Capítulo 26

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Tudo aconteceu muito rápido. Roberto notou o revólver na mão de Neumes
apontado em sua direção, viu quando ele puxou o gatilho. Ele também
apontou, conseguiu dar um disparo, mas sua mão não obedeceu mais. Sentiu
um líquido quente ensopando suas roupas e perdeu os sentidos.
Acordou assustado e olhou em volta. Estava deitado em uma esteira e
sentia-se muito fraco.
Lembrou-se de Neumes.
— Ele me acertou — pensou.
Onde estava? Olhou em volta, mas não conseguiu ver muito. Estava
escuro. Tentou levantar-se, porém não teve forças.
Talvez Neumes o tivesse escondido naquele lugar escuro para que ele não
recebesse tratamento e morresse. Sentia uma dor ardida no peito e no ventre.
Passou a mão e notou que havia duas feridas abertas, de onde saía uma
secreção que ele não soube determinar se era sangue.
Neumes o havia acertado. Precisava de atendimento médico.
Olhou em volta procurando encontrar ajuda. Mas a fraqueza era muito
grande. Fechou os olhos assustado. Ia morrer ali, esquecido de todos.
Lembrou-se de que não tinha dito a ninguém onde Neumes morava nem
que iria até lá. Com certeza Gabriela o estaria procurando mas não iria
encontrá-lo.
Roberto pensou em Pai José. Talvez ele pudesse socorrê-Lo, ir contar a
Gabriela onde ele se encontrava. Fazendo grande esforço, Roberto chamou
por Pai José com insistência.
Depois de algum tempo, uma pálida claridade formou-se a seu lado e um
desconhecido apareceu. Roberto indagou aflito:
— Onde estou? Quem é você?
— Sou seu amigo. Pai José está ocupado e mandou-me saber o que você
quer.
- Ainda bem. Já estava com medo. Estou prisioneiro aqui. Quero que vá
avisar minha mulher para vir me socorrer. Estou ferido, preciso de um médico.
O homem começou à gargalhar, exibindo algumas falhas de dentes, e
respondeu:
— O que você quer é impossível. Sua mulher não vai poder vir aqui. Mas
tenha paciência, que Pai José virá quando puder.
— Você não entendeu. Preciso de socorro. Estou muito ferido. Posso
morrer.
O outro continuou rindo. Quando parou, disse com má vontade:
— Deixe de ser bobo. Você não vai morrer, não. Agora você não morre
mais.
- Como assim?
— Porque você já está morto. Já foi enterrado e tudo.
Roberto sentiu tontura e esforçou-se para não desfalecer.
— Não brinque comigo. Começo a desconfiar que você não foi mandado
por Pai José. Deve ser amigo de Neumes.
— Se me ofender, vou embora, arrume-se como puder. Se eu disse que foi
Pai José quem me mandou, é porque foi.
— Está bem. Não quero ofender. Mas estou mal. Não posso ficar aqui sem
atendimento.Garanto que não vai acontecer nada. Agüente firme. Descanse. Aos
poucos vai se sentir melhor. Pai José vai vir assim que puder. Agora preciso ir.
Trate de dormir.
Ele desapareceu e Roberto chamou-o de volta, inutilmente. Se ao menos
ele conseguisse enxergar onde se encontrava... Mas estava escuro e ele sentia
frio.
Aflito, fez várias tentativas para levantar-se, sem conseguir. Desesperado,
tentou gritar, mas sua voz era fraca.
- Assim ninguém vai me ouvir — pensou.
Forte sensação de medo acometeu-o. Estaria destinado a morrer ali,
sozinho, sem socorro?
Naquele momento, sentindo-se impotente, arrependeu-se de haver
procurado Neumes.
Várias perguntas sem resposta vieram-lhe à mente, aumentando sua
inquietação. Pai José havia-lhe garantido que poderia ir ver Neumes. Se ele de
fato sabia tudo, por que não o prevenira do perigo que estaria correndo? Se
houvesse sido avisado, teria tomado mais cuidado.
Ele lhe garantira proteção, então por que agora não aparecia para socorrê-
lo? Sentiu vontade de rezar, porém não teve coragem. Pai José dissera-lhe que
os espíritos iluminados não ajudavam quem ousava intervir no destino, fazer
justiça com as próprias mãos. Finalizava dizendo:
— Eles acham que devemos aceitar tudo e esperar Deus determinar. Mas,
ao que sei, ele está sempre ausente. Até quando vamos ficar passivos diante
dos erros dos outros?
Se ele apelasse para os espíritos superiores, eles iriam pedir-lhe contas do
que fizera.
Roberto lembrou-se de que no terreiro ajudara a fazer inúmeros
despachos, para separar ou unir pessoas, conforme os pedidos dos fre-
qüentadores, tendo se acumpliciado com várias entidades do astral.
Ele sabia que estava errado, porém obedecia às ordens de Pai José. A
culpa era dele.
Entretanto, agora, pensando melhor, sentia que não era tão simples assim.
Sua consciência começou a incomodá-lo. Estaria sendo castigado? Nesse
caso, a quem recorrer?
Apesar da fraqueza, sua sensibilidade estava aumentada. Por sua mente
passaram vários acontecimentos de sua vida. Pensou nos filhos, e as lágrimas
desceram pelas suas faces.
Permaneceu assim longo tempo. Depois, vencido pelo cansaço,
adormeceu. Acordou sentindo que alguém o sacudia. Ainda atordoado,
balbuciou:
— O que foi? O que aconteceu?
— Viemos tomar satisfações. Por que se meteu em nossa vida?
— Eu?
Admirado, Roberto fixou os dois homens que o olhavam com raiva.
— Você, sim. Não se faça de tolo tornou um deles, sacudindo-o pelo braço.
- Vocês estão enganados. Não os conheço.
— Agora que está mal, deseja escapar, mas não vamos deixar.
- Afirmo que não sei do que estão falando.
— Sabe, sim. Vocês fizeram mandinga para Maninha separar-se de João a
pedido da desavergonhada da Joana. Ela ficou doente, eles se separaram porcausa de vocês.
- Não tive culpa. Só fazia o que Pai José mandava.
— Mentira. Vimos quando você fez o despacho. Eu jurei me vingar.
Maninha é minha filha.
Quem faz mal a ela compra briga comigo.
— Agora que você veio para cá disse o outro, satisfeito —, vai ter que
desmanchar tudinho.
Acho bom se preparar para começar logo.
Roberto começou a tremer. O que estaria acontecendo com ele? Por que
estava à mercê daqueles homens estranhos?
Lembrava-se do caso de Maninha. Eles haviam vencido e Joana fora até o
terreiro agradecer a Pai José. Ele havia ganhado uma garrafa de vinho para
comemorar.
— Quem soube beber o vinho vai saber desmanchar tudo. Vamos levar
você já — disse o pai de Maninha.
— Eu estou muito ferido. Não posso me levantar. Preciso de um médico.
— Precisa criar vergonha, isso sim. Deixe de frescuras. Levante-se e
vamos embora — decidiu o outro.
Ao mesmo tempo puxou o braço de Roberto tentando fazê-lo levantar-se.
Ele sentiu uma dor forte nas duas feridas e perdeu os sentidos.
- Ele não vai agüentar — disse um.
- Nesse caso, teremos de fazê-lo melhorar. Vamos buscar Neco.
Os dois saíram, deixando Roberto desacordado, estendido na esteira.
Voltaram algum tempo depois e ele não havia acordado ainda.
Neco era um negro alto, magro, ágil, rosto sisudo, mãos fortes. Aproximou-
se de Roberto, colocou a mão sobre sua testa por alguns segundos, depois
disse:
- Ele não tem como fazer o que querem. Se forçar, será pior. Ele vai perder
os sentidos e ficar muito tempo desacordado.
— Nesse caso, o que faremos? Precisamos dele para ajudar Maninha.
Vamos levá-lo para nossa colônia. Lá o deixaremos em condições de fazer o
que desejam. Vou chamar meus ajudantes.
Concentrou-se por alguns segundos. Depois disse:
— Eles estão a caminho. Vamos esperar.
Depois de alguns minutos chegaram quatro negros. Abriram uma padiola,
colocaram Roberto sobre ela e, a uma ordem de Neco, seguiram de volta para
seu ponto de origem.
Roberto acordou e olhou em volta, preocupado. Estava em um pequeno
quarto, deitado em uma cama tosca e por entre as frestas da pequena janela
entrava uma claridade acinzentada que lhe permitia divisar perfeitamente o
lugar.
Notou os curativos em suas feridas, sentiu-se aliviado. Havia sido
socorrido. Porém não estava em um hospital. O quarto pequeno, pobre, sem
um mínimo de higiene, parecia mais com uma casa de fazenda do que um
lugar de tratamento.
Sentou-se na cama sem dificuldade. Estava melhor. Levantou-se e deu
alguns passos apoiado nos pés da cama e em uma mesinha ao lado da janela.
Sentiu-se tonto, parou, respirou fundo. O importante era que estava sarando.
Precisava saber onde estava e quando poderia voltar para casa.
Quanto se sentiu melhor, abriu a janela e olhou para fora. O dia estavanublado, mas ele viu que lá havia vários casebres, em uma rua estreita e sem
calçamento. Que lugar seria aquele?
Certamente alguma pequena cidade onde o progresso ainda não havia
chegado.
A porta do quarto abriu-se e Neco entrou:
— Vejo que está melhor disse.
— Estou. Por que não me levaram para minha casa? Eu estava com meus
documentos no bolso do paletó.
— Sua casa agora é aqui. É melhor se acostumar.
— Quem é você? Por que me trouxeram a este lugar tão pobre? Eu posso
pagar um tratamento melhor.
— Seu dinheiro aqui não vale nada. Deite-se, que eu quero examiná-lo e
continuar o tratamento.
— Você é médico?
— Estou cuidando de você.
— Eu agradeço por ter me tirado daquele lugar horrível, mas quero ir para
um hospital decente, ver minha família. Eles devem estar preocupados com
meu desaparecimento. Há quanto tempo estou aqui?
— Contando à moda da Terra, uns dois meses.
— Dois meses? Não pode ser...
- Deite-se. Vou esclarecer tudo.
— Estou muito bem de pé.
— Faça o que estou dizendo. Vai precisar se deitar.
A voz dele era autoritária, e Roberto obedeceu. Vendo-o estendido na
cama, Neco colocou a mão direita sobre a testa dele e disse:
— Seu tempo na Terra acabou. Os tiros que recebeu estragaram seu corpo
de carne. Ele está morto. Não há nada a fazer quanto a isso.
Roberto estremeceu e sentiu que ia perder a consciência.
— Não fuja — disse Neco com voz firme. — Enfrente a verdade. Será
melhor.
Roberto reagiu. Precisava esclarecer tudo. Ele estava blefando. Aquilo não
podia ser verdade. Ele tinha corpo, estava ferido e, o que era mais importante,
estava bem vivo.
— É assim mesmo — continuou Neco. — Você continua vivo, só que em
outro mundo. Você morreu para a Terra e para sua família. Já foi enterrado.
Não tem volta. Agora começa outra etapa, e, diante dos problemas que
arranjou, é melhor cooperar.
Roberto tremia qual folha batida pelo vento forte, sentia frio e uma
sensação de medo incontrolável.
— Você é homem ou o quê? — desafiou Neco. — Os brancos são fracotes
mesmo. Que vergonha!
Enquanto falava, Neco passava suas mãos ao redor do corpo de Roberto,
detendo-se em alguns pontos. Aos poucos ele foi se controlando. Depois de
alguns minutos, Roberto indagou triste:
— Tem certeza do que está dizendo?
— Tenho. Você, que andava trabalhando no terreiro, não sabe disso?
Talvez não saiba também que está aqui na condição de prisioneiro de Juvêncio
e de Brito.
— Não pode ser. Não os conheço!
— Conhece, sim. Eles foram visitar você naquele brejo em que estavaenfiado e pediram que eu o socorresse. Juvêncio é o pai e Brito o tio de
Maninha. Eles trouxeram você para cá.
— O que desejam de mim?
— Você deve para eles. Vai ter que trabalhar para reparar as besteiras que
fez contra Maninha.
- Não fui eu. Só fiz o que Pai José mandou.
— Não se faça de bobo, que não adianta. Eu posso ver o que está
pensando. Quer saber de uma coisa? Se eu fosse você, tratava de obedecer,
pagar o que deve a eles e depois, quem sabe, talvez possa ir para outro lugar.
— E se eu me recusar?
— Eles têm meios de obrigar. Garanto que vai se dar muito mal.
— Você parece uma boa pessoa. Como pode permitir que eles façam isso
comigo?
— Não me meto nos negócios dos outros. Pediram-me para ajudálo e
estou ajudando, mas é só. Depois, eles têm direito de exigir justiça. Foi você
quem fez aquele trabalho sujo.
Roberto ficou pensativo. Tudo aquilo seria verdade mesmo? Estaria morto?
Precisava pensar, refazer as idéias. Era possível que ele estivesse internado
em algum manicômio por engano. Se estivesse lidando com um louco, teria de
ganhar tempo, fingir que aceitava tudo.
Neco olhou seriamente para ele, meneou a cabeça negativamente, depois
disse:
— Não tente bancar o esperto. Isto aqui não é um hospital de loucos. É
uma colônia de pessoas que morreram no mundo e aqui construíram esta
cidade. Temos sociedade organizada, nosso governador cria nossas leis, que
devem ser obedecidas. São muito diferentes da Terra. Aqui, as vítimas têm o
direito legítimo da vingança e da reparação.
Roberto sentiu um arrepio de medo. Neco havia lido seus pensamentos.
— Reconheço que está difícil acreditar em tudo que você disse. Mas vou
fazer força. Preciso colocar meus pensamentos em ordem. Foi uma mudança
muito repentina.
— Eu sei. Agora eu me vou. Logo mandarei trazer-lhe alimentos mais
fortes. Você já pode comer melhor.
Depois que ele se foi, Roberto, ainda deitado, repassou na mente tudo
quanto lhe havia acontecido. O que Neco lhe dissera poderia ser verdade.
Nesse caso, o que aprendera no centro em São Paulo valia. Se os tiros de
Neumes houvessem matado seu corpo, ele continuava vivo, sofrendo,
sentindo, apalpando suas carnes, como quando estava no mundo.
Era incrível, mas era verdade. Pensou em Gabriela, nos filhos, e as
lágrimas desceram-lhe pelas faces. Sentiu-se muito triste. Arrependeuse de
haver procurado Neumes, porém era tarde.
O que seria de sua vida dali para a frente? Como estariam Gabriela, as
crianças, sem seu amparo? Rompeu em soluços e chorou durante algum
tempo. Depois, as lágrimas secaram, só restando a tristeza e o desalento.
Decidiu que prestaria os serviços que aqueles dois desejavam. Talvez, se
o fizesse de boa vontade, pudesse transformá-los em aliados que o ajudariam
a cuidar de sua família. Agora Gabriela estava livre e talvez se juntasse a
Renato. Isso ele não poderia permitir. Era injusto. Ele continuava vivo, amando-
a, sofrendo a ausência compulsória. Fosse o que fosse, o importante era que
ele estava melhorando. Apesar das circunstâncias, eles o haviam socorrido.Decidiu obedecer. Talvez assim granjeasse a simpatia e a amizade deles.
Estava em um lugar desconhecido, e o melhor era contemporizar. Com o
tempo, havendo recuperado a saúde, decidiria o que fazer.
Tendo tomado essa decisão, dali para a frente Roberto passou a de-
monstrar boa vontade.
Dois dias depois, sentiu-se disposto e recuperado. Resolveu sair, dar uma
volta para conhecer melhor a cidade.
Assim que atravessou a soleira, surgiu um negro com um fuzil, que o
impediu de sair.
— Entre — disse ele.
Roberto obedeceu e respondeu:
— Eu quero sair um pouco. Já me sinto melhor.
- Agora não pode. Vou avisar Neco.
Pouco depois Neco entrou e disse satisfeito:
- Vejo que está bem.
- Estou. Quero sair, dar uma volta, conhecer a cidade.
— Ainda não pode. Vou levá-lo à casa de Juvêncio. Ele vai apresentá-lo ao
conselho. Minha missão com você acabou.
— Está bem. Decidi seguir seu conselho. Vou pagar o que devo a eles.
Quando eles me libertarem, o que acontecerá comigo?
— Depende de como você se comporta.
— Estive pensando. Não conheço nada aqui, nem tenho para onde ir.
Disseram-me que quando a gente morre encontra os amigos e parentes que
tinham morrido antes. Isso era mentira.
Não encontrei ninguém.
— Não é mentira, não. Alguns encontram mesmo.
— Bom, eu não encontrei, e pensei que talvez pudesse continuar morando
aqui.
— Isso é o conselho quem decide.
— Aqui não mora nenhum branco?
— Mora. Acontece que a maioria dos servos é de negros. Agora venha
comigo.
Eles saíram, e dessa vez ninguém apareceu para impedir. Caminharam
pela rua estreita e sinuosa e foram dar em uma praça onde havia alguns
prédios cinzentos, cada um com quatro andares. A construção parecendo
alvenaria era lisa, pequenas janelas simétricas, paredes rústicas.
Roberto notou a ausência de plantas. A terra era seca e não havia nem
mato. Neco conduziu-o para a entrada de um dos prédios onde havia um negro
alto, vestido com uma túnica de cor indefinida, com um fuzil em posição de
sentido.
— Viemos ver Juvêncio.
Eles entraram e subiram uma escada estreita e escura. Atravessaram um
corredor mal iluminado, onde havia várias portas. Neco parou em frente a uma
delas e acionou uma sineta.
Imediatamente a porta se abriu e eles entraram em uma sala onde havia
uma mesa tosca com algumas cadeiras e um armário. Imediatamente Juvêncio
veio do aposento contíguo.
— Chegou em boa hora — disse ele dirigindo-se a Roberto. —Nós fizemos
tudo que pudemos, agora é sua vez.
— Vim disposto a cooperar. Fazer o que você quiser. Quero ser seu amigo.Juvêncio olhou sério para ele. Ficou silencioso por alguns instantes, depois
respondeu:
— É. Vejo que pensou bem. Mas, depois do que fez, não quero ser seu
amigo.
— Eu não conhecia você. Não sabia que eu estava errado. Sabe como são
as coisas quando se vive na Terra. Tudo fica tão complicado...
— Bem, isso veremos. Saiba que terá que ser tudo do meu jeito. Não vou
admitir fracassos nem mentiras. Sou justo, se fizer como eu quero tudo bem,
senão, não perdôo. É melhor saber disso logo. Não estou disposto a tolerar
fraquezas nem falsidade.
— Não precisa repetir isso. Estou disposto a pagar tudo que lhe devo.
Quero viver bem.
Juvêncio bateu palmas e logo apareceu uma mulher de meia-idade,
vestindo uma túnica parda.
Juvêncio ordenou:
— Este é o homem do qual lhe falei. Cuide dele.
Ela se aproximou de Roberto, tomou seu braço e disse:
— Meu nome é Nena. Venha comigo.
A mão dela era fria, seu rosto inexpressivo. Roberto sentiu um arrepio e
vontade de tirar aquela mão do seu braço. Sentindo o olhar crítico de Juvêncio,
tratou de dissimular e deixou-se conduzir sem resistência.
— Obrigado, Neco. Estou lhe devendo mais este favor. Pode estar certo de
que não esquecerei. Sou reconhecido a quem me presta um serviço.
— Sei disso. Se o amigo precisar, estarei à disposição. Fez um bom
trabalho. Ele ficou mais obediente.
— Só lhe disse a verdade. Ele ainda não sabia que tinha morrido. Agora
sabe que não lhe resta outro remédio senão obedecer.
— Ainda bem que ele não chamou nenhum servo da luz. Eu tinha medo de
que ele me escapasse.
— Fiz o possível para evitar isso. Agora cabe a você.
— Ele pensa que vai sair daqui logo. Não sabe com quem está lidando.
Agora que o tenho nas mãos, ficará muito tempo.
— Se ele se rebelar, você sabe o que fazer. E só trazer a lembrança da
culpa que ele sente por haver tramado contra sua mulher que ele vai ficar
manso logo. Esse é seu trunfo.
- Eu sei. Pode deixar que não vou esquecer.
Sentado na estreita cama do pequeno quarto, Roberto sentiu enorme
tristeza. Como fora parar naquele lugar horrível em meio a pessoas tão
desagradáveis? Ah, se ele pudesse voltar atrás!
Às vezes beliscava-se tentando acordar do pesadelo em que imaginava
estar mergulhado, porém essa atitude apenas lhe provava que não se tratava
de um sonho, mas de uma difícil realidade que dali para a frente ele teria de
suportar.
Pensou na família, e algumas lágrimas molharam suas faces. O que ele
havia feito de sua vida?
Por que se envolvera com pessoas desconhecidas, interferindo em seus
caminhos?
Nena havia-lhe dito:
— Vai ficar aqui até o patrão chamar.
Pouco depois, Juvêncio apareceu e disse-lhe:— Há uma túnica no armário. Vista logo, que vamos ao conselho.
Roberto abriu o armário, pegou a túnica e respondeu:
— Não posso ir com minha roupa mesmo?
Juvêncio impacientou-se:
— Vista logo. Você é meu servo e tem que se apresentar com o uniforme
de minha casa.
Roberto obedeceu e acompanhou-o sem dizer mais nada. Andando pelas
ruas estreitas e sem calçamento, olhando o céu nublado, as casas feias e mal-
acabadas, Roberto pensou que talvez aqueles homens não fossem tão
poderosos como diziam.
Porém mudou de idéia quando chegaram a uma praça com calçamento,
onde o tipo de construção mudava completamente. Havia casas bem
construídas, prédios sólidos e bem-acabados. Brancos e negros misturavam-se
nas ruas e ele observou que os brancos iam na frente acompanhados pelos
negros, que lhes obedeciam.
Notando sua admiração, Juvêncio esclareceu:
— Do que se admira? Aqui somos conservadores. Há os senhores e os
escravos.
— A escravidão acabou.
— Acabou no papel. Há muitas formas de se escravizar. Mas aqui nós
temos nossas leis.
Quem deve fica escravo. É justo. A escravatura é o melhor sistema social.
Roberto ia responder, mas desistiu. O que poderia dizer? Aquela realidade
era uma aberração. Concluiu que estava em uma cidade muito atrasada.
Precisava sair dali. Mas como? Resolveu contemporizar, ganhar a
confiança deles e depois decidir. Por isso acompanhou Juvêncio, mostrando
boa vontade.
Entraram em um prédio e Roberto notou que a construção ostentava um
luxo pesado e grosseiro. Foi conduzido a um salão onde havia uma bancada
ao fundo e cadeiras na frente.
Parecia um tribunal.
Atrás da bancada estavam sentados alguns homens de postura austera,
alguns com barba, trajando batas recamadas de galões dourados.
Juvêncio aproximou-se, curvou-se e disse:
— Saúdo nossos maiores e peço permissão para ficar com esse escravo a
meu serviço.
Eles olharam para Roberto atentamente, depois um deles considerou:
- Ele é seu escravo em que condições?
— Quando na Terra, prejudicou minha filha Maninha, fez feitiçaria contra
ela. Não pude fazer nada para impedir. Eu o vigiava e quando veio para cá
tomei-o a meu serviço para recolocar as coisas no lugar.
— Ele foi assassinado — disse um outro sério. — Foi você quem tramou
isso?
— Não — esclareceu Juvêncio. — Foi um ajuste de contas que ele fez e
perdeu. Não tive nada a ver com isso.
— Porque, se teve, sua dívida já está quitada.
— Não. Vossa Excelência pode verificar como foi.
Alguns segundos de silêncio depois, o que estava sentado no centro e
parecia ser o líder decidiu:
- Concedido. Ele poderá ficar até quando você se considerar pago. Porém deve obedecer a nossas regras. Ele é seu. Pode ir.
Juvêncio, satisfeito, tomou Roberto pelo braço e conduziu-o para fora.
- Vamos para casa. Temos que programar a ajuda a Maninha.
Roberto estava emudecido de surpresa. Nunca imaginou que existisse um
lugar como aquele.
Porém notou que eles não estavam de brincadeira. Se quisesse ficar bem e
livrar-se, teria de cooperar.
De volta ao prédio onde estava instalado, foi conduzido a uma sala onde
Brito já os esperava.
— Agora é nossa vez disse, vendo-os entrar. — Você terá que fazer a sua
parte.
— O que querem de mim? indagou Roberto.
- Vamos preparar você. Depois terá que entrar naquele terreiro de Pai José
e descobrir o que queremos.
— Não sei como fazer isso...
— Vai saber logo esclareceu Juvêncio. — Antes vamos preparar tudo. Você
vai fazer do jeito que queremos. Nem pense em nos trair.
— Temos como controlá-lo. Se estiver fazendo alguma coisa errada, temos
como trazê-lo de volta imediatamente disse Brito. Então vai se ver conosco.
- Eu não estou pensando em fazer nada. Se estou devendo a vocês, quero
pagar tudo e ficar livre. Eu tenho muito interesse em fazer o que desejam. Já vi
que são poderosos, e estou pronto a obedecer.
- Melhor assim respondeu Juvêncio. Para desfazer o trabalho de Maninha,
precisamos destruir um pólo que está guardado na sala fechada onde só entra
o encarregado. Sem isso não conseguimos nada. O lugar é vigiado e nós não
pudemos entrar de jeito nenhum. Você é conhecido deles. Não vão impedir sua
entrada nem desconfiar de nada.
- Não sei como ir até lá.
— Deixe por nossa conta — tornou Juvêncio. — Vamos mostrarlhe o lugar
e o trabalho que terá que destruir. Você vai, diz que precisa de ajuda, não fala
nada de nós. Começa a freqüentar, depois lhe daremos nossas instruções. Se
fizer tudo direitinho como ensinarmos, vai conseguir.
Roberto entusiasmou-se. Ele iria voltar à Térra. Do terreiro seria fácil dar
um pulo em casa para ver a família.
- Estaremos vigiando todo o tempo. Está vendo esta tela aqui? Vou ligar
para você ver.
Ele tocou em um lado e ela se acendeu, mostrando o terreiro de Pai José,
àquela hora deserto. Maravilhado, Roberto perguntou:
— Eu poderia ver como está minha família?
— Não. Conseguimos este acesso, mas ainda não podemos ver tudo.
— Vou fazer o que puder para servi-los. Mas, quando estiver lá, gostaria
que me dessem permissão para eu ir até minha casa.
— Isso não é possível— disse Brito. — Você não pode desviar sua
atenção. Depois, pode se perder. Se ficar emocionado, se as coisas em casa
não estiverem correndo bem, pode pensar em nos desobedecer. Isso não
vamos permitir.
— Por outro lado — tornou Juvêncio, maneiroso —, se fizer tudo direito e
conseguir o que queremos, nós o ajudaremos a ir ver sua família. Mas só
depois.
Apesar de ansioso, Roberto achou bom concordar. Era melhor do que nada.
Nos dias que se seguiram, ele recebeu aulas sobre como se locomover,
esconder-se, várias técnicas, e ficou tão entusiasmado aprendendo coisas do
seu novo estado que esqueceu até seus projetos de sair daquele lugar. Afinal,
estava sendo muito útil.
Tinha certeza de que um dia poderia ser auto-suficiente, voltar a ver a
família, saber tudo e cuidar de Gabriela.

Ninguém é de Ninguém - Zibia GasparettoOnde histórias criam vida. Descubra agora