Roberto entrou desanimado no terreiro. Apesar de estar ganhando muito
dinheiro na construção dos prédios, a situação em casa continuava difícil.
Gabriela estava mudada. Desleixada, indiferente, passava o dia inteiro
estendida no sofá, a custo atendendo Nicete, que lhe pedia para ajudar com as
crianças. Quando o fazia, demonstrava-se sem paciência, desatenta, nervosa.
Maria do Carmo e Guilherme mostravam-se irritados, brigavam por
qualquer motivo, solicitando a intervenção de Nicete.
Hamílton havia telefonado para Nicete informando que estavam
trabalhando em favor deles.
Era para ter paciência e esperar. Ela se esforçava para manter tudo em
ordem, porém muitas vezes sentia-se indisposta, cabeça atordoada, corpo
pesado, com sensação de desânimo. Nesses momentos, rezava, reagia.
Roberto, no terreiro, olhou em volta do galpão, onde além dos médiuns
estavam as pessoas para serem atendidas.
— Vamos logo, Roberto. Você está atrasado. Nós temos disciplina. Pai
José não gosta que chegue tarde.
Roberto dissimulou a contrariedade, entrou no meio dos outros prontos
para o trabalho da noite. O batuque e os cantos começaram.
Agora ele não perdia mais a consciência. Seu corpo estremecia, ele
rodava, depois começava a falar. Sabia que era seu guia. Conforme lhe foi
ensinado, fazia de tudo para não interferir, mas era difícil. Não gostava de ficar
de Lado observando enquanto alguém dominava seu corpo.
De repente uma mulher aproximou-se dele, dizendo:
— Falei com Pai José e ele disse que você vai me ajudar.
— O que posso fazer por você? — perguntou Roberto.
— Vim pedir ajuda para meu marido. Ele tem outra mulher. Quer sair de
casa para viver com ela, o ingrato. Quando era pobre, me valorizava. Depois
que ficou rico, não sirvo mais. Eu quero que ele a deixe, mas também quero
que sofra muito, que perca dinheiro.
— Você é casada com ele?
—Sou.
— Nesse caso você vai perder também.
— Não faz mal. Durante esses anos de casada fui guardando dinheiro.
Tenho economias.
Quero que Neumes perca tudo.
Roberto sobressaltou-se:
— Você disse Neumes? Por acaso seu nome é Antônio?
— Sim. Como sabe?
— Eu sei muitas coisas. O dinheiro dele é maldito. Foi roubado.
— Sim. Ele fugiu, deixou o sócio na miséria.
— A polícia esteve procurando-o.
— Ele mudou de nome. Abriu outro negócio em meu nome.
- Ele precisa devolver ao antigo sócio o dinheiro que roubou.
— É você quem terá de fazer isso. Ele nunca vai querer.
- Aqui está escuro. Vá lá fora, escreva o nome e o endereço dele e volte
aqui.
Ela foi e voltou em seguida. Roberto estava radiante. Finalmente iria
conseguir vingar-se do ex-sócio. Pegou o papel que ela entregou, prometeuajudá-la, encaminhou-a ao companheiro, explicou-lhe o que iria precisar para
fazer o trabalho. Era ele quem estipulava o preço e a forma de pagamento.
Depois que ela se foi, Roberto procurou Pai José e contou-lhe a novidade.
— Você pediu, eu trouxe. Agora vamos fazê-lo pagar por tudo.
Roberto exultou. Finalmente teria de volta o que lhe fora roubado. Poderia
reabrir seu negócio.
— Tenho o endereço dele. Vou até lá cobrar o que me deve.
- Não precisa. Ele vai vir aqui. Vamos esperar a mulher trazer o dinheiro.
Faremos o trabalho e tudo dará certo.
No dia seguinte, Antônia levou o dinheiro e começaram a fazer o trabalho.
Roberto só apareceu no salão quando estava escuro. Antônio foi colocada no
meio da roda e eles começaram as rezas. Quando ela saiu, uma hora depois,
pensava ter resolvido seus problemas.
- Agora que ele já está amarrado, você pode ir à casa dele — disse Pai
José a Roberto.
Mas vá prevenido, porque ele é traiçoeiro.
— Isso eu sei. Pode deixar, sei o que fazer.
Ele riu satisfeito. No dia seguinte telefonou para casa de Neumes e foi
informado que ele só voltaria no fim da tarde.
Apanhou o revólver que ficava na gaveta do vigia no prédio em construção,
verificou que estava carregado e guardou-o no bolso.
Eram quase seis horas quando Roberto tocou a campainha. Foi Neumes
quem abriu aporta.
Vendo-o, estremeceu e tentou fechá-la. Roberto, porém, empurrou-a com
força e ele não conseguiu segurá-la.
— Vim buscar o que me deve — disse com raiva.
— Eu não tenho dinheiro. Posso explicar o que houve.
— Não precisa. Eu sei. Você roubou todo o meu dinheiro e deixou todas as
dívidas. Vai me pagar ou se arrependerá.
— Espere aí, vai ter que ter paciência. Não tenho dinheiro aqui comigo.
Roberto sacou o revólver e ameaçou:
— Você me paga ou vai para o inferno agora.
— Está bem. Não precisa nada disso. Todo dinheiro que eu tenho está no
banco. Posso dar um cheque.
— Não confio em você. Pode querer me enganar. Vou ficar aqui. Amanhã
quando o banco abrir iremos juntos retirar o dinheiro. Pode ter certeza de que
desta vez você não me fará de bobo.
— Faça como quiser. Mas, pelo amor de Deus, guarde essa arma. Antônia
está para chegar.
Não quero que ela se assuste.
— Está bem. Mas a qualquer atitude suspeita, eu vou atirar. Não facilite.
Sentou-se no sofá da sala. Neumes olhou-o temeroso. Aquele louco bem
poderia atirar. Ele precisava se defender. Tentou ganhar tempo.
- Precisa saber que estou arrependido. Aquele dinheiro não deu sorte. Se
pudesse voltar atrás, nunca teria feito aquilo.
— Você não sabe os problemas que eu tive por causa do que me fez. Comi
o pão que o diabo amassou, precisei fechar a loja, fiquei desempregado, cheio
de dívidas. Minha mãe me atormentou, quase perdi minha mulher, sofri todas
as humilhações. Sinto vontade de acabar com você agora mesmo.
— Acalme-se. Já disse que estou arrependido e vou devolver tudo.Olhando o rosto pálido de
Neumes, Roberto teve vontade de esbofeteá-lo. Conteve-se. Depois que
tivesse o dinheiro nas mãos, lhe daria um bom corretivo. Ele merecia.
Neumes viu o brilho rancoroso nos olhos de Roberto e pensou:
“Ele quer acabar comigo. Tenho que sair desta.”
Antônia chegou e surpreendeu-se com a presençã de Roberto. Passou
pela sala e foi logo para a cozinha. Percebeu o que estava acontecendo. Bem
feito! O trabalho do terreiro estava surtindo efeito. Agora ele teria de devolver
tudo que havia roubado, ficaria sem dinheiro. Ela estava vingada!
Tratou de fazer o jantar como sempre. Pretendia ficar fora daquela
discussão. Quando a comida ficou pronta, foi até a sala onde os dois estavam
calados, cada um sentado em um canto, e disse com naturalidade:
— O jantar está pronto. Você vai jantar conosco, não é?
— Não se preocupe comigo, Antônia. Lanchei antes de vir e não tenho
fome. Podem ir comer.
Neumes foi para a sala de jantar e ela colocou a comida na mesa. Ele
estava calado. De repente, disse baixinho:
- Converse comigo e faça de conta que eu estou aqui comendo. Vou ao
escritório e já volto.
Ela deu de ombros e ficou calada. Não pretendia ajudá-lo em nada. Ele
olhou para ela com raiva, levantou-se procurando não fazer ruído e foi ao
escritório que ficava ao lado. Rapidamente apanhou o revólver na gaveta da
escrivaninha, colocou-o no bolso da calça e voltou à mesa de jantar.
Assim que acabou de se sentar, Roberto apareceu na soleira. Vendo-os à
mesa, resmungou:
— O silêncio estava me intrigando. Pensei que não estivessem ai.
— Você deveria comer um pouco — disse Neumes com naturalidade.
Roberto não respondeu. Voltou à sala e sentou-se novamente no sofá. A
noite ia custar a passar, mas ele agüentaria. Se facilitasse, aquele malandro
seria bem capaz de fugir. As horas foram passando. Antõnia disse boa noite e
foi dormir.
— Estou com sono comentou Neumes. Vou para o quarto dormir. Você
pode descansar no sofá.
— Você não vai a lugar nenhum. Vai ficar aqui no sofá. Se está pensando
em fugir, desista.
Não vou tirar os olhos de você o resto da noite.
Neumes dissimulou o rancor e fingiu aceitar.
— Está enganado. Desta vez não vou fugir. Mas, se prefere assim, ficarei
aqui.
O relógio marcava uma hora quando Neumes se levantou de repente,
sacou o revólver e gritou:
— Sabe de uma coisa? Não vou pagar coisa nenhuma.
Roberto, apanhado de surpresa, apanhou o revólver disposto a atirar, mas
Neumes foi mais rápido e apertou o gatilho duas vezes, atingindo-o. Roberto
ainda teve tempo de atirar, mas a bala perdeu-se na parede da sala e ele caiu
em uma poça de sangue. Antônio acudiu apavorada e gritou:
— Você o feriu. Meu Deus! Vamos chamar uma ambulância. Mas era tarde.
Roberto, olhos vidrados, exaurindo em sangue, perdeu os sentidos. Antônia,
assustada, tornou:
— E agora, o que vai ser de nós? Ele está morto!— Telefone para a polícia. Matei em legítima defesa. Ele invadiu nossa
casa para me matar.
Veja: ele atirou, e só não me matou porque fui mais rápido do que ele.
No mesmo instante em que Antônia telefonava para a polícia, Gabriela
acordou gritando apavorada. Nicete levantou-se e correu para socorrê-la:
— D. Gabriela, o que foi?
— Nicete, um pesadelo horrível. vi Roberto em uma poça de sangue e dois
homens mal-encarados riam satisfeitos. Tenho medo deles. Roberto está em
perigo.
— Acalme-se. Foi apenas um pesadelo. Não aconteceu nada. Vou buscar
um copo d’água.
Gabriela levantou-se e agarrou as mãos dela com força.
— Não quero ficar sozinha. Por favor, Nicete, fique comigo. Onde está
Roberto?
Nicete foi forçada a dizer que ele não voltara para casa ainda.
— Está vendo? Eu tenho certeza de que alguma coisa aconteceu. Por
favor, ajude-me.
— Vamos à cozinha. Tente se acalmar. As crianças estão dormindo e
podem se assustar.
Ela obedeceu. Seu corpo tremia como se estivesse com frio. Nicete pegou
um xale e jogou-o em seus ombros. Na cozinha, fê-la sentar-se e disse:
— Vou fazer um chá de cidreira. A senhora vai tomar bem quentinho.
Precisa reagir. Vai ver que logo mais o Sr. Roberto estará em casa. Não
aconteceu nada.
Mas o dia clareou e ele não apareceu. A medida que o tempo passava,
Nicete dissimulava a preocupação. Roberto não era homem de dormir fora de
casa. Alguma coisa podia mesmo ter acontecido.
Passava das cinco da tarde quando o telefone tocou e a informação
chegou. Roberto havia sido assassinado. Nicete sentiu a cabeça rodar, mas
controlou-se. Deu todas as informações que a polícia pediu. Quando desligou o
telefone, não soube o que fazer.
Como dar aquela notícia à família? Sentiu o peito oprimido, falta de ar.
Abriu a porta e saiu à rua para respirar um pouco e acalmar-se. Estava parada
no portão quando um homem se aproximou dizendo:
— Você é Nicete, não é? Eu a conheço. Aqui é a casa de Roberto e
Gabriela?
Ela fitou-o surpreendida. Ele se apresentou:
— Eu sou o Dr. Aurélio, amigo da família.
— Agora o estou reconhecendo. Doutor, foi Deus quem o mandou aqui.
Estou desesperada.
Inteirado do ocorrido, Aurélio abraçou-a, dizendo:
— Quem tem fé está amparado. Vamos entrar. Podem contar comigo.
Acalme-se.
— Tenho que dar esta notícia! Já pensou? As crianças vão sofrer!
Pobre do Seu Roberto, não merecia esse fim.
— Vamos pedir a Deus que nos ajude. Precisamos de serenidade.
Procure controlar-se.
Eles entraram. Gabriela, vendo-o, correu a abraçá-lo, dizendo emocionada:
— Dr. Aurélio, o senhor aqui? Aconteceu alguma coisa a Roberto?
Ele não veio dormir em casa. Esta noite tive um pesadelo terrível!Ele a abraçou, dizendo a Nicete:
— Cuide das crianças. Nós vamos conversar na sala.
Nicete indicou o caminho. Ele tomou Gabriela pelo braço, conduziu-a ao
sofá e sentou-se a seu lado. Ela passou a mão pela testa, dizendo admirada:
Estou me sentindo estranha. De repente parece-me ter acordado de um
longo sono. É difícil explicar.
— Não é preciso tanto. Eu deveria dizer-lhe que cheguei até aqui por
acaso. Contudo, diante do que aconteceu, tenho que lhe dizer a verdade. Vim a
pedido de Cilene e Hamílton seguindo uma orientação espiritual. É preciso que
tenha calma para ouvir o que tenho a dizer.
— O que é? Não tenho andado bem. Minha cabeça tem estado pesada,
não conseguia pensar com clareza. Sinto-me deprimida, fraca, sem prazer de
viver. De repente perdi a vontade de lutar.
— Você precisa reagir. Tem dois filhos que dependem de você. Depois,
ainda é moça, terá muitos anos pela frente. Aconteça o que acontecer, não
pode se deixar abater. E uma mulher forte e inteligente.
— Por que está me dizendo tudo isso? Tenho um triste pressentimento.
Onde está Roberto?
— Ele se envolveu em uma briga. Descobriu onde morava o ex-sócio,
armou-se e foi procurá-lo. Parece que ficou ferido.
Gabriela levantou-se sobressaltada:
De novo? É grave?
— É. Pode ter acontecido o pior.
— Eu sinto que já aconteceu... Ele está... — ela não conseguiu terminar.
— Está morto, Gabriela.
Ela se deixou cair no sofá novamente e não conseguiu articular nenhuma
palavra. Aurélio foi à cozinha, apanhou um copo de água com açúcar e deu-o a
ela, dizendo:
- Vamos, beba. Você precisa ser forte. Teremos que falar com as crianças.
Ela segurou o copo. Suas mãos tremiam tanto que Aurélio a ajudou. Ela
tomou alguns goles, depois disse:
- Eu sempre pedi a Roberto que o perdoasse. Infelizmente ele nunca
esqueceu. Como foi que aconteceu?
— Ainda não sabemos os detalhes. A polícia ligou para dar a notícia. Nicete
conversou com eles.
- Meu Deus! O que faremos agora.
— Estou aqui para ajudá-la.
A campainha tocou e logo Nicete apareceu na sala, dizendo:
- Há um policial aí. Quer conversar com a senhora.
— Mande-o entrar disse Aurélio.
As crianças apareceram assustadas e correram a abraçar a mãe, per-
guntando pelo pai:
— Ele foi ferido de novo? disse Guilherme.
— Está no hospital? tornou Maria do Carmo.
Gabriela abraçou-os dizendo triste:
- Infelizmente ele está muito mal. — Vendo que o policial entrava com
Nicete, pediu: — Vão com Nicete, que preciso conversar com este senhor.
— Eu quero ficar, mãe — reclamou Guilherme. Eu também — completou
Maria do Carmo.
Nicete abraçou-os, dizendo:Venham, sua mãe precisa conversar com este senhor.
— É verdade — esclareceu Gabriela. Assim que terminarmos, contarei tudo
a vocês, eu prometo.
O policial estava constrangido. Sua missão não era nada fácil. Aurélio
apresentou-se, pediu-lhe que se sentasse.
- Preferimos dar essas notícias pessoalmente. Mas, como foi a empregada
quem atendeu, adiantamos o assunto. A senhora já sabe o que aconteceu.
Gabriela concordou com a cabeça. Aurélio pediu:
- Gostaríamos de saber como foi.
— O assassino está detido na delegacia. Ele nos esclareceu que foi sócio
da vítima, que se desentenderam e ele foi procurá-lo armado, disposto a matá-
lo. Alegou que atirou em legítima defesa.
— Ele roubou meu marido e fugiu. Por causa disso perdemos a loja,
ficamos sem nada. Meu marido esteve desempregado. Foi muito difícil.
— Ele não lhe disse o que pretendia fazer?
— Não. Eu não sabia que ele havia encontrado Neumes. Se eu soubesse,
teria feito tudo para evitar a briga.
- Ele foi armado à casa do desafeto e tentou atirar, mas a bala se perdeu.
O outro foi mais rápido. Quando chegamos, não havia nada a fazer.
Gabriela chorava trêmula e o policial comentou:
— As pessoas não entendem que a violência não resolve nenhum
problema. Vocês têm filhos, pelo que observei.
- Dois menores, O que faremos agora?
— Sinto muito, senhora. Geralmente a família é a maior vítima.
Compreendo sua dor, mas vamos precisar de sua presença na delegacia para
reconhecer o corpo.
Gabriela levantou-se assustada. Aurélio interveio:
- Ela irá prestar declarações. Eu sou amigo da família e a vítima era meu
cliente. Eu mesmo farei o reconhecimento.
- Está bem. Gostaria que nos acompanhasse agora.
— Ela está muito chocada. Poderemos deixar para amanhã?
O policial pensou um pouco, depois tornou:
— Agora já é noite mesmo. Podem ir amanhã cedo.
O policial despediu-se depois de anotar algumas informações. Gabriela
estava trêmula. As crianças abraçaram-na aflitas.
Aurélio aproximou-se deles, dizendo:
— Sentem-se aqui do meu lado. Vou contar-lhes tudo.
Gabriela olhou preocupada para ele, mas o médico considerou:
— A verdade sempre é melhor.
Nicete, no canto da sala, não conseguia impedir que as lágrimas lhe
descessem pelas faces enquanto Gabriela torcia as mãos angustiada.
Aurélio colocou um de cada lado, segurou as mãos deles e com voz calma
contou a história do desfalque e da briga entre seu pai e Neumes. Eles ouviam
sem perder nenhuma palavra, olhos emocionados mas esforçando-se para
manter o controle. Aurélio finalizou:
— O pai de vocês perdeu.
- Ele já esteve muito mal, vai se recuperar — disse Maria do Carmo.
— Não, minha filha. Infelizmente essa briga ele perdeu. E já partiu.
Guilherme, olhos marejados, disse emocionado:
— Quer dizer que ele está...Sim. Ele se foi para outro mundo. A morte é como uma viagem. O corpo
morre, mas o espírito continua vivo, conserva seu corpo astral e esse corpo é
próprio para viver nesse mundo para onde ele foi.
— Ele não vai voltar mais? — indagou Maria do Carmo chorosa.
— Você sabe que todos nós um dia também faremos essa viagem. Então,
lá, encontraremos com aqueles que amamos e que partiram antes de nós. E
preciso ter paciência e esperar a hora de ir para lá. Enquanto isso, vocês
precisam ajudar sua mãe a enfrentar a nova situação.
Eles se levantaram e abraçaram a mãe, beijando-a com carinho, como a
dizer que eles estavam juntos para enfrentar e decidir os destinos da família.
Nicete aproximou-se de Aurélio, dizendo emocionada:
— Foi Deus mesmo que o enviou. Não sei o que teria sido de nós sem a
sua ajuda.
- Gabriela está muito pálida. Preciso que vá à farmácia buscar alguns
medicamentos. Ela precisa descansar. O dia amanhã será exaustivo.
Ele fez anotações no receituário e ela saiu em busca dos remédios. Aurélio
conversou com os três, procurando ajudá-los. As crianças fizeram perguntas.
Queriam saber como era o mundo para onde o pai estava indo, como se vivia
lá.
Aurélio havia lido muito a respeito do astral, mas, apesar de ficar muito
interessado, questionava sua veracidade. Entretanto, depois da sessão no
centro com Hamílton e de como os fatos estavam se desenrolando, todas as
suas dúvidas haviam sido dissipadas.
Agora, tinha certeza de que ele fora mesmo enviado para fazer aquele
trabalho. Os espíritos sabiam o que iria acontecer com Roberto e mandaram-no
para socorrer a família. Sentia-se agradecido a Deus, emocionado por estar
sendo um instrumento da vontade divina.
Com essa certeza no coração, conversou com as crianças contando o que
ele sabia sobre a vida nas outras dimensões. Olhando seus rostinhos
confiantes, emocionados, Aurélio sentiu que dali para a frente daria novo
sentido à sua vida. Ser instrumento dos espíritos de luz era gratificante,
fazendo-o sentir-se útil, realizado.
Quando Nicete retornou, pediu-lhe que fizesse uma sopa substanciosa e
conseguiu que cada um tomasse um pouco. Depois ministrou um calmante a
Gabriela e só saiu de seu lado quando a viu adormecer.
As crianças dormiram abraçadas a Nicete, que não as largou em nenhum
momento. A casa estava em silêncio e Aurélio telefonou para Hamílton. Foi
com emoção que o colocou a par dos acontecimentos, pedindo-lhe que
continuassem orando por eles.
Ligou também para Renato. Sabia que ele estava ansioso. Contou o que
havia acontecido, ao que ele tornou:
— Vou imediatamente para aí. Vocês precisam de ajuda.
— Estou conseguindo controlar a situação. Confesso que estou
emocionado e agradecido a Deus por ter me dado esta missão. Gostaria que
viesse, mas quero lembrar que prometemos fazer tudo de acordo com as
instruções dos espíritos. Antes de decidir, será melhor falar com Hamílton. Ele
já está sabendo de tudo.
— Está bem. Eles nos aconselharão sobre o que será melhor.
Renato desligou o telefone com o coração batendo forte. O que iria
acontecer agora? Gabriela continuaria morando no Rio? Não seria melhor afamília voltar a São Paulo? Mil perguntas passavam pela sua mente.
Como ela reagiria à morte do marido? Ela o amava e deveria estar sofrendo
muito. Se ao menos ele pudesse aliviar aquele sofrimento! Pensou nas
crianças. Eles tinham quase a mesma idade dos seus filhos. Como estariam?
Pensou em Roberto e sentiu-se penalizado. E se fosse ele que tivesse partido,
como seus filhos ficariam?
Passava da meia-noite, e Renato resolveu esperar pela manhã seguinte
para conversar com Hamílton. Deitou-se, mas foi difícil pegar no sono.
Pensava no destino de Roberto, que, tendo conseguido escapar da morte
pelas mãos de Gioconda, havia encontrado o fim através de outra pessoa. Ele
estaria destinado a morrer assassinado?
Não encontrava resposta, mas de certa forma sentia-se aliviado por
Gioconda não haver sido a assassina. Apesar de suas fraquezas, ela fora
poupada de perpetrar aquele crime.
O dia estava clareando quando ele conseguiu adormecer. Acordou duas
horas depois, levantando-se apressado. Eram sete horas. Precisava ir ao
escritório tomar providências para o caso de ter de se ausentar.
Ele desejava ir imediatamente para o Rio, mas decidiu falar com Hamílton,
avisando-o.
Enquanto ele se preparava para sair, Hamílton ligou.
— Eu e Cilene estamos indo para o Rio — informou ele.
— Eu também vou — disse Renato.
— Nesse caso iremos juntos.
- Vou passar no escritório e dentro de uma hora estarei no aeroporto.
Encontro-os lá.
Passava das onze horas quando os três chegaram em casa de Gabriela.
Nicete atendeu-os avisando que Aurélio e Gabriela haviam ido à delegacia. Os
três dirigiram-se imediatamente para lá.
Ela estava prestando declarações em uma sala reservada, e os três ficaram
esperando. Meia hora depois, Gabriela e Aurélio apareceram. Vendo-os, ela se
emocionou.
Eles mal conseguiram falar. Foi Aurélio quem informou:
- Vamos precisar de um advogado. Há providências que só ele poderá
tomar.
- Vou ligar para o Dr. Altino. Ele virá imediatamente.
— Ótimo. Foi bom terem chegado. Poderão levar Gabriela para casa. Terei
que ir fazer o reconhecimento do corpo.
— Irei com você — disse Hamílton.
— Eu também. Desejo ajudar nas providências para o sepultamento —
tornou Renato.
- É melhor você ficar com elas. Agora só vamos reconhecer o corpo, saber
quando estará liberado. Você sabe, às vezes eles demoram. Assim que
tivermos as informações, voltaremos e então providenciaremos o resto.
Gabriela, Cilene e Renato foram para casa. Gabriela estava abatida,
calada. Cilene, vendo o ar preocupado de Renato, disse-lhe baixinho:
— Ela está sob efeito de um calmante forte que o Dr. Aurélio lhe deu.
Renato não respondeu. Estava chocado com sua magreza e abatimento.
Gabriela estava muito diferente da moça bonita que sempre fora.
Sentia que ela precisaria de um bom tratamento a fim de recuperar a
saúde. Falaria com Aurélio para que ela fizesse todos os exames necessários.238
Uma vez em casa, Cilene pediu a Gabriela que fosse dormir um pouco. Ela,
porém, recusou.
Estava preocupada com as crianças, não desejava separar-se delas nem
para ir dormir.
Nicete havia servido o almoço para as crianças e insistiu para que Gabriela
comesse um pouco. Ela não quis. Finalmente, Cilene convenceu-a a ir com os
filhos para o quarto descansar.
Nicete havia preparado mais comida e convidou-os a comer um pouco.
- Não se preocupe conosco, Nicete. Iremos a algum restaurante. Eu fiz
bastante comida, Dr.
- Renato.
— Não queremos lhe dar trabalho interveio Cilene. Fiz com prazer. Depois,
eu precisava me ocupar. Fiz as crianças me ajudarem para que se distraíssem.
- Nesse caso vamos aceitar — respondeu Renato.
No fim da tarde, Hamilton e Aurélio voltaram. Gabriela e as crianças ainda
estavam descansando. Eles se reuniram na sala para decidir o que fazer.
Aurélio esclareceu:
— Gabriela contou ao delegado toda a história da sociedade de Neumes
com Roberto e o que aconteceu depois. Ela não sabia que o marido havia
encontrado o ex-sócio. Neumes ficará detido até o delegado terminar o
inquérito. Porém, devido aos antecedentes do caso, o próprio delegado nos
aconselhou a arranjar um bom advogado para pleitear a devolução de tudo que
Neumes roubou. Será uma forma de amparar a viúva e os filhos.
— É justo — concordou Hamílton.
— Já liguei para o Dr. Altino. Amanhã cedo ele estará aqui. Eu acompanhei
os problemas da família por causa desse roubo. Além disso, Neumes tirou a
vida de Roberto. A justiça tem que ser feita. Ele terá que devolver tudo com
correção.
— Será que ele ainda tem esse dinheiro? Pode ter gastado tudo.
- O delegado acha que tem. Mora em uma bela casa, com luxo, Parece que
tem um negócio também— esclareceu Aurélio.
Eles continuaram conversando, procurando encontrar o melhor meio de
ajudar aquela família a enfrentar os desafios do momento. Apesar da situação
trágica, um pensamento unia-os em um sentimento de harmonia e paz.
Estavam amparados pelos amigos espirituais e pela misericórdia divina, que
nunca desampara ninguém.
Em seus corações guardavam a certeza de que tudo aconteceria pelo
melhor.
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Ninguém é de Ninguém - Zibia Gasparetto
SpiritualHá quem pense que sentir ciúmes é provar que se ama ardentemente, mas até descobrir que ele transforma a vida amorosa em uma dolorosa tragédia, culminando em amarga separação. Se fizermos as contas, percebemos que sofremos mais com as pessoas que am...