanto quanto os outros. Por que então Charles teria de fugir? Podiam ter começado a esquecê-lo, mas ele ainda estava ali. Não permitiria… não, não permitiria… Uma nova emoção chegava ao mundo de seu coração. Mais ácida que a alegria dos vivos, mas quente que as chamas do Sol, e ao mesmo tempo gélida como um cadáver podre.
— Não… - repetia Charles focando seu olhar como uma mira de arma. – Não… não… NÃO!!!
Como se o tempo voltasse, traços de fumaça saíram do chão e juntos reformaram seu corpo de fantasma. A ardência dos risos ainda estava em seu ser, como peçonha nas veias, porém, não era o único veneno. Algo rasgou sua imagem de dentro para fora, dilacerando uma pequena parte de seu peito esquerdo com uma luz índigo escura. Mas não importava. O menino não desviaria seus olhos agora. Não. Agora ele iria ser lembrado.
— Esta é minha casa… - disse Charles olhando para Ágata. – Minha casa. MINHA!!!
Então a imagem em preto e branco de um homem de chapéu e bigode em uma fábrica tomou lugar na tela da televisão, poucos segundos antes que a mesma queimasse em estática.
As risadas pararam. Não havia mais graça. Ágata ofegava e segurava a mão de Fábio, o choque estampado em seus claros olhos castanhos.
— Cara… o que foi isso? – perguntou alarmada.
— Deve ter dado problema no sinal. – disse Fábio calmo, mas sem tirar os olhos da estática.
O garoto havia sido afetado de outra forma, não estava com medo ou assustado, mas intrigado. Não se importara muito com a estática, mas com a imagem que a precedeu.
— Eu acho que eu vi o Charles Chaplin… - disse Fábio.
Ele e Ágata ficaram parados olhando para televisão por um momento, então Fábio balançou a cabeça e disse.
— É. Deve ser mesmo um problema de sinal. Trocou até o canal. – constatou.
— Eu acho melhor eu ir agora. – disse Ágata claramente ainda impressionada. – Não me sinto muito bem.
— Tudo bem. Eu levo você.
As crianças saíram da casa sem mais delongas, deixando Charles sozinho e a salvo finalmente. A raiva em seu coração aos poucos se aquietava, mas a profundidade da dor em seu peito esquerdo permanecera acordada. O menino ofegou cansado com o esforço e olhou para baixo.
— O quê…? – disse a si mesmo.
Ele esticou a blusa para frente e viu uma marca delineada em sua pele. Um círculo acompanhado por um traço fino, longo e triangular no topo, e por uma semicircunferência aberta na base.
— Muito bem. – disse Nepecrapto apoiando sua bengala próxima ao rosto de Charles. – Bela tatuagem.
— O que é isso? – perguntou Charles tentando se sentar com dificuldade.
— Isso é um “esquizograma”. Existem treze deles e apenas os fantasmas que não conseguem se desapegar dos vivos os recebem. – explicou Nepecrapto. – Tenha muito cuidado.
— Por quê? O que isso faz? E por que comecei a desaparecer? – questionou.
— Eu disse que a morte não pode viver. A alegria e felicidade dos vivos são inóspitas para nós. Quanto à marca… bem, você logo vai descobrir o que ela faz.
— Mas você… - tentou dizer Charles, mas a imagem de Nepecrapto começara a se fundir com as sombras da casa.
— É uma pena… realmente é… - então desapareceu.
Charles permaneceu sentado no chão da cozinha, refletindo sobre tudo que acontecera, até que Fábio retornou a casa. Ele havia dito seu nome. Charles Chaplin obviamente não era ele, mas era seu nome. De alguma forma, em meio ao desespero e a raiva, Charles havia encontrado um jeito de ser lembrado.
Aquele dia havia chegado ao fim, e mais uma vez Charles passara a noite ao lado do irmão. Sempre que o garoto dormia, um símbolo se iluminava como luz negra na parede. Tinha a forma de um pegador de sonhos verde com três pingentes de penas. Era sempre incandescente e forte, mas naquela noite sua luz estava um pouco mais fraca, e um de seus pingentes havia desaparecido, seja lá o que isso significava. Mas uma coisa era certa, Charles fizera contato, interagira com o mundo dos vivos. Não pararia agora.
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Deus dos Erros
HorrorCharles Correia era um adolescente gentil e amoroso, porém, um gesto de carinho flagrado por aqueles que cultuam o ódio tira-lhe a vida. Agora, o rapaz deve se ajustar a sua pós-vida com o auxílio de um tutor cujas lições lhe ensinarão que não há pa...