Steve Rogers é uma pessoa religiosa. Ele gosta de ir para a Igreja, cultuar suas crenças, conectar-se espiritualmente com Deus. Steve é uma pessoa tranquila, da paz, do amor. Steve é do amor, mas não de fato o pratica.
“Você não me venha com essas histórias de amor e não sei o quê. Amor é Deus, é a Igreja, não essas pessoas promíscuas beijando umas as outras contra a vontade do Senhor. Amor é Igreja, é ir no culto, é rezar toda noite antes de dormir. Não é se travestir. Não é corromper as criaturas que Deus criou com tanto carinho e, de fato, amor.” diz a sua mãe, enquanto rega as plantas na janela. Steve tem entre doze ou treze anos quando ouve essas palavras, pois havia visto dois homens trocando carícias em uma lanchonete e perguntou à sua mãe se era tudo bem ficar com o mesmo gênero que o seu.
Steve, até hoje, não sabe o que pensar, mas não realmente se importa com a vida alheia e nem julga ninguém, pois tem a consciência de que não possui direito algum para tal. Steve entende que a Bíblia abomina certas condutas, mas ele também entende que nem todos creem na Bíblia—ou simplesmente não a seguem à risca.
“Steve”, diz Peggy, sua namorada. Ela dá uma volta, fazendo com que seu vestido na altura do joelho levante, e Steve cora fortemente. “Estou bonita?” Steve assente e olha para o chão. Ele agora tem quinze anos e está comemorando dois meses de namoro com Peggy, a filha do pastor.
“Ela é uma moça linda, feita pra casar”, avisou a sua mãe — e foi assim que aconteceu.
Três anos depois, Peggy e Steve ficaram noivos.
Três meses depois, Peggy e Steve se casaram.
Agora, dezessete anos depois, Steve e Peggy moram juntos no centro da cidade. Peggy trabalha na confeitaria da mãe de Steve e Steve trabalha no escritório de um russo que veio para a América há vinte anos.
Uma linda vida de casal cisheteronormativo, branco e cristão. Tudo perfeito. Tudo nos trinques.
Menos Steve.
“Meu bem”, Peggy diz, tocando sua mão gentilmente. Ela possui um sorriso reconfortante no rosto e Steve quase se permite acalmar com seu toque. Quase.
Há dias que Steve se sente estranho, diferente, desconfortável. Ele sempre teve essa sensação, mas de uns meses para cá, ela vem aumentando cada vez mais. Ele se olha no espelho e não consegue enxergar sua própria essência — Steve se sente uma criação social, familiar, religiosa. Ele sente que tudo o que ele é e sempre foi nunca fora em prol de si mesmo, mas das pessoas a seu redor. Da sua mãe. Da sua Igreja.
Ele olha para Peggy e não vê nela uma amiga, uma companheira, mas sim mais um peso. Mais uma obrigação. Mais um sacrifício interno para agradar os olhares do seu ciclo social. Steve nunca realmente sentiu-se atraído por Peggy, sequer olhava para o corpo feminino com desejo. O namoro sempre fora para agradar sua mãe e fazê-la parar de procurar namoradas na Igreja para ele. O casamento fora uma solução para que sua mãe parasse de encher seus ouvidos com “o que os irmãos vão falar de vocês namorando por tanto tempo? Têm que casar!”. Era tudo em prol da aceitação. É tudo em prol da aceitação, mas não a de quem realmente importa—dele mesmo.
Steve sente que não pertence à sua própria vida desde que nasceu e nas tardes que passa sozinho em casa com folga do trabalho, enquanto Peggy está na confeitaria, ele se pega chorando igualmente a uma criança amedrontada. Suas lágrimas caem como cachoeiras, como uma torneira que esqueceram de fechar, como o suor que pinga incessante pelo rosto em razão do esforço de fingir ser alguém socialmente aceitável. O esforço de oprimir a sua própria natureza, o esforço de deixar o seu bem estar em último plano, o esforço de se sentir do gênero masculino a todo momento quando não é assim.
“Só estou cansado”, diz Steve—o adjetivo masculino com gosto amargo em sua boca. “Vamos dormir”, ele se vira para deitar na cama e fica de costas para Peggy, desligando o abajour.
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Colunista: Tony Stark
15/06/2018
Ventos de mudança ou sopros?
É muito engraçado ver as pessoas me dizendo que o que eu quero é impossível, porque se você for parar pra pensar, muita coisa que hoje a gente faz era impossível trinta ou quarenta anos atrás. Qual é, a gente tem microondas. Ar-condicionado. Grindr. Não vem encher meu saco me dizendo que a situação das pessoas não pode melhorar também.
Mas o que é exatamente “melhorar a situação das pessoas”? É escrever um tutorial de Como Ser Feliz™ em uma coluna de jornal e esperar os cliques? Os comentários? As cópias vendidas? O mundo capitalista gira em torno da quantidade e antes que você comece a me chamar de vagabundo socialista vai pra Cuba, admito que sou um escravo dela. Todos somos, afinal. Não fazemos nada hoje em dia sem querer receber algo em troca e se você disser que faz, pau no seu cu, pois mentir é feio.
Mas isso não é uma regra imutável — ou uma prerrogativa essencial para que tenhamos sucesso e relevância na sociedade. Você consegue relevância de outras formas, ainda que não das que te deixam ricaço ou te façam aparecer na Ellen pra lançar o seu single fajuto produzido pelo Naughty Boy. Falo de um tipo de relevância muito mais satisfatória humanamente do que aquela que conseguimos através do bem material: o reconhecimento vindo da solidariedade, da bondade, da caridade, da empatia e da cidadania. Eu sinceramente não acho que tenha algo melhor do que você olhar pra trás e perceber que fez parte da mudança na vida de tanta gente—e da mudança pra uma vida melhor, mais digna, mais humana.
Ontem Matthew e eu visitamos uma instituição de caridade que ajuda a manter a infraestrutura de um orfanato (que deveria ser dada por verbas do governo, mas não é assim que acontece). Faz pelo menos uns dois anos que a Mother's House não rebece nenhuma ajuda governamental, e pelo menos quatorze meses que uma ONG chamada, agora, Friend's House, passou a arrecadar dinheiro para poder ajudar na manutenção do orfanato e as necessidades das crianças que vivem lá.
Ouvimos muitos absurdos na entrevista, desde políticos ameaçando a fechar o orfanato porque ele “dá muito prejuízo” a piadas racistas contra as crianças latinas e afro-americanas que não foram adotadas — que, infelizmente, são a maioria em nosso país. Ouvimos alegrias também, como o fato da ONG prosperar cada dia mais e mais e conseguir manter o orfanato melhor do que o governo fazia com a micharia que mandava. A entrevista completa você confere no link abaixo, na coluna do Matt.
Quando comecei esse projeto, o meu intuito era ser mais radical e arregaçar logo afrontando o Trump. Mas Natasha, como a amiga sensata que é, não deixou que isso acontecesse. Tem apenas duas semanas que visitamos ONGs diferentes em causas, tamanhos, voluntários etc, e posso encher a boca pra dizer que já me sinto uma pessoa renovada por dentro. Ver carinho e acolhimento entre estranhos é uma benção que indico para todos, até para burgueses safados.
Deixo aqui o meu conselho pra você que pensa em ser voluntário, ou fazer qualquer serviço comunitário: faça. Não espere. Não pense. As pessoas precisam de ajuda e se você tem o tempo, os recursos e a vontade, ajude-as. Você estará ajudando a si mesmo, vai por mim. Os ventos da mudança ainda são sopros. Mas, cara, como eles são refrescantes.
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AUTOACEITAÇÃO | 𝘀𝘁𝗼𝗻𝘆
FanficTony é um jornalista. Steve é um evangélico. *incompleta e provavelmente nunca vou terminar; leia por sua própria conta e risco