O Litoral dos Natimortos

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O lugar que dá as melhores lembranças também é o que pode guardar as piores memórias. Quanto mais sentimentos são atrelados a algo, mais frágil esse algo se torna. Pode destruir um coração de dentro para fora justamente por já morar em seu interior.
Os andares escuros, sujos e cinzentos do prédio abandonado de Marcus eram assombrados pela ausência de assombradores. O menino subia pelas escadas de incêndio, entrava em cômodo após cômodo, seguindo o som de passos que ecoavam às suas costas. Sempre que os ouvia, virava para trás e via alguém deixando o lugar. A barra de uma saia, as costas de uma jaqueta, sapatos, pés. Todos se movendo rápido demais para que Marcus conseguisse segui-los. Indo por uma trilha sem rastros.
Às vezes, Marcus os ouvia gritando, então corria desesperado pelo prédio, tentando achá-los.
— Ava! Ana! – berrou Marcus abrindo a porta de um antigo escritório.
Ouvira as duas menininhas gêmeas, que acolhera há anos atrás, gritando, porém, quando abrira a porta tudo que encontrara foram marcas de combustão no chão, e um forte cheiro de carne queimada. O menino caiu de joelhos e vomitou. Lembranças invadiam sua mente e empurravam as lágrimas para fora. Ava e Ana já não faziam parte da família há muito tempo. Foram incineradas pelo fogo branco dos anjos enquanto brincavam em um parquinho. Marcus havia chegado a tempo apenas de ver seus ossos desaparecerem.
Depois, mais tarde ao dia, o menino ouvia um choro desesperado. Era de Otávia.
— Renato! Não!!! NÃO!! Volte!!!
Os berros da garota sempre saiam de um quarto e se mudavam para outro assim que Marcus se aproximava. Ele não conseguia entender o motivo do desespero da amiga. Renato estava bem, eles haviam o acolhido também. Mas… depois de horas correndo atrás de Otávia, ele se lembrou.
— Não faça isso! – pediu Marcus entrando na Sala dos Desenhos, onde os rabiscos de cada fantasma que vivia ali marcavam a parede.
Não havia mais nada além de fumaça negra dentro do cômodo, e apenas um desenho estava rabiscado na parede. Um menino de boné com sete xises arranhados ao seu redor e mais um rasgado em uma foto três por quatro presa à parede.
Marcus bravejou com ódio e socou a parede várias vezes. Sempre se sentira frustrado com o que acontecera a Renato. O rapaz não aguentara a sua nova realidade, revoltara-se com tudo e todos, até mesmo com Otávia, sua namorada. Acumulou ódio e tristeza até decidir fazer algo estúpido. Matou o assassino da namorada, fazendo com que ele atirasse em si mesmo no exato local onde acertara a garota ao matá-la. Depois de tal feito, Renato foi completamente tomado pela Marca dos Divididos e se tornou um espírito consumido.
Eles nunca mais o viram.
Marcus continuou em suas busca pelo que lhe pareceu ser dias seguidos, sem jamais alcançar nada. Quando finalmente não aguentava mais a solidão, subiu até o topo do prédio, onde alguns cômodos ficavam a céu aberto por nunca terem sido terminados. Não havia nada além de nuvens, neblina e chuva ao redor, nenhuma casa ou pessoa em Nagameiro podia ser vista. Exceto por uma.
Sobre o terraço do prédio havia um barracão feito de placas de alumínio, MDF e isopor. Havia uma abertura falha e retangular na parede frontal da estrutura. Luz irradiava de dentro, vinda de um lampião. Marcus se aproximou até conseguir ver a silhueta de uma sombra no interior do barracão. O contorno de uma mulher segurando um garfo.
— Não… - sussurrou para si mesmo enquanto usava as duas mãos para proteger a barriga.
O fantasma mulato ainda se lembrava com clareza do “carinho” que sua mãe gostava de lhe dar toda vez que o via. Não iria entrar naquele barracão.
— NÃO! – Nunca mais entraria naquele barracão.
Ele correu pelas escadas de incêndio, descendo para outros cômodos. A solidão iria lhe parecer um alívio perto do terror que sentia ao estar na casa de sua família original. Todavia, sempre que entrava em um novo andar, via-se de volta ao terraço com o barracão. E cada vez que o fazia, a silhueta de sua mãe se tornava mais clara e próxima, até que ela finalmente apareceu fora do barracão.
— Moleque nojento. – disse a mulher andando a passos arrastados. – Moleque imundo. Eu deveria ter abortado você.
— Não, mamãe… - tremeu Marcus se encolhendo no chão e tapando os ouvidos.
— Venha aqui garoto. – chamou a megera a centímetros dele. – Mamãe trouxe comida.
Ela começou a usar o garfo.
— PARA!!! PARA!!! – implorou Marcus.
Ele esperava sentir as investidas de sua mãe contra suas costas e barriga, mas não sentiu nada. A mulher já não gritava mais com ele, ao invés disso, risadas longas explodiam em deleite. Quando finalmente conseguiu parar de chorar e abrir os olhos, viu-se sentado em uma praia com dezenas de dezenas de pessoas ao seu redor. Todas olhando para ele enojadas e desdenhosas. Riam e apontavam ou simplesmente o encaravam com desprezo.
— Finalmente. – disse alguém abrindo caminho pela multidão até Marcus. – Achei que nunca fosse parar de chorar. O que foi? Teve um pesadelo? Não se preocupe. Mamãe está aqui.
Horácio, um dos soldados mascarados de Córade que já fora amigo de Marcus muitos anos atrás, antes de sua traição, se aproximara juntamente com Vivian Obá.
A bruxa viu a incredulidade matar sua confusão a cada segundo que se passava até que ele finalmente começara a compreender a situação.
— Isso mesmo. – disse Vivian sem precisar ouvir as perguntas que inflamavam a garganta do menino. – Você tem sorte, Marcus. Seus amigos acharam o amuleto, e estão o trazendo para mim. Bem, um deles está.
O menino olhava para ela de forma arregalada, questionando-se se tudo aquilo era real, ou se ainda estava preso no inferno particular no qual fora aprisionado após seu julgamento.
— Vamos surrá-lo para ver se acorda. – sugeriu Horácio, causando vários urros de aprovação entre a multidão.
— Não. Vamos continuar com a festa. – Vivian deu as costas a Marcus e começou a se afastar da multidão. – Temos convidados a chegar.
O vigésimo dia dezembro encontrava suas últimas horas, e como era de costume, a legião inteira de Vivian Obá estava reunida na Praia da Feiticeira para festejar os últimos dias do ano. O local era uma pequena faixa de areia que ficava na Ilha Grande, no Rio de Janeiro. Ele tinha o formato de meia lua e localizava-se na frente de uma grande vegetação litorânea com entradas para trilhas que percorriam toda a extensão da ilha. Vários barcos-táxis estavam ancorados ali, esperando o amanhecer para voltarem ao trabalho. A maré comia parte da praia, e como era um local bem escondido, não havia muitos vivos ali àquela hora da noite.
Os espíritos literalmente faziam a festa. Reuniam-se em grupos para cantar, dançar, beber, comer, e interagir. Havia vários tipos de música, rock, samba, pop, bossa nova, punk, metal, música popular brasileira, e muitos outros. A comida havia sido trazida de outras partes turísticas da Ilha Grande, abundantes em sua deliciosa diversidade.
Alegria e diversão não eram tudo que havia na praia. Os consumidos subordinados à bruxa faziam um perímetro ao redor do lugar. Eles festejavam, mas também estavam preparados para se proteger, caso necessário.
— Eles chegaram. – disse Horácio a Vivian apontando para névoa que ocultava a floresta litorânea.
Um menino de cabelos encaracolados e claros andava ao lado de Aman Jaques, um de seus mais fiéis feiticeiros. Nas mãos do menino havia uma corrente de madeira cujo pingente se assemelhava a um bebê adormecido. A bruxa sorriu ao vê-los.
— Acomode nosso convidado. – ordenou Vivian a Horácio. – Eu irei para Duadijebori. Quando for a hora, leve Marcus e o menino até mim.
— Será feito, Minha Senhora. – garantiu Horácio afastando-se.
A velha bruxa então foi até o mar, imergindo em suas águas e usando sua magia para desaparecer. Mesmo que houvesse alguns poucos vivos na praia, ou mesmo quando havia vários deles, nenhum conseguiria ver a ilhota rochosa que ficava a alguns poucos quilômetros da Praia da Feiticeira, pois Vivian usava a magia na névoa dos mortos para encantá-la e ocultá-la. Apenas os mortos e aqueles dotados de magia poderiam ver Duadijebori e chegar até ela.
Charles estava extremamente pálido. Ofereciam-lhe comida, porém nada despertava sua atenção. Ele apenas olhava para o nada, perdido em pensamentos terríveis. Tentava entender o que havia acontecido com Leonardo ao mesmo tempo em que tentava não pensar no que havia acontecido com ele. Destruía-se por dentro como se fosse puxado por ambos os desejos.
— Você é amigo de Marcus, não é? – perguntara alguém se aproximando.
Lentamente o menino olhou para cima e viu um rosto familiar. Olhos prateados com bordas negras, cabelos cinza tão escuros que pareciam ser pretos, um rosto palidamente cintilante, e uma capa longa e escura que ocultava todo o resto de seu corpo. Aquele era Nailleus, o amigo de Marcus que Charles vira durante a visão que tivera ao tocar o amuleto falso.
— Acho que sim. – respondeu Charles secamente. – Diferente de você.
Nailleus levantou uma sobrancelha e sorriu.
— Somos amigos de Marcus de maneiras diferentes, mas eu diria que eu o levo a sério ainda mais do que você.
— É mesmo? Então por que você o deixou ser preso? Eu me lembro de você… você só ficou olhando enquanto ele era condenado.
— Porque eu respeito os ideais de Marcus, você não. – disse Nailleus. – Você trouxe de volta o Amuleto de Moloque. Fez com que todo seu sacrifício fosse em vão. Tenho certeza de que você já pensou nisso. Mas não se martirize. Você é um bom amigo. Qual é o seu nome?
— Charles. – disse entredentes. – E você é Nailleus, certo?
— Certo. Foi um prazer conhecê-lo, Charles. Cuide bem do meu amigo.
Nailleus se afastou e foi se juntar a outros espíritos.
— Está na hora. – disse Aman para Charles, voltando a andar pela praia. – Vamos.
O fantasma e o gato começaram a andar em uma marcha pesada. Por onde passavam membros da legião de Vivian Obá se prostravam ao seu lado, o que fazia com que Charles se sentisse em um corredor polonês. Olhavam para ele com uma amistosamente, porém, o menino sabia que era uma harmonia falsa. Foram ordenados a não atacá-lo, a manter máscaras animosas. Contudo, conforme Charles avançava pela praia, os rostos dos legionários mudavam. Sua atenção já não estava mais no adolescente, mas sim em outra pessoa.
Poucos metros à frente de Charles e Aman havia um buraco no chão de areia onde Marcus estava sentado. A reação do pequeno amigo gorducho ao vê-lo não foi inesperada. O olhar de Marcus era amargo e enraivecido. Ele não estava nem um pouco contente em ver Charles, algo que o garoto já previa, visto que fora contra tudo que Marcus havia lhe pedido.
— Está na hora, Marcus. – avisou Aman. – Entre no buraco, Charles.
O fantasma o obedeceu e caiu de pé ao lado de Marcus. Olhou para cima e viu os olhos púrpuros de Aman incandescerem. Poucos segundos depois a água do mar alcançou o buraco e começou a preenchê-lo.
— Marcus…
— Onde está Leonardo? – perguntou Marcus imediatamente. – Por que ele não está com você?
Charles tremeu e olhou para baixo.
— Eu não sei… - respondeu sem forças. – Marcus, eu…
— Conversem depois. – interrompeu Aman. – Vocês ainda não estão livres.
A tristeza de Charles transformou-se em ódio, como óleo aderindo às chamas. Ele sentiu a marca azul índigo arder em seu peito, dando-lhe seu poder venenoso. Ergueu a mão e fez com que as bordas do buraco vibrassem e ruíssem, o que causou a queda de Aman para a água. O gato miou desesperado, tentando subir, mas não tinha como escalar paredes de areia.
— Por Leonardo. – disse Charles enquanto um brilho magenta dominava a água.
Em um segundo, Marcus e Charles estavam em um buraco arenoso na Praia da Feiticeira, no outro estavam em uma fenda rochosa na Ilha Duadijebori. Ainda imersos na água, Charles e Marcus saíram da fenda e se levantaram sobre um chão de pedra. A ilha era quase idêntica à que Charles vira em sua visão. Havia uma árvore em seu centro com vários pingentes de cristal, porém, ao seu redor não havia nenhum sinal ou rastro de corpos carbonizados ou bebês vermelhos.
Tudo que havia sob os galhos da árvore eram duas mulheres. Uma devia ser Vivian Obá, porém a mulher estava um pouco mais velha do que estava quando Charles a vira pela última vez. Ao seu lado, uma mulher caucasiana e loira estava de joelhos. Ela tinha a boca amordaçada. Seus pulsos estavam atados às suas canelas, e ela estava grávida.
— Bem vindo à Duadijebori, meninos. – disse Vivian segurando a mulher pelos cabelos e acariciando seu rosto.
A grávida chorava e se remexia, mas seus movimentos e fala estavam inutilizados pelas cordas.
— Dê-me o amuleto, garoto. – ordenou Vivian esticando uma das mãos para Charles enquanto limpava as lágrimas da mulher grávida com a outra.
Charles apertou a corrente de madeira contra seu peito e deu um passo para trás, quase caindo na água. Então a bruxa olhou para ele e disse:
— O que foi? Veio até aqui, passou pelo que passou, perdeu o que perdeu, e não vai cumprir o acordo?
O fantasma olhou para Marcus, porém este o evitava virando a cabeça em outra direção.
— Entregue, Charles. – disse Marcus. – Se não entregar, ela vai tomar de você de qualquer jeito. Entregue de uma vez.
— Acho que você deve me entregar, Marcus. – continuou a bruxa. – Afinal, você é o culpado de tudo isso, não o rapaz.
— Não sou eu quem sequestra e mata mulheres grávidas.
— Treze sacrifícios, treze, não menos, não mais. – disse Vivian soltando a mulher. – Há séculos eu colhi as almas que precisava, há séculos eu cometi esses atos inescrupulosos. O preço da proteção da nossa família já havia sido pago, ninguém mais precisaria morrer. Ninguém.
— Não! Você torturou as almas dos filhos delas por séculos! – vociferou Marcus. – Só para que você continuasse jovem!
— A juventude é apenas uma das muitas coisas que esse amuleto me dá. Que ele nos dá. Foi com ele que eu protegi você durante todos aqueles anos. Ou já se esqueceu de todos os inimigos que eu aniquilei para que você não sofresse destinos muito piores do que morrer.
— Se eu soubesse antes… se os outros soubessem…
A feiticeira gargalhou loucamente.
— Realmente acredita que eles não sabiam? – questionou Vivian. – A curiosidade é da natureza dos humanos, vivos ou não. Você não foi o único e muito menos o primeiro a descobrir sobre o amuleto. Alguns me questionaram, até tentaram se rebelar. Mas sempre preferiram ficar em silêncio e ignorar o que viram ao perder a proteção que eu ofereço. Você foi o único que deixou que sua hipocrisia chegasse tão longe a ponto de tentar me impedir. Mas é inútil se opor a mim. Eu sempre consigo o que eu quero. Agora… dê-me… o… AMULETO!
Vivian estalou os dedos. Ambos os fantasmas foram arrastados por algo invisível até estarem de joelhos diante da bruxa. Então a feiticeira arrancou a corrente de madeira da mão de Marcus e a colocou ao redor de seu pescoço.
— Ótimo. – disse ela sorrindo. – Vamos começar.
— Você não precisa fazer isso. – implorou Marcus olhando para o desespero da mulher grávida.
— Preciso sim. – Vivian beijou a testa da mulher e então a estapeou com força, fazendo com que ela tombasse no chão. – Treze, Marcus. Treze. Esse é o número de mulheres que passarão por isso porque você quis me desafiar. Está é só a primeira.
A bruxa estalou os dedos novamente. Todas as amarras que prendiam a mulher grávida se romperam. Ela gritou em dor e desespero. Tentou se arrastar em uma fuga, mas cortes profundos foram abertos em suas pernas e braços. Seus tendões haviam sido rompidos. Então, a bruxa começou a entoar:
— Molog… kom hier.… - a mulher grávida foi virada para cima de maneira sobrenatural.
— Não… não… por favor… - ela gemia.
— Kookpunt… kookpunt… - a mulher grávida começou a berrar intensamente. – Kookpunt! KOOKPUNT! KOOKPUNT!
A gestante se rebateu no chão como se sofresse de epilepsia. Sua pele se tornava vermelha de maneira gradativa, e fumaça saia de sua boca, nariz e ouvidos. A voz de Vivian Obá foi tomada por um timbre masculino, grosso e inumano, tornando cada palavra de sua maldição mais pesada e poderosa.
Charles tapou os ouvidos e fechou os olhos, mas teve uma de suas mãos afastadas por Marcus, o que o fez reabrir o olhar.
— Você trouxe o amuleto de volta. – disse Marcus em tom acusativo. – Seja homem e veja o que você causou.
A pele da mulher começou a se rasgar, revelando uma carne escura e queimada. Seus olhos se liquefizeram dentro de suas cavidades oculares. Sua língua tornou-se carvão, finalmente cessando seus berros.
Charles já não aguentava mais olhar para aquilo, queria que tivesse acabado, mas sabia que não era o fim. Após a inegável morte da mulher, um longo corte linear começou a se abrir em sua barriga, partindo-a no meio. Seu topo decepado foi jogado para o lado, revelando algo grotesco e revoltante. A criança que vivia em seu corpo fora morta antes de nascer. Seu corpo havia se transformado em uma massa de cinzas, mas sua alma ainda estava ali. Um pequeno bebê de pele vermelha e olhos brancos que chupava o próprio dedo.
— Para… para… para! PARA! – implorou Charles, mas foi inútil.
O garoto voltou a tapar os ouvidos e fechar os olhos, e, desta vez, Marcus não o impediu. Havia coisas que ninguém deveria ter que ver, coisas que Marcus gostaria de esquecer. Para muitos fantasmas, a morte era a apenas o princípio, e isso não significava algo bom.
— Vamos ver se este é realmente o Amuleto de Moloque. – disse a bruxa antes de começar a entoar um novo feitiço.
Marcus olhou para o chão enquanto ouvia o barulho de chamas e o choro quase inumano da criança que era torturada. Quando os sons finalmente pararam, o garoto olhou para cima e viu o fogo nos olhos do pingente do Amuleto de Moloque, chamas alimentadas pelo sofrimento de um inocente. O corpo de Vivian Obá começou a mudar imediatamente, rejuvenescendo alguns poucos anos.
— Preciso de mais doze para completar o sortilégio corretamente, mas está provado. O amuleto é autêntico. – disse Vivian sorrindo satisfeita. – Vocês estão livres, contudo, como eu havia lhes dito…
Charles abriu os olhos, destapou os ouvidos e ergueu seu queixo como se alguém estivesse o forçando a olhar para bruxa.
— Apenas um dos débitos está pago. – continuou Vivian. – Vocês ainda me devem pela profetisa.
— Você não vai tê-la volta. – declarou Marcus.
O sorriso da feiticeira estava estranhamente calmo, como uma pequena ponta de um iceberg de tramas e segredos.
— É claro. – concordou a mulher. – A profetisa pode ficar com vocês, afinal, saber o futuro nunca o impediu de acontecer, ou não estaríamos aqui, não é mesmo? Ainda assim, um preço deve ser pago, e será você a pagá-lo. – a bruxa apontou para Charles. – Você me deve um favor. Em breve, eu irei cobrá-lo. Agora saiam da milha ilha.
A fenda cheia de água da qual os meninos haviam saído voltou a brilhar em tons magenta, uma porta aberta para sair da ilha. Marcus se levantou e ajudou Charles a fazer o mesmo. Eles olharam para o pequeno bebê natimorto adormecido em seu berço cadavérico, exausto pela tortura. Marcus se odiava por ter que deixá-lo a mercê de Vivian, mas não tinha nem um décimo da força necessária para lutar contra ela. Tudo que restava era ir embora.
— Antes de irmos, eu quero que você me diga algo. – exigiu Marcus encarando a bruxa. – Como você descobriu onde eu estava? E não diga que sempre soube, porque se isso fosse verdade já teriam vindo atrás de mim há muito tempo. Como foi que vocês descobriram?
A bruxa abriu um meio sorriso e virou o rosto, então respondeu:
— Ora, quem tem boca fala. E quem tem ouvidos ouve. Simples assim. Agora pare de me importunar e vá embora de uma vez. Não quero traidores na minha ilha. VÁ!
— Vamos… - pediu Charles atordoado pelo trauma.
Marcus assentiu e juntos os dois menos mergulharam na fenda e retornaram à Praia da Feiticeira. Os espíritos legionários pareciam mais agressivos, agora que a troca já havia sido realizada. Eles os xingavam e rechaçavam, ordenando que fossem embora. Guiado por Marcus, Charles caminhou até a entrada de uma trilha na mata litorânea que guardava as costas da praia. Antes que entrassem na trilha, Charles viu alguns rostos conhecidos. Aman, as gatas juízas, Córade, Nailleus, todos observavam sua partida, mas havia uma figura que chamava sua atenção mais do que todas as outras.
Ao lado de Nailleus havia um espírito legionário usando uma máscara de crânio, como muitos outros, porém a sua tinha um dos olhos de cristal partidos. O espírito estava completamente oculto por uma capa bege. Charles não conseguia ver seu rosto, nem seus cabelos, pele, ou qualquer parte de seu corpo, não fazia ideia de quem aquela pessoa era, mas já a havia visto três vezes antes. Uma quando fora levado por Córade através de uma ponte, nesta a figura estava parada ao lado de Nailleus assim como estava agora. A segunda vez fora pouco tempo depois da primeira, na Corte das Viúvas. O espírito falara algo para Vivian Obá pouco antes da bruxa aceitar ao apelo de Charles e firmar um acordo pela alma de Marcus.
Até então, Charles não havia dado muita atenção àquele ser, mas a terceira vez que o vira mudara tudo. A imagem estava viva em sua mente. Em uma das partes da visão que a Velha o concedera, Charles vira a si mesmo sendo abraçado por aquele espírito. Uma cena que se dissolvera antes que ele pudesse vê-lo sem sua máscara.
— Vamos Charles. Otávia e a Velha devem estar te esperando. – disse Marcus recapturando a atenção do menino.
— É… - os dois entraram na trilha e começaram a subi-la.
— Temos que andar um pouco ainda. Não estamos com ninguém que faça parte da legião, então não vamos conseguir usar a névoa por aqui. – explicou Marcus enquanto andava. – O que aconteceu com Leonardo.
Charles contou-lhe rapidamente tudo que houvera depois que saíram da Corte das Viúvas, sobre como descobriram o local no qual ele havia morrido. Sobre como entraram no Mundo Morto e conversaram com um dos Lordes da Morte. E sobre como Leonardo ficara para trás para que Charles pudesse honrar o acordo e salvá-lo.
— Me desculpe, Charles. Eu não deveria ter sido tão duro com você. – admitiu Marcus. – Quanto a Leonardo…
— Ele vai voltar, não vai? Otávia me disse que quando fantasmas usam energia demais, eles se desfazem e voltam para onde foram enterrados. Foi o que aconteceu comigo. Ele deve estar no templo dele, não deve?
Marcus olhou para o lado e repuxou os lábios.
— Provavelmente não. – contrariou. – Se isso tivesse acontecido desse lado, tudo bem, mas no Mundo Morto… as coisas lá não funcionam da mesma forma. Não sei exatamente o que pode acontecer com ele, mas ele não tem acesso ao templo dele. Léo pode acabar se formando perto do corpo dele que fica no desfiladeiro e ficar preso lá. Ele pode ser pego por ocos, ele pode ser pego pelo Holocausto. Ele pode acabar com outro lorde da morte em outro lugar do Mundo Morto. Ou até mesmo nunca mais recuperar a forma astral dele. Existem muitas possibilidades, mas voltar ao templo dele, aqui no Mundo Vivo, não é uma delas. Talvez nunca mais o vejamos.
Marcus viu o arrependimento percorrer pelo rosto de Charles enquanto veias negras começavam a aparecer em seu pescoço, sinal de que estava sendo dominado por seu esquizograma novamente. O menino havia passado por muita coisa desde que morrera e provavelmente estava chegando ao seu limite. Normalmente Marcus o consolaria e o ajudaria a retomar o controle, mas sabia que seu sofrimento era causado por um problema maior, e enquanto tal problema não fosse resolvido, as coisas só iriam piorar.
Quando os dois espíritos entraram na névoa, deveriam ambos ter imaginado seu prédio abandonado para que voltassem os dois para casa, mas apenas um deles o fez. Enquanto Charles seguiu de volta para Nagameiro, Marcus imaginou um lugar diferente. Ele saiu da névoa aos pés do Cristo Redentor. Àquela hora da noite, não havia mais ninguém no mirante abaixo, apenas seguranças.
— Menininho. – disse Ardina, aparecendo ao seu lado. – Você finalmente veio.
— Preciso de ajuda. – disse Marcus olhando seriamente para sua tutora. – Me leve ao Vale Nirvana.

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