não podia deixá-lo sozinho

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algum conteúdo desse capítulo pode causar gatilhos

fiquem segures meus amores

boa leitura 💜

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Tony recorda-se vagamente de quando, no auge de seus dezesseis, voltava da escola bradando por todos os cômodos sobre quão futuros opressores eram praticamente todos os seus colegas de classe (quando Howard não estava em casa, obviamente). Maria costumava apenas rir ao lado de Jarvis enquanto ajudava-o a pôr a mesa. “Você ainda viverá cem anos, meu filho. Não acha que precisa ter um pouco mais de paciência?”, ela dizia, seu tom suave. Tony entendia de onde vinha a preocupação de sua mãe, por mais utópico e visivelmente impossível que fosse o seu argumento. Acontece que olhar para a TV enquanto passa um noticiário local relatando a taxa de violência contra pessoas trans, mesmo em Nova York, com números altíssimos, o faz imediatamente mandar uma mensagem para Line e outras pessoas da comunidade, Clint e Peter principalmente, perguntando se está tudo bem.

Seu defeito sempre fora ser consciente demais da realidade do que foge do padrão, mesmo que este não seja visto como defeito por muitos. Só Tony sabe quão difícil é ter que passar horas e horas encarando o teto antes de dormir, pensando em que argumentos escreverá na coluna do dia seguinte para causar reflexão e solidariedade em seus leitores. Ou mesmo desejando de todo coração que por pelo menos àquela noite, uma criança com frio na rua encontre um cobertor para se aquecer. É sentimentalismo demais. É empatia demais.

Por vezes ele entendia que para uma pessoa privilegiada, cis, branca, hétero, era quase que loucura imaginar ou pôr-se no lugar de alguém cuja realidade não coincide com a “visão”/ideologia meritocrática, tradicional/cristã, segura do cidadão “comum” que faz parte da massa. Realidades distanciam pessoas mais do que as próprias pessoas, ainda que estas sejam na maioria das vezes as responsáveis por tal fenômeno.

Tony sente sua cabeça doer. Ele toma mais um gole de vodka e deixa que seus olhos fechem enquanto o líquido desce cortando sua gaganta. Tem gosto de merda, mas talvez ele mereça merda. Viado sentimental. Talvez mereça a parte do seu cérebro que a todo custo quer lembrá-lo de quão indigno de amor e validação ele é.

Álcool demais. Álcool demais. Deveria parar de beber e ir dormir, descansar a mente, mas cada vez que põe a cabeça no travesseiro e fecha os olhos é como se o corpo de Stephen estivesse sobre si novamente, lhe contando deliberadas mentiras, lhe alimentando de falsas juras de amizade e amor. É como se estivesse novamente então deitado no sofá quando vira no noticiário o nome de seus pais. Acidente de carro. Sem sobreviventes. Lágrimas em seu rosto. Jarvis abraçando seu corpo, tentando conter o próprio choro. Berros. Mais choro. Semanas no quarto. Stephen a seu lado novamente, o confortando. “Tudo bem, Tony. Eu estou aqui. Tudo bem, Tony, eu não vou te deixar. Tudo bem, Tony. Vai ficar tudo bem.” Então, não. Nada de dormir agora.

Faith passa por sua visão periférica e ele suspira alto, desequilibrando-se ao levantar do sofá. Ele cambaleia até a cozinha e atende aos pedidos silenciosos do jabuti, dando alguns pedaços de alface em sua pequena boca. Há um momento de silêncio depois que Faith termina de comer e os dois se olham, Tony mal conseguindo distinguir os desenhos engraçados no casco do animal do tapete horrendo que Natasha o deu de presente para pôr no chão da cozinha.

Ele volta a fitar os olhos de Faith e suspira, abraçando-a contra seu corpo delicadamente. “Eu sou um trouxa, sabia, meu anjo?”, ele murmura, sentindo um nó se formar na garganta. Tony respira fundo e balança a cabeça, lembrando-se das palavras de Steve Rogers alguns dias atrás.

AUTOACEITAÇÃO | 𝘀𝘁𝗼𝗻𝘆Onde histórias criam vida. Descubra agora