||_Sexta à Noite_||

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|— Os melhores resultados são conseguidos assim: dedicação e empenho. — Sanderson entrou no arquivo do canal. Ruanna estava jogada em frente a uma TV. — Estou incomodando?
— Não, não. Longe disso. — Ruanna mudou a posição na cadeira. — Acho que estou passando dos limites.
— Como assim? — Sanderson sentou ao lado de Ruanna. — Você está a trabalho, não é mesmo?
— Sim. — Disse ela.
— Boa notícia. Apenas os diretores e técnicos de plantão trocam a noite de sexta por reuniões e trabalhos aqui dentro.  — Ele se aproximou da cafeteira e se serviu. — E como andam os trabalhos?
— Esse caso... — Ela parou um pouco antes de começar. — O primeiro que escolhi como piloto do projeto está cada vez mais estranho. — Ruanna entregou a foto de Eron de Menezes para o chefe. — Às vezes acho que ele realmente não teve nenhuma participação no desaparecimento daquela menina.
— O rosto desse garoto parece familiar, mas de qual caso estamos falando? — Sanderson encarava Eron. — Ruanna revirou algumas fotos e entregou uma de Iris para Sanderson. O diretor do canal só precisou de alguns segundos para reconhecer aquele rosto.
— Agora sim... Lembro bem do caso. — Ele ficou encantado com a beleza de Iris. — Como ela era linda, não é mesmo? — Sanderson aproximou a foto da menina desaparecida de um pequeno feixe de luz que corria da parede lateral.
— Garota da periferia e miss juvenil no ano do desaparecimento. Morte presumida, sem corpo, sem culpado. — Ela esperou uma posição do amigo à frente. — Chocou a cidade, a opinião pública, e acabou nas manchetes nacionais.
— Interessante. E na TV? — Sanderson pegou o controle e apertou o play. Nas imagens Eron passava algemado, dois policiais o escoltava dentro da delegacia. O barulho ao redor era ensurdecedor, os presos ao redor estavam loucos para pôr as mãos em Eron, o pervertido.
Manda esse estuprador pra cá pra sentir a minha porra na boca dele!
Vamos rasgar o seu cu! Seu filho da puta!
Você não amanhece mais como um homem! Vai ser nossa mulherzinha!
Mulherzinhaaa...
— A opinião pública o condenou. — Disse Sanderson ao parar novamente o vídeo. — Onde está nosso antagonista hoje? — Ele deixou a vista correr pelas pernas de Ruanna antes de ter a resposta.
Ruanna se arrumou outra vez na cadeira.
— Não sei. — Ela sabia. — Estou completando as coisas para falar com os técnicos para gravar as primeiras imagens. Quero uma pesquisa contundente e imparcial sobre os dias anteriores e posteriores ao desaparecimento da jovem.
— Muito bom... Creio que será um sucesso. — Sanderson colocou outra xicara de café.
— Obrigada novamente, eu precisava dessa oportunidade — Ele se aproximou, tomou mais dois goles de café e pensou um pouco.
— Eu tenho que ir. — Sanderson deu o último gole. — Alguns amigos meus estão indo em um bar aqui perto. Pensei em convidar você, mas...
— Queria muito poder ir, Sanderson, mas o trabalho está realmente me consumindo.
O chefe de Ruanna foi interrompido antes de prosseguir. A moça a frente ficou em silencio e deixou para Sanderson a iniciativa da despedida.
— Sucesso nos trabalhos. — Ele levantou um pouco sem jeito e procurou a porta.
— Obrigada mais uma vez.
Sanderson saiu depressa sem olhar para trás. Ruanna deixou escapar uma palavra, mas que de tão baixa não foi compreendida por Sanderson.
Os corredores estavam vazios, o arquivo escondido estava acolhendo Ruanna e seus pensamentos. O medo de Eron parecia constante sempre que ela ficava sozinha e acordava para a realidade dos atos que poderiam ser do magricela da Rua dos Sonhos. Ruanna levantou, arrumou suas coisas, pegou o controle remoto e tentou desligar a TV em pausa com a imagem de Eron.
Sem sucesso. — Meu Deus... — O rosto sem vida estava deformado pelas agressões, pálido e abatido, Eron estava em agonia. Seus olhos pediam socorro. Sem pensar duas vezes, Ruanna saiu daquela sala às pressas.
A TV ficou ligada para a escuridão daquela sala. Eron e sua tristeza.

                                       ||...||

|Outra vez a pequena praça e um Guilherme pensativo conversavam. A noite chegará aos poucos. A gestão municipal há muito tempo não ligava mais para os detalhes daquela faixa antiga da cidade com moradores que se espremiam nos transportes públicos e que se achavam classe média. — Isso! A classe média que viam e ouviam no noticiário. A prefeitura cansou deles, cansou das escolas públicas ao redor. A cidade buscava formadores de opinião ou pessoas de histórias de sucesso que mais motivavam do que ensinavam sobre a sorte. A Rua dos Sonhos não possuía uma referência para aquela comunidade, àquela rua simbolizava a incompetência da polícia local, a falta de controle do ministério público e a deficiência das autoridades judiciais. Crimes sem soluções representavam o fracasso do Estado na execução dos trabalhos e nos números de jovens que se perdiam todo dia. Talvez vítimas do próprio Estado, talvez vítimas dos próprios atos e de suas escolhas irreversíveis. O jovem Guilhar estava de frente para a mansão número sete e assim permaneceu por um bom tempo, hipnotizado pelo passado. O gosto de Bia ainda estava em sua boca, os seios fartos deixavam Guilherme confuso. Língua, pescoço e seios trouxeram o professor para o centro daquela rua, para perto de seu grande amor. Talvez o jovem Guilhar quisesse pedir desculpas a alguém que há muito tempo já se fora, ou talvez apenas conversar com seu passado.
A sexta estava indo embora, logo o sábado repleto de tédio acordaria o professor sem objetivos no horizonte. O mundo estava repleto de drogas e êxtases momentâneos e vários homens destruiriam seus salários e suas oportunidades hoje à noite.  — Sexo e música. Poderia ser muito bom pegar algumas garotas mais jovens e transar com elas em qualquer lugar, e no final da noite deixá-las em casa e nem olhar em seus pequenos rostos, sem beijos de despedidas e nem telefones para contato. E para quê? O mundo estava perdido, todos sabiam disso e faziam questão de repetir. — O mundo está perdido! O mundo está destruído e ninguém mais é de ninguém.
Iris deixou saudade, mas hoje ele não queria paz, queria um pouco mais de Beatriz, o cheiro dela estava em suas roupas jogadas na velha cama. Outra jovem entrava em sua vida nos corredores daquela escola, outras promessas, mas Guilherme agora tinha quase trinta anos e um passado de dor. Beatriz e aquele conjunto de coisas inexplicáveis, aquela força juvenil e aquele beijo que já era porta de entrada para vários outros. As doces lembranças de Iris entravam em contrates com a agressividade de Beatriz. — E se a escola souber? — Meu Deus! Ela é louca... Mas deliciosa. Que pernas... Que bunda!
Guilherme tentou raciocinar e o pensamento o levava a tragédia sobre tudo aquilo. — tragédia! Outra tragédia anunciada na vida do professor de matemática que só queria renascer e ser feliz outra vez.
Entre pensamentos de reconstrução e devaneios, Guilherme notou um Audi que descia a Rua dos Sonhos em direção à praça central. O veículo entrava em contraste com o ambiente por suas formas modernas. Era um "senhor" carro. Como aqueles das propagandas das finais de campeonatos de futebol. O jovem professor não conseguia encontrar razões para que alguém tirasse a sexta à noite e aquele carro para resolver algo ali.
O carro estacionou a poucos metros de Guilherme, os vidros escuros impossibilitavam o reconhecimento do motorista. Ao redor todos notaram a presença estranha do veículo que visitava aquela rua pela segunda vez. Para Guilherme restou à contemplação daquela bela mulher que vinha do outro lado da cidade. Ruanna Spanno levantou os óculos com detalhes em madeira e cruzou as pedras de calcário até encontrar os olhos do professor. A jovem não trouxe arquivos nem pastas, nenhum documento. A moça fechou a porta do carro e se dirigiu até o banco que conversava com Guilherme naquela noite. Ele acompanhou cada passo, cada movimento de Ruanna e nenhum dos dois tinha a menor noção da importância daquele encontro para os ambos.
— Boa noite. — Disse Ruanna ao destacar com a voz seu encantamento. A herdeira dos Spannos esperou o retorno de um Guilherme confuso, mas o professor apenas levantou os olhos e jogou a responsabilidade para a desconhecida. — Desculpa, acho que preciso me apresentar.
Guilherme não representava muito bem e seu desconforto era visível. Ruanna perdeu o passo ao tentar se arrumar na postura, e mesmo assim desenganava as mãos sem ter onde colocá-las. — Ela arrumou o cabelo.
— Não... Tudo bem. — Guilherme levantou e estendeu a mão direita a Ruanna, que era canhota. Ela tentou trocar a mão, mas no impulso estendeu a outra. — Guilherme, Guilherme Guilhar.
— Ruanna Spanno. — A voz escorreu e seus olhos cobriram a face inteira de Guilherme.
— Posso ajudar? — Perguntou Guilherme ao retirar a mão que Ruanna prendeu por segundos involuntariamente.
— Sim. Eu represento alguns casos arquivados no canal de notícias local. — Ela estalou os dedos. — E... Sou advogada criminalista.
— Você quer me entrevistar para uma dissertação sobre crime sem corpo? — Interrompeu Guilherme. — Talvez eu não possa ser útil na sua pesquisa acadêmica. Eu cansei de vocês faz tempo...
O encantamento não fez Ruanna acordar. Ela parou um pouco para processar as palavras do professor.
— Desculpe Guilherme, eu, eu não sabia que você se incomodava com o assunto. — Ruanna se arrumou novamente transparecendo uma ansiedade pouco comum.
— Não me incomodo, eu desprezo o assunto. — Já cansei das mesmas perguntas. Por que a senhorita não pesquisa na biblioteca da universidade local?
— Desculpa outra vez, mas não quero usar você. — Guilherme parou por um tempo e tentou segurar o impulso. — Eu quero ajudar...
— Ajudar? — Ele respirou fundo e tentou processar a presença daquela mulher bem vestida em um momento tão inoportuno.
— Isso. Quero ajudar no caso da Rua dos Sonhos. — As palavras dela rasgavam Guilherme.
— Você veio ressuscitar alguém especial e nos levar no seu carro importado para jantar? — Ruanna só observava Guilherme tentando acelerar o raciocínio.
— Eu represento um projeto piloto do canal local sobre nossos crimes, os crimes sem solução da nossa cidade. Os crimes ao redor da gente, de pessoas que circularam no nosso meio. Crimes que levaram pessoas para longe e que os autores também estiveram no meio de nós. Histórias que se perderam nesses ambientes tão parecidos com as pessoas envolvidas. — Guilherme gostou da comparação, revisou a Rua dos Sonhos e conseguiu se identificar em cada pedra e lâmpada danificada daquele lugar.
— Você quer fazer um filme sobre nós? — Perguntou Guilherme outra vez. — Ele foi irônico. Ruanna não conseguia ler o rapaz.
— Não só sobre o crime...
— E sobre o que mais? Quem se interessaria por algo além desse crime? — Guilherme tentava entender Ruanna. — Qual seria seu interesse então? — Ele cruzou os braços, o silêncio dominou a conversa, Ruanna pensou por alguns segundos, olhou para a mansão número sete e continuou.
— Meu interesse está nessa rua, no ambiente do crime e em tudo que ela guarda. Não pretendo resumir pessoas, nem apenas aos motivos. — Ruanna pegou o professor. — Acho que além do crime existiu uma história de amor aqui.
— Rua dos Sonhos... — Guilherme parou por um tempo e ajustou o raciocínio. — e o que a Rua ganha com isso?
— O desarquivamento do processo e um júri honesto. — Disse Ruanna. — E que tal a prisão do culpado? Ou quem sabe encontramos um corpo desaparecido?
— E por onde começamos? — Perguntou Guilherme passando a vista sobre as casas antigas ao redor mais uma vez.
— Eu tenho o endereço de Eron de Menezes, posso ir até lá e levantar algumas informações. O que acha?
Guilherme estremeceu.

"ONTEM TE VI NA RUA" Onde histórias criam vida. Descubra agora