|— Muito trabalho? — Perguntou Alfredo Spanno a Ruanna assim que ela entrou em casa.
— Muito...
— Parece que minha filha não está bem. — Disse ele levantando e afastando a poltrona favorita de Ruanna para perto da sua. — Sente-se. Acho que vai te fazer bem.
Ruanna jogou os papéis no canto de uma mesa e arrastou o corpo até onde seu pai preparou. A morena deixou os olhos vazios parados por alguns segundos, colocou a mão no queixo e apoiou o braço nas pernas torneadas.
— Acho que você precisa conversar. — Alfredo quis arriscar alguma massagem nas costas de Ruanna.
— Pai, você não vai acreditar.
— Vou sim... — Ele quis rir. Ela não gostou. — Comece.
— Eron está morto.
Alfredo girou pelas costas da filha e ficou num lugar onde pudesse ver os olhos de Ruanna.
— O pervertido está morto?
— Está...
— O caso muda? Acho que não. Pois você ainda procura um corpo e um possível assassino. Uma peça foi descartada e talvez essa novidade traga os olhos aguçados da minha filha para o outro lado da história.
— Pai, não é apenas sobre isso. — Ruanna trazia o medo no olhar, os cabelos do braço arrepiavam e um frio inédito corria por trás do seu pescoço. — Coisas estranhas aconteceram nesses últimos dias.
Alfredo sentou novamente. O silêncio dominou o ambiente e o pai de Ruanna podia sentir toda a tensão na filha. Ruanna tentou juntar os fatos desde o primeiro dia em que o televisor parou no canal que tratava sobre psicopatia e o caso da Rua dos Sonhos caiu em seu colo. Ruanna lembrava bem de todas as vezes que parecia sentir o pervertido ao seu redor.
— Às vezes pensei em ter visto Eron rodear nossa casa. — Alfredo olhou pelas janelas. — Não sei... Outras vezes senti a presença dele nos arquivos do canal.
— Você acha que ele veio atrapalhar ou ajudar? Sabe, Ruanna, eu acredito nessas coisas.
— Não sei, mas posso garantir que Eron está por aqui. Vivo ou morto, Eron de Menezes tem interesse nesse caso.
— Redenção ou vingança? — Soltou Alfredo tentando acompanhar Ruanna.
— Justiça. — Afirmou ela com força.
— Alguma outra novidade?
— Sim. Clarice me entregou três cartas ameaçadoras de Eron para Iris. — Ruanna levantou e foi até a mesa revirar os papéis para trazer os escritos para o pai. — Leia e tire suas próprias conclusões.
— Tudo bem, mas o que essas cartas faziam com Clarice? — Disse Alfredo abrindo a primeira carta.
— Isso Clarice não me disse. — Ruanna levantou. — Na realidade ela nunca as abriu.
— Hã? As cartas nunca foram abertas nem periciadas?
— Não, não.
— Meu Deus... — Deixou escapar Alfredo. — Estranho... Cartas na era da tecnologia.
— Pensei assim, mas o crime ocorreu há mais de 11 anos e a tecnologia das mensagens instantâneas não estava tão difundida na periferia da América Latina. — Ruanna esperou aprovação. Alfredo aproximou-se e recebeu da filha a primeira.
— Era mais prático fazer isso e entregar em uma sala de aula.
Ruanna sorriu para o pai ao vê-lo admirado com o desenho em suas mãos.
— Exato! Eron mandou um desenho a Iris. — Confirmou a jornalista.
— Meu Deus... Ele pintava em aquarela. Que maravilha! — Nas mãos de Alfredo estava o desenho de uma janela quebrada e um piano logo após uma parede cinza. As sombras do lugar escorriam e deixavam escrever "FEVEREIRO DE 2006". — Sem dúvida um artista.
— Isso... Não esqueça que temos três provas novas. — Lembrou ela ao pai entregando outra carta.
— Outro desenho?
— Sim. — Alfredo estava curioso cada vez mais com o trabalho do pervertido.
No segundo desenho havia várias flores amarelas e lilases e um número de telefone.
— Bingo! — Gritou ele. — Um número de telefone. Que bela prova... Através da justiça conseguiremos facilmente o dono da linha.
— Conseguiremos... — A voz da jornalista soou irônica ao ver o entusiasmo do pai. Alfredo sentia-se parte daquele quebra cabeça. — E o senhor, meu pai, ainda não viu a última carta com o último desenho.
— Não vejo a hora... Juro que se você não me mostrar, eu não vou dormir. — Ele riu e estendeu a mão esquerda para a filha.
— Tenha calma, Doutor Alfredo. — Disse ela segurando o último desenho contra o peito. — Antes de ver o último desenho, me diga o que conseguiu raciocinar quanto aos primeiros.
Alfredo ficou com a mão estendida, pensou alguns segundos e a colocou no bolso. O velho deu alguns passos na sala e, por vezes, a vista foi pra longe.
— Bem... Acho que o primeiro desenho é um encontro. — Disse ele retirando a vista logo em seguida.
— Continue...
— O segundo é uma forma de contato confidencial. — Ele parou um pouco. — Que nos levará facilmente a encontrar uma peça muito importante nesse quebra-cabeça.
— Fácil! Não é mesmo? — Ela sorriu de novo. — Mas levando em consideração que Eron de Menezes e Iris Almeida estão mortos, esses dados são de difíceis percepções.
— Deixe me ver o outro desenho. — Alfredo estendeu a mão esquerda outra vez.
Ruanna entregou com todo o cuidado a última carta.
— Jesus... — Alfredo estava admirando a pintura e a informação que aquele pequeno papel trazia. — Estou encantado com o trabalho desse rapaz e com o significado disso tudo.
Em cores escuras, com detalhes em cinza, várias sombras estampavam três cabeças na escuridão, não se podia ver os rostos ali apresentados, mas ao centro existia um bebê pintado em azul escuro. Pela simples dedução tínhamos dois homens nas sombras e uma mulher.
— Passional... tivemos um crime passional. — Concluiu Ruanna.
— Temos um bebê.
— Isso muda muita coisa meu pai, temos um bebê e talvez um duplo crime. — Ruanna retirou do pai a última pintura.
— Ou talvez duas pessoas desaparecidas.
— E um acusado que cometeu o suicídio. — Completou ela ao organizar as cartas.
— E como sabemos a ordem dessas cartas?
— Clarice explicou a sequência.
— Resta saber mais sobre essa moça, Clarice é a chave disso tudo. — Ao ouvir as palavras do pai, Ruanna parou um pouco o que fazia.
— Clarice e Guilherme sabem muito mais. Tenho um encontro com o professor amanhã, vou informar que Eron está morto e tentar levantar mais algumas coisas. Em relação a Clarice, qualquer dado guardado com ela vai ser revelado. Ela veio ajudar a ressuscitar o crime naquela rua, os motivos que ela carrega eu não sei, mas estou a deixando à vontade, em seu tempo, tudo vai se encaixar.
— Concordo, as coisas estão parecendo mais fáceis.
— Não quando você acha que o principal suspeito ronda sua casa. — Ela parou um pouco, olhou as escadas que a levariam ao segundo andar e continuou. — E logo depois você descobre que ele está morto.
— Você sempre achou que era ele, não é mesmo?
— Desde o primeiro dia que o controle do televisor me levou ao caso da Rua dos Sonhos. — Ruanna deixou o pai para trás e começou a subir as escadas carregando seus documentos. — Não se preocupe, acho que gostaria de vê-lo outra vez.
O pai de Ruanna fez o sinal da cruz três vezes.
VOCÊ ESTÁ LENDO
"ONTEM TE VI NA RUA"
Mystery / ThrillerBaseado em dois crimes que chocaram a opinião pública e a imprensa nacional, "Ontem te vi na rua" é o primeiro trabalho de Diego Chermont como escritor. - OBRA COMPLETA DISPONÍVEL -