Capítulo 22

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Renato consultou o relógio e levantou-se. Estava na hora de ir ao centro.
Fazia três meses que eles haviam feito aquela sessão em favor de Gabriela e,
apesar de não terem ainda tido notícias dela, continuavam.
Às vezes Renato desanimava, mas tanto Cilene quanto Hamílton o
aconselhavam a ter paciência e fé. O problema era grave. A orientação
espiritual era que o casal estava sendo assistido e eles fazendo o possível,
mas era preciso esperar.
Clara, a enfermeira, tinha começado a trabalhar como governanta na casa
de Renato, mostrando-se atenciosa, prestativa, porém firme e organizada. A
princípio as crianças, habituadas a fazer o que queriam, haviam estranhado a
nova disciplina.
Clara, no entanto, conversava com os dois, explicando o porquê de cada
coisa, mostrando-lhes que a organização e a ordem facilitam a vida. Carinhosa
porém firme, sabia valorizar os pontos positivos de cada um. Aos poucos eles
perceberam que ela desejava que aprendessem o melhor e desfrutassem de
uma vida mais feliz.
Tornaram-se seus amigos, procurando-a para conversar, contar suas
dúvidas e receios, alegrias e aspirações.
Assim, Renato viu satisfeito que Clara era a pessoa ideal para ajudá-lo na
difícil tarefa de educar os filhos. Quando Aurélio avisou que Gioconda passara
no teste e logo iria para casa, Renato conversou com as crianças preparando-
as para o que iria acontecer.
Disse-lhes que os amava muito, mas que, apesar disso, teria de se mudar.
Célia agarrou-se a ele nervosa:
- Pai, eu quero ir com você.
- Eu gostaria muito. Mas sua mãe esteve muito doente. Está se re-
cuperando, vai voltar para casa e precisa muito da nossa ajuda.
Nesse caso você tem que ficar! - disse ela inconformada.
Não, filha. Minha presença só vai perturbá-la ainda mais. Quero que
saibam a verdade. Há muito o nosso relacionamento não vinha bem. Para um
casal viver junto, é preciso que haja amor, e isso entre nós acabou. Se eu ficar,
ela vai exigir de mim demonstrações de carinho que não poderei dar. E isso vai
deixá-la doente de novo. Ela sabe que vamos nos separar. E, quando o tempo
passar e ela se recuperar, vai sentir que foi melhor assim.
- Você vai nos abandonar... - disse Célia chorando.
Renato abraçou-a com carinho:
- De jeito nenhum. Você e Ricardinho terão sempre todo o meu amor e
atenção. Nada vai mudar entre nós. Apenas vou morar em outra casa, mas
vocês poderão ir ficar comigo lá o tempo que quiserem, e nos veremos todos
os dias.
- Eu gostaria de ir com você! - disse Célia com voz triste.
Ricardinho, que ouvia calado, olhos úmidos, interveio:
- Papai tem razão, Célia. Ele precisa se mudar, mas nós teremos que ficar
para ajudar mamãe a melhorar.
- Ele bem que podia ficar...
- Se eu ficar, ela não vai se recuperar logo. Se vocês a abandonarem, ela sofrerá muito e poderá piorar. Ela está doente, sua cabeça está confusa, mas sempre os amou muito. Cada vez que alguém vai visitá-la no hospital, só fala 215
em vocês, na saudade que sente, o quanto gostaria de estar em casa.
Célia baixou a cabeça pensativa e Ricardinho argumentou:
- Nós somos crescidos e temos que ajudar o papai. Vamos fazer tudo
como ele quer.
Depois, não vai ser ruim. A mamãe brigava muito com ele e agora não vai
ter com quem brigar.
- Vai brigar comigo e com você...
- Mas nós vamos nos esforçar para que ela não fique nervosa. Quando
isso acontecer, não vamos ligar. Sabemos que ela é doente e que precisamos
ter paciência.
- Isso mesmo, meu filho - concordou Renato, comovido. - Ela deverá
chegar no sábado.
O Dr. Aurélio virá com ela. Eu não estarei aqui e Clara cuidará de tudo.
Depois, vocês têm meu telefone. Liguem-me e contem-me como vão as coisas.
Ficarei em casa esperando a ligação.
Qualquer coisa que quiserem, podem me chamar.
No sábado cedo, ele se mudou para o apartamento. Havia combinado tudo
com Aurélio e Clara. Queria que Gioconda ficasse confortável e se sentisse
bem.
Fazia quinze dias que Gioconda voltara para casa e tudo havia corrido
conforme ele previra.
Antes de sua alta no hospital, Aurélio a havia prevenido de que Renato não
estaria em casa quando ela voltasse.
A princípio ela se revoltou, mas ele aos poucos a convenceu de que
Renato estava muito chocado com o que havia acontecido, desejava a
separação. Se ela não aceitasse, se revoltasse, os médicos do hospital não
atestariam sua melhora e ela teria de ficar lá muito tempo.
Esse argumento a convenceu. Estava cansada, queria ir para casa. Sentia
falta dos filhos, do conforto a que estava habituada, das suas coisas, da
liberdade que perdera.
Por isso, mostrou-se cordata, disse haver esquecido seu ódio por Gabriela,
estar arrependida. Levou vida normal, calma, obedeceu a enfermeiras e
médicos, e finalmente conseguiu voltar para casa.
Contudo, sua liberdade era condicional. Deveria submeter-se a novos
exames a cada três meses para nova avaliação. Ela sabia que, se de-
monstrasse qualquer desequilíbrio, poderia ser internada novamente.
Por isso se controlava. Porém, dentro do seu coração, ainda havia
o ódio por Gabriela. Confortava-a saber que ela havia se mudado com
a família para o Rio de Janeiro e que ninguém, nem mesmo a mãe de
Roberto, sabia o endereço.
Com Gabriela distante, o perigo havia passado. Renato, tendo perdido o
amor daquela mulher, se arrependeria do que havia feito e um dia a procuraria,
pedindo para voltar. Então, ela seria feliz e realizada. Finalmente havia vencido
a rival.
Para isso, precisava ser cordata, mostrar paciência, mansidão, ar-
rependimento. E isso ela sabia fingir muito bem.
Depois, Renato era pródigo no sustento da família e o advogado informara-
a de que ele lhe daria uma mesada para as despesas pessoais enquanto não
estabelecessem as normas legais da separação.
Como eram casados em comunhão de bens, Renato encarregara o Dr.216
Altino de fazer a avaliação dos bens. Ele pretendia dar a Gioconda a parte a
que ela tinha direito, para que pudesse manter-se.
Gioconda não tinha profissão e nunca havia trabalhado fora. Não teria
como se sustentar.
Além disso, ele desejava manter um relacionamento com ela o mais calmo
possível, por causa dos filhos.
Ele precisaria se desfazer de alguns imóveis, porém sua empresa estava
bem, e com o tempo conseguiria aumentar novamente seu patrimônio.
Desejava cuidar de si, viver em um ambiente calmo, onde pudesse fazer o que
lhe aprouvesse. Reconhecia que a rotina do casamento, o temperamento de
Gioconda, seus joguinhos manipuladores haviam transformado sua vida em
uma desagradável sucessão de problemas dos quais ele procurava escapar
isolando-se, e assim foi perdendo o prazer das pequenas coisas do dia-a-dia,
das músicas que gostava de ouvir na penumbra da biblioteca, saboreando um
copo de vinho, relaxando e sentindo a vibração gostosa que aquilo provocava.
Da leitura de um bom livro, do qual saboreava as tiradas inteligentes e argutas
de um bom escritor. Do prazer de uma conversa interessante com os amigos,
ou simplesmente deixar-se ficar na sala de estar em silêncio, sem pensar em
nada, usufruindo o momento de calma e de harmonia interior.
Havia muito tempo ele deixara de fazer essas coisas, porque quando
estava em casa Gioconda seguia-o por toda parte, monopolizando sua
atenção, reclamando quando ele desejava ficar só, interrompendo-o quando
estava lendo ou ouvindo música, dizendo-se abandonada e mal-amada.
Para não ouvir suas queixas, ele preferia demorar mais na rua, depois do
expediente do escritório, para reduzir ao máximo sua presença em casa.
Apesar de todos os problemas que estava vivendo, da preocupação com o
bem-estar dos filhos, da saudade de Gabriela, da inquietação quanto ao seu
destino, Renato sentiu-se bem no novo apartamento.
Lá tudo era do seu gosto, havia silêncio, calma, harmonia. Podia fazer tudo
sem se preocupar em incomodar ninguém ou até não fazer nada, deixar-se
ficar quieto, relaxado, dono de si.
Naqueles quinze dias percebeu o quanto seu relacionamento com
Gioconda o infelicitara.
Sentiu-se livre, leve.
Assim que voltou para casa, Gioconda tentou marcar um encontro com ele,
a pretexto de resolver a situação da família. Porém, quando ela telefonou,
Renato disse-lhe francamente que não havia nada para falar. Tudo estava claro
com o advogado, e se ela precisasse de alguma coisa deveria dirigir-se a ele.
- Mas eu quero conversar com você! Estou arrependida do que fiz. Eu
estava fora de mim.
Gostaria de contar-lhe o que passei.
- Não precisa.
- Quero pedir-lhe perdão. Fui injusta com voce.
- Não há nada a perdoar. Já passou.
- Se fosse verdade, você viria conversar, voltaria para casa e tudo ficaria
bem.
- Não guardo rancor, acredite. É melhor aceitar a verdade. Nosso
casamento acabou. Nunca mais voltarei para casa. Trate de esquecer, refazer
sua vida como quiser.
- Vai ver que já arranjou outra mulher...217
- Vê? Você não mudou nada. Vou desligar.
- Não quero ficar sozinha aqui. A casa está diferente. Clara tomou conta
de tudo, as crianças gostam mais dela do que de mim.
- Esses são problemas que você vai ter que resolver. Minha parte já fiz.
Clara é excelente e está cuidando de tudo muito bem. Você não vai precisar se
preocupar com nada. É tudo que posso fazer.
Ela começou a chorar.
- O que vai ser de mim agora sem você? O que fazer de minha vida, só,
abandonada?
- Isso é problema seu. Você é uma mulher inteligente, adulta, capaz de
cuidar da própria vida. É melhor deixar de bancar a vítima, o que você não é.
Perturbou duas famílias, quase matou uma pessoa, fez-se de coitada e
controlou os psiquiatras para conseguir a liberdade. Coragem você tem até
demais. Trate de usar essa força para reconstruir sua vida sem mim. Eu já
estou fora.
- Você se arrependerá de me humilhar dessa forma.
- A verdade dói, mas pode curar. Pense nisso.
Ela desligou o telefone sem responder. Renato suspirou, tentando expulsar
a sensação desagradável que a conversa lhe provocara.
Mais tarde o advogado ligou dizendo que Gioconda estava muito zangada
e que nunca mais permitiria que ele visse os filhos, ao que Renato respondeu:
Diga-lhe que, se colocar meus filhos contra mim, impedir que me visitem,
corto a mesada dela. Talvez assim ela recupere a calma.
Mais tarde Altino ligou para dizer que ela havia chorado, reclamado, se
lamentado e no fim concordou em fazer o que Renato queria.
Enquanto se dirigia ao centro espírita para a sessão, Renato pensava nos
últimos acontecimentos. Apesar de não ter notícias de Gabriela, de estar
freqüentando o centro nos últimos meses, não perdia a fé.
Agora mais do que nunca acreditava na interferência dos espíritos na vida
das pessoas. Sabia o quanto era importante manter bons pensamentos,
fazendo o possível para vencer os desafios que a vida lhe trazia, mas
reconhecia seus limites, e, os problemas que não conseguia resolver,
entregava nas mãos de Deus.
Seu amor por Gabriela não era correspondido, mas, mesmo que o fosse,
nunca poderiam ser felizes. Havia os compromissos de família.
Roberto não aceitaria uma separação, tornaria a vida dela um inferno. Os
filhos sofreriam. Não era isso que ele desejava para ela.
Depois, ela amava o marido, estava decepcionada, mas com certeza o
havia perdoado, retomado a vida normal. Talvez nem se lembrasse dele.
Apesar disso, não era seu sentimento de amor por ela que o angustiava.
Quando pensava nela, recordava seu rosto, seu sorriso, sua espontaneidade,
sentia agradável calor no peito. Sentir esse amor dava-lhe prazer, alegria,
motivação para ser melhor com as pessoas. Havia-se conformado em guardar
esse segredo para sempre.
A angústia, a inquietação, era por não saber o que havia acontecido com
ela, se estava bem, se era feliz.
Quando ia ao centro, orava pela felicidade dela. Naquela noite, quando
chegou à sala de reuniões, estava na hora de começar. Ocupou o lugar que lhe
foi destinado e, quando o dirigente iniciou a prece, pareceu-lhe vê-la na sua
frente, pálida, magra, mãos estendidas, pedindo ajuda, igual acontecia em seus218
sonhos.
Emocionado, Renato em pensamento rogou aos espíritos presentes que a
ajudassem. Naquele momento ele teve certeza de que ela estava sofrendo,
precisando de auxílio. As lágrimas desciam pelo seu rosto e ele implorava a
Deus que ela pudesse voltar a ser a moça alegre, saudável, bem-disposta que
sempre fora.
Um rapaz começou a falar:
- Desejamos agradecer a perseverança de vocês neste caso. Graças a ela,
estamos avançando em nossos propósitos. Dentro em breve terão notícias
deles. Não se preocupem com o que lhes disserem. As vezes parece que tudo
está pior, mas isso representa o começo da cura. Peço-lhes que continuem
firmes. Confiem em Deus e creiam que nada acontece por acaso. A vida é a
grande mestra que nos ensina sempre, nos torna mais conscientes, nos faz
amadurecer. Guardemos o coração em paz e em oração.
Quando as luzes se acenderam, Renato procurou Hamílton.
- Hoje eu vi Gabriela na minha frente, como aparece nos meus sonhos.
Estava mal, pedia ajuda. Teria sido minha imaginação? Eu estava preocupado
com ela.
- Não foi. Eu também a vi. Seu espírito foi trazido aqui para fortalecimento.
- Ela veio mesmo?
- Sim. Nossos mentores a tiraram do corpo e trouxeram para tratamento.
Ela recebeu forças para resistir à magnetização dessas entidades que a estão
envolvendo.
- Fiquei emocionado. Senti que era ela.
- Não permita que as emoções o dominem. Reaja. Pense que ela está
sendo atendida e que logo teremos notícias.
- Eles disseram isso. Mas até agora nem o investigador que contratei
conseguiu descobrir algo.
- Ao contratar o investigador, você usou os recursos de que pode dispor,
fez sua parte.
Entretanto, eu sei que há outros interesses em jogo. Só descobriremos
alguma coisa quando for a hora. Não se esqueça de que Gabriela e Roberto
estão sendo auxiliados pelos nossos mentores desde o início. Eles possuem
uma visão mais completa dos acontecimentos, conhecem as vidas passadas,
as verdadeiras causas de tudo. Sabem que os desafios de cada um são
determinados pelas suas necessidades de amadurecimento. Respeitam o ritmo
e o arbítrio deles. Conforme suas atitudes, eles agem.
- Mas eles estão sendo manipulados por entidades perigosas das quais
têm dificuldade de se livrar. Esperar não será falta de caridade?
- Ninguém é vítima, Renato. De alguma forma eles atraíram essas
entidades. Não temos condições de julgar, nossa visão é parcial e muitas
vezes está deformada pelas crenças erradas que o mundo nos ensinou. A vida
é amorosa, sábia, perfeita. Jamais permitiria uma injustiça.
- Não é isso que nos parece neste mundo.
- Parece, mas não é. Falta-nos conhecimento para poder avaliar
adequadamente. Mas, acreditando que o universo é perfeito, que foi criado por
um Deus que não erra, chegaremos a esta conclusão.
Vemos tanta gente boa sofrendo... é difícil entender.
É verdade. nossos conceitos de bondade estão limitados pelas
regras da sociedade e na maioria delas os verdadeiros valores da alma estão219

Ninguém é de Ninguém - Zibia GasparettoOnde histórias criam vida. Descubra agora