Gabriela colocou as malas no quarto, olhando em volta com tristeza. Se a
situação fosse diferente, ela teria procurado outra casa para morar. Fazia três
meses que Roberto se fora, e ela precisava economizar.
Na pressa de ir embora para o Rio de Janeiro, Roberto havia alugado a
casa para um militar amigo por preço irrisório. Quando ele morreu, a família
ainda estava morando lá, porém, no último mês, o militar fora transferido para o
nordeste e havia se mudado.
Gabriela ficara morando no Rio esperando a decisão da justiça na
cobrança do dinheiro que Neumes havia roubado. Em seu depoimento, Antônia
contou como ele dera o desfalque e onde estava o dinheiro.
Apesar da tese de legítima defesa que seu advogado defendera, pedindo
que ele, por ser primário, esperasse o julgamento em liberdade, Neumes não
conseguiu sair livre por causa dos antecedentes do caso.
O juiz não o deixou em liberdade, alegando que ele havia fugido do sócio
uma vez e que poderia fugir novamente. Por isso teve decretada a prisão
preventiva.
Neumes ficou arrasado. Sua mulher, cheia de raiva por causa de Jurema,
desejava que ele mofasse na prisão. Por isso, ele e seu advogado
conversaram com Altino tentando um acordo.
Neumes devolveria a Gabriela o dinheiro de Roberto e ela retiraria a queixa
do desfalque.
Aconselhada por Altino, Gabriela concordou. Aquele dinheiro a ajudaria a
manter a família.
Pretendia procurar emprego, porém ainda não se sentia bem. Os exames
revelavam que estava com profunda anemia. Precisava tratar-se.
Depois, as crianças estavam na escola e não podiam perder o ano. Na
verdade, ela desejava voltar a morar em São Paulo. Seus parentes moravam
no interior, e assim ficaria mais próxima a eles.
Neumes conseguiu liberar o dinheiro e Gabriela, a conselho de seu
advogado, deixou uma parte para as despesas da casa e aplicou o restante.
Precisava pensar no que fazer com ele. Sentia-se aturdida, sua cabeça ainda
estava conturbada, não conseguia pensar com clareza como antigamente.
Quando sua casa em São Paulo ficou vaga, ela se mudou imediatamente.
As crianças haviam terminado o ano letivo.
Rever a casa onde vivera com o marido a fez recordar o passado, porém
reagiu. Pensou em pintá-la, mudar algumas coisas, para apagar as
lembranças. A vida continuava e ela não desejava olhar para trás.
Sacudiu os ombros como que para jogar fora todas as tristes recordações
e tratou logo de ajudar Nicete a acomodar as coisas. Notando que as crianças
estavam tristes, chamou-as dizendo com voz firme:
— Esta casa para nós está cheia de recordações. Mas o que passou
acabou e não volta mais.
Vamos guardar em nossas lembranças todas as coisas boas daqueles
tempos. Nós amamos seu pai e desejamos que ele seja muito feliz nesse
mundo para o qual ele se mudou. Mas se ficarmos tristes ele também ficará.
Ele tem o direito de ser feliz e nós também. Por isso, de hoje em diante, nesta
casa faremos o possível para conservar a alegria. Vamos cooperar com ele.
Vendo-nos alegres, ele se sentirá feliz.Eles concordaram com a cabeça, e Gabriela continuou:
— Agora vamos trabalhar. Precisamos arrumar tudo no lugar. Pretendo
reformar a casa.
Comecem a planejar como querem o quarto. O resto da casa é por minha
conta, mas cada um vai escolher como quer seu quarto.
Diante da novidade, os dois se entusiasmaram e começaram a planejar as
mudanças. Vendo-os trabalhando na arrumação e planejando o futuro, Nicete
não se conteve:
— Foi a melhor coisa que poderia ter feito. Eles estão muito melhor.
— Eu disse a verdade. Nossa vida mudou e temos que aceitar com boa
vontade.
Trabalharam o dia inteiro, e Nicete, que havia ido às compras no fim da
tarde, preparou o lanche. As crianças estavam cansadas e dormiram logo.
Nicete e Gabriela continuaram a colocar as roupas no lugar.
— Amanhã irei ao mercado. A senhora tem que se alimentar muito bem.
Não pode viver de lanche.
— Estou bem nutrida. Na próxima semana farei novos exames e, se o Dr.
Aurélio me liberar, começarei a procurar trabalho.
— Pretende voltar à empresa do Dr. Renato?
Ela hesitou um pouco, depois respondeu:
— Não sei. Ele sempre foi muito bom. Mas há sua mulher. Tremo só em
pensar que ela pode perturbar nossa vida de novo.
— Eles estão separados desde quando ela atirou no Seu Roberto. Ele me
disse.
Gabriela parou um instante, pensativa, depois respondeu:
— Ele é uma boa pessoa. Merecia coisa melhor.
— Com a senhora ele tem sido muito dedicado. Quando soube da morte do
Seu Roberto, largou tudo e foi dar apoio à família. Pagou todas as despesas.
Sabe como é, naquela hora ficamos perdidos, sem saber o que fazer.
- De fato, ele nos ajudou muito. Pedi ao Dr. Altino que fizesse um
levantamento de tudo quanto ele e o Dr. Aurélio gastaram, para devolver.
Felizmente temos dinheiro para pagar.
— Isso me deixou pensando. Deus fecha uma porta mas abre outra. Já
pensou se esse dinheiro não tivesse voltado?
— Tem razão. Reconheço que apesar de tudo tivemos muita ajuda
espiritual. Na próxima semana pretendo ir ao centro falar com Cilene, ver o que
me aconselha.
— Eu gostaria de ir também. Não esqueço que, quando recebi a notícia da
morte do Seu Roberto, fiquei sem fôlego. Faltou o ar, eu não sabia como lhes
contar.. Saí para a rua tentando respirar melhor e lá, como num passe de
mágica, encontrei o Dr. Aurélio. Nunca esquecerei esse milagre.
— Abençoada hora em que ele apareceu naquele dia. Eu estava em estado
de choque. Sabe, Nicete, há momentos em que me parece estar acordando de
um pesadelo. As vezes não consigo me lembrar do que fiz neste último ano.
Isso me intriga.
Ouvi o Seu Hamílton dizer que, enquanto morávamos no Rio, eles aqui
sabiam que as coisas não estavam bem. O Dr. Aurélio foi até lá naquele dia a
pedido deles.
— Tem certeza?
- Tenho. Ele e o Dr. Renato iam ao centro rezar por todos nós. De fato, ascoisas naquele tempo andavam muito mudadas. A senhora estava diferente,
estranha. O Seu Roberto freqüentava um terreiro e voltava de madrugada.
- Roberto? Tem certeza? Nunca notei.
— Eu lavei muita roupa branca dele.
— Por que nunca me disse nada?
— A senhora não conversava mais. Andava sempre com sono, cansada.
Pensei que soubesse.
Gabriela ficou pensativa. Roberto nunca fora dado a religião. Mas Nicete
não costumava mentir.
— O que teria ele ido fazer em um terreiro?
— Eu acho que ele trabalhava lá. Ia três vezes por semana. Trabalhava
como?
— Isso não sei. Mas ele mudou muito nos últimos tempos. A senhora não
percebeu?
— Não. Para dizer a verdade, tudo ainda me parece um sonho. E como se
eu tivesse me tornado outra pessoa.
Nicete sacudiu a cabeça, pensativa:
— O que aconteceu também me parece estranho. De repente tudo mudou.
As crianças ficaram diferentes, a senhora, o Seu Roberto, tudo. Até parece
macumba. Seria bom a senhora conversar com o Seu Hamílton. Desconfio que
ele pode explicar muitas coisas.
— É. Também acho.
Naquela noite, deitada em seu quarto, apesar de cansada, Gabriela não
conseguia esquecer sua conversa com Nicete. De fato, depois que Roberto se
recuperara do ferimento, ela começara a se sentir mal. Seu comportamento se
modificara. Havia um detalhe que a intrigava. De repente, sentira aumentar seu
desejo sexual de maneira insaciável.
Mesmo durante o dia, quando Roberto não estava, ela se sentia excitada
tendo pensamentos eróticos esperando ansiosamente o momento de ir para a
cama com o marido.
Seu relacionamento sexual com Roberto havia sido satisfatório nos
primeiros anos de casamento. Depois, seu interesse por ele diminuíra por
causa do excessivo ciúme e da desconfiança que ele demonstrava. Quando
descobriu que ele fora o autor do desfalque, percebeu que não podia mais viver
ao lado dele.
Havia planejado que, quando ele se recuperasse do ferimento, iria pedir a
separação. Não o amava mais. Sempre que ele a tocava, sentia repulsa.
Gabriela sentou-se na cama assustada. Lembrava-se perfeitamente desse
fato. Como explicar seu súbito interesse sexual pelo marido? Como entender
essa paixão repentina que nunca conseguia saciar completamente?
Sempre fora pessoa equilibrada. Nunca se sentira arrastada por um desejo
que não conseguisse dominar. Reconhecia que era sensata. O que havia
acontecido com ela?
Sentiu-se oprimida. Levantou-se, foi à cozinha e tomou um copo de água.
Havia ali um mistério que precisava decifrar. A ida de Roberto ao terreiro teria
alguma coisa a ver com isso?
Passou a mão pelos cabelos, pensativa. Talvez estivesse exagerando. Ela
começara a sentir isso antes de se mudarem para o Rio. A não ser que...
— Não pode ser. Ele não seria capaz de uma coisa dessas!
Depois, não acreditava em macumba. Isso era crendice. Foi para o quartoe deitou-se. Tentou dormir, mas não conseguiu. Lembrou-se de que Roberto
havia sido capaz de fazê-la passar por ladra sem nenhum pudor. Quem fora
capaz disso bem que poderia ter se valido de magia para dominá-la. Ele não
desejava a separação. Pressentia que ela pensava em deixá-lo.
Apesar das dúvidas, sentia que de alguma forma ele havia se utilizado da
ajuda dos espíritos do mal para conseguir o que queria.
Lágrimas desceram-lhe pelas faces. Um sentimento de tristeza a
acometeu:
- Por que Deus permitiu isso? Não era justo. Sempre fui esposa dedicada,
fiel, cumpridora das minhas responsabilidades. Por que fui tão castigada?
Sentia-se impotente, invadida, usada. Naquele momento, alguma coisa
dentro dela se rebelou.
Tinha o direito de se defender da maldade dos outros. Não se sentia
culpada de nada, não merecia ser manipulada daquele jeito.
Sentou-se novamente na cama, cerrou os punhos e disse em voz alta:
— Eu sou boa e forte. Ninguém vai me dominar ou destruir. Vou reagir,
refazer minha vida, ser feliz. Eu mereço. Amanhã mesmo falarei com Hamílton
para esclarecer esses fatos. Tenho de saber que forças são essas que nos
dominaram e como conseguiram fazer isso.
Deitou-se novamente e sentiu-se mais calma. Ajeitou-se na cama e em
seguida adormeceu.
Não viu que um vulto de mulher a abraçava com satisfação, dizendo para
seu acompanhante:
— Felizmente ela começou a reagir. Agora poderemos ajudá-la a se
libertar.
Depois de beijarem sua testa com carinho, os dois se afastaram ra-
pidamente.
No dia seguinte, Gabriela acordou mais disposta. Apesar de ter muitas
coisas para fazer, ligou para Hamílton pedindo que a atendesse naquela noite
mesmo.
No fim da tarde, antes de sair, Gabriela chamou Nicete, dizendo:
— Estou indo ao centro falar com Hamílton. Direi que você também quer
freqüentar. Ficarei com as crianças para você ir.
- Obrigada. É o que mais quero.
Gabriela chegou ao centro pouco antes da hora marcada e na porta
encontrou-se com Renato.
- Como vai, Gabriela? — perguntou ele.
— Melhor. Aos poucos estou me recuperando.
— Fico feliz. Estivemos preocupados com vocês.
— Nicete contou-me que vocês rezavam por nós mesmo quando não
sabiam onde estávamos.
Os olhos de Renato brilharam emocionados. Ele se esforçou para controlar-
se. Não queria que ela descobrisse o que sentia.
— Eu sabia que vocês não estavam bem.
— Hamílton disse alguma coisa?
- Sonhei algumas vezes com você muito triste pedindo-me que a libertasse.
Sem saber o que fazer, procurei Hamílton. Ele fez uma consulta e soube que
vocês precisavam de ajuda. Orientados pelos amigos espirituais, fizemos
nossas orações.
- É verdade que o Dr. Aurélio foi ao Rio naquela tarde a pedido dosespíritos?
— É. Nicete havia ligado para o centro pedindo ajuda. Assim conseguimos
o endereço. Eu estava tão preocupado que desejava ir logo. Porém eles
disseram que só Aurélio deveria ir. Marcaram até o dia.
Gabriela comoveu-se.
— Então é verdade! Ele não estava lá por acaso...
— Ele foi sem saber o que teria de fazer. Não nos disseram nada. Foi uma
surpresa terrível.
- É. Foi terrível mesmo. Mas passou. Estou disposta a recomeçar minha
vida. Tenho dois filhos para criar.
— Estou à sua disposição para o que precisar.
Ela olhou séria para ele e respondeu:
— Você tem sido um bom amigo. Nem sei como agradecer.
Ele baixou a cabeça para esconder o brilho emocionado do seu olhar.
Ela hesitou um pouco, depois perguntou:
- Como estão as coisas em sua casa?
- Estão bem, dentro do possível. Gioconda ainda está em tratamento
psiquiátrico. Tem se mostrado muito resistente. Mas, quando ela abusa, Altino
lhe diz que se continuar assim os médicos a mandarão de volta ao sanatório,
então ela melhora um pouco.
— E as crianças?
— Estão morando com ela. Graças a Aurélio conseguimos uma governanta
maravilhosa, que cuida de tudo. Conversa com as crianças explicando a
doença da mãe, pedindo que cooperem no tratamento, é firme com Gioconda
mas muito bondosa. Célia tem melhorado bastante. Está mais sociável, alegre.
Ambos adoram Clara.
Você não pensa em voltar a viver com a família?
— Não. Minha vida com Gioconda tornou-se impossível. É difícil continuar
junto quando o amor acaba.
Gabriela pensou em Roberto e considerou:
- Sei como é isso.
Renato fitou-a curioso, querendo penetrar seus pensamentos íntimos. Mas
Gabriela lembrou:
— Vamos entrar. Está na hora.
Hamílton esperava-os na porta da sala de reuniões. Vendo-os, abraçou-os
e depois dos cumprimentos disse a Gabriela:
- Foi bom ter vindo. Hoje é dia da sessão que fazemos para tratar do seu
caso.
— Não sabia. Eu vim porque fiquei sabendo de algumas particularidades.
Desejo conversar com você.
— Nós conversaremos depois da reunião. Agora está na hora de começar.
Entraram na sala em penumbra e Gabriela viu que, além de Cilene, Aurélio
também estava presente. Sentou-se no lugar que lhe foi indicado.
Ao som de uma música suave, Cilene fez ligeira prece, abrindo os
trabalhos. Depois pediu orientação para o caso em tratamento e solicitou que
as pessoas presentes continuassem orando em silêncio.
Gabriela sentiu que uma brisa suave a envolveu e comovida não conteve
as lágrimas. As indagações que vinha fazendo desde a noite anterior
reapareceram e ela se perguntava por que estava sendo castigada se não
havia feito nada errado.De súbito, uma médium começou a falar:
— Sinto-me feliz por poder abraçá-los e desejo que continuem orando em
favor daquele que partiu. Infelizmente não pudemos evitar que a tragédia se
consumasse. Várias vezes tentamos fazer com que ele saísse da faixa
negativa, sem conseguir. Ele já tinha conhecimento para enxergar a vida de
outra forma. Contudo, levado pela ilusão de que sozinho não conseguiria viver,
procurou ajuda de espíritos vingativos e perigosos para alcançar seus fins.
Comprometeu-se com eles, passando a servi-los. A essa altura, nada nos
restava fazer senão deixar que ele assumisse os resultados de suas escolhas.
Os outros envolvidos haviam cumprido a parte que lhes cabia e agora devem
seguir separados dele.
Todavia, o que parece a vocês uma tragédia pelos sofrimentos que
provocou representou a única ajuda possível. Arcando com os resultados de
suas atitudes insensatas, ele aprenderá as lições necessárias. A felicidade é
conquista que compete a cada um, e os desafios quando enfrentados acabam
por demonstrar o quanto somos fortes e capazes.
Educado de forma errada, valorizando as aparências, comparando-se com
valores convencionais e ilusórios, ele se julgava menos que os outros. Sentia-
se incapaz e, para compensar, gostava de dominar as pessoas que amava,
pensando com isso ficar forte e protegido. Perder esse apoio representava
olhar para si mesmo, e isso ele não poderia suportar, uma vez que se via como
uma pessoa inferior.
Enfrentando a responsabilidade de suas escolhas, ele terá que fazer uso
do grande potencial da força que possui mas da qual não se dava conta. Dessa
forma, saberá o quanto é forte, valoroso, sairá dessa experiência amadurecido,
sentindo-se mais confiante e capaz.
Por isso não lamentem o que aconteceu. O que partiu está sendo
beneficiado pela experiência, e os que ficaram devem dar por encerrada uma
etapa, seguir adiante sem olhar para trás, confiantes de que tudo está certo e
dias melhores virão.
O silêncio se fez e Hamílton aproveitou para indagar:
- Podemos dar por encerrado o atendimento deste caso?
— Em parte. Não precisaremos mais de reuniões especiais. A ligação com
as entidades perturbadoras foi cortada. Entretanto, há que ser feita toda uma
recuperação energética para as pessoas da casa, inclusive as crianças.
— Algum tratamento específico?
- Para as duas mulheres, além do tratamento de rotina, um pouco das
luzes da cromoterapia.
Hamílton agradeceu a ajuda. Permaneceram silenciosos durante algum
tempo, depois ele encerrou a reunião.
Quando as luzes se acenderam, depois de os participantes tomarem um
pouco de água fluida, Hamílton aproximou-se de Gabriela:
— Sente-se melhor?
- Sinto-me mais leve. Porém minha cabeça ainda não está normal. Vamos
conversar na outra sala.
Renato aproximou-se com Aurélio e propôs:
— Estamos com fome. Queremos convidá-los a comer alguma coisa.
Depois os levaremos em casa.
Gabriela olhou-os um pouco indecisa. Cilene, que se juntara a eles, foi
quem respondeu:— Aceitamos, é claro. Eu estava pensando nisso.
— Vou conversar um pouco com Gabriela, terão que esperar — disse
Hamílton.
— Esperamos, desde que você também nos acompanhe — interveio
Aurélio com um sorriso.
Hamílton concordou e conduziu Gabriela para outra sala. Uma vez
sentados um ao lado do outro, ele considerou:
- Sei que deseja saber pormenores do seu caso. Estou pronto, pode
perguntar.
— De fato, quando estava no Rio eu me sentia um tanto alheia, cabeça
pesada, desanimada, aturdida. Porém, assim que voltei a São Paulo, entrei em
minha antiga casa, comecei a questionar certos fatos. Nicete contou-me que
Roberto freqüentava ou trabalhava em um terreiro três vezes por semana. Ele
nunca foi religioso. Analisando tudo, tive medo. Senti que havia sido envolvida
por uma força muito esquisita que me dominou e obrigou a fazer coisas que
nunca foram da minha natureza.
— Graças a Deus você está voltando ao normal. O que sei é que Roberto,
sentindo que você pensava em deixá-lo, fez um pacto com um espírito perigoso
prometendo servir-lhe desde que ele fizesse o que ele desejava.
- Como ele fez isso? Que eu saiba, o único centro que ele freqüentou antes
de nos mudarmos para o Rio foi este aqui.
— Para fazer um pacto como esse não é preciso ir a um centro. Ele pensou
em fazer e esse espírito logo se aproveitou. Essas entidades formam grupos de
auxílio mútuo para realizarem seus fins e estão sempre atentas. Ele deu
abertura e o espírito procurou-o.
— Como pode ser isso?
— Em sonhos ou mesmo em contato mental. Nosso pensamento é um
Livro aberto para os habitantes do astral. Eles sentem o teor das energias que
nos circundam e agem.
— Isso é injusto. Por que Deus permite que estejamos à mercê dessas
entidades?
- Engana-se. Não é assim que funciona. Cada um atrai as companhias de
acordo com sua maneira de ser. Roberto atraiu-os quando pensou que
precisava dominá-la de qualquer jeito.
Pagou o preço.
- Mas e eu? Por que fui envolvida? Nunca desejei nada disso.
- De alguma forma você também permitiu que eles a dominassem. Teve
atitudes que toldaram suas energias, facilitando esse assédio.
Gabriela ficou pensativa por alguns instantes, depois disse:
— Bem, eu estava muito revoltada por Roberto ter se unido a Gioconda e
ter feito aquele desfalque. Pensava mesmo em separar-me dele.
— Pensar em separar-se dele era um direito seu. Mas é preciso perceber a
forma como você fez isso. A indignação, mesmo quando é justa, permite várias
interpretações. Para que possa saber onde estava seu ponto fraco, terá que
analisar com cuidado seus sentimentos. Geralmente a indignação esmorece
quando aceitamos que as pessoas são o que são e não do jeito que
gostaríamos que fossem. Embora tenhamos o direito de não querer mais
conviver com uma pessoa que age dessa forma, conservar a mágoa, o
ressentimento, é sempre cair em negatividade.
— De fato, eu estava muito indignada. Até hoje, quando me lembro do queele fez, sinto muita revolta.
— Isso facilitou seu processo de obsessão. Procure pensar que Roberto
agiu assim porque ainda não tinha amadurecimento para agir diferente. Ele
pensou apenas em se defender, não em prejudicar você. Ao contrário,
desejava dar tudo para a família. Não pensou que estivesse fazendo mal
querendo conservar seu amor. Pode até ter acreditado estar defendendo a
união da família.
— Isso é bem dele. Garanto que foi assim.
— Pense nisso e talvez consiga libertar-se da mágoa. Você encerrou uma
etapa de sua vida. Tem novas oportunidades de felicidade à sua frente. Não se
deixe dominar pelo que foi. Analise, medite, recorde os fatos, procure fazer isso
com sinceridade. Tenho certeza de que um dia sentirá que está livre, alegre e
disposta a seguir adiante.
Gabriela sorriu e disse:
— Obrigado por me ajudar tanto. Farei tudo para encontrar a paz interior,
educar meus filhos com carinho e construir para nós uma vida melhor.
— Eu estou certo disso. Agora vamos, que nossos amigos estão
esperando.
Naquela noite, Gabriela voltou para casa mais animada. A conversa com
Hamílton fizera diminuir sua inquietação. Depois, as atenções e o carinho dos
amigos, a conversa descontraída e proveitosa da qual havia participado no
restaurante tiveram o dom de mostrar-lhe que a vida poderia ser muito melhor
do que havia sido nos últimos tempos.
De repente, sentiu-se viva, livre, capaz. A certeza de que a vida continuava
depois da morte era confortadora.
Deitou-se mas não dormiu logo. Por sua mente as lembranças de seu
romance com Roberto desfilaram e ela compreendeu com clareza o que
Hamílton lhe dissera. De fato, Roberto amava-a do seu jeito. Nunca aceitou o
fato de ela ser mais instruída, nem de ganhar dinheiro quando ele não
conseguia.
Quando ele percebeu que conseguiria ganhar para sustentar a família,
desejava provar que era capaz de sustentá-la sozinho. Ele não percebia que
para ela o emprego era uma realização pessoal.
Ela fora incapaz de analisar os fatos claramente. Para ele, o desfalque fora
uma prova de amor, para ela uma traição cruel.
Naquele momento Gabriela percebeu que, tendo cultivado a mágoa, havia
sido tão cruel quanto ele. Exigiu de Roberto um comportamento do qual não
era capaz. Além disso, tornara-se também presa fácil dos espíritos
perturbadores. Em toda aquela história, ela não havia sido vítima, como julgara.
Dali para a frente, iria se esforçar para olhar o passado de outra forma.
Roberto, mergulhado em suas ilusões, optara por aquele caminho doloroso,
e agora estava enfrentando as conseqüências. Ela não tinha o direito de atirar
sobre ele sua incompreensão, suas expectativas que ele fora incapaz de
satisfazer.
Ela desejava ser feliz, poder olhar para trás sem remorsos ou recri-
minações. Mas sentia que era importante aprender os valores verdadeiros e
eternos do espírito para saber se colocar diante dos desafios futuros.
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Ninguém é de Ninguém - Zibia Gasparetto
SpiritualHá quem pense que sentir ciúmes é provar que se ama ardentemente, mas até descobrir que ele transforma a vida amorosa em uma dolorosa tragédia, culminando em amarga separação. Se fizermos as contas, percebemos que sofremos mais com as pessoas que am...