||_Sávio e Ana, a redenção_||

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|A ambulância cortava a cidade, o caminho até o hospital de urgência não era tão difícil, pois o trânsito estava parado e poucos carros precisavam trocar de faixa ao som da sirene comovente. Ana conseguiu ver boa parte de sua vida passar correndo à frente de seus olhos a cada novo sinal que avançavam para chegar o mais rápido possível ao lugar que poderia amenizar a dor de Sávio. Ele estava desacordado, os cuidados feitos em casa não conseguiram abafar o câncer, ela sabia que ele estava indo embora, mas mesmo assim ela não queria deixá-lo ir de maneira alguma, não importava a dor ou as noites sem sono, Sávio não poderia deixá-la naquele mundo sozinha. Sávio estava desacordado e tinha a mão esquerda sendo segurada pela pessoa que mais o amou na vida. Antes de desacordar após as fortes dores no abdômen, Sávio pôde ver em sua frente a dor que deixaria pra trás, sabia das lágrimas eternas que Ana deixaria escapar sempre que ouvisse os meninos do Detonautas tocarem "Olhos Certos". O médico de meia idade olhava aquela despedida anunciada, o técnico analisava os equipamentos enlouquecedores que faziam todo tipo de barulho parecer o sinal de morte.
Ana estava destruída.
— Queria tanto que você ficasse... — Ela desabou.
— Vamos fazer o possível. — Disse o médico trazendo no rosto mais incertezas do que palavras de conforto. Ana conseguia ler tudo.

Tento te encontrar
Tanto pra dizer
Meu amor, tudo bem...

|Em algum lugar da memória, ela se lembrou da música escrita em bilhetinhos, e lembrou que ele adorava tocar essa música quando eles saíam aos sábados sem muito dinheiro e paravam em algum lugar na areia da praia com alguma bebida barata e um violão comprado de segunda mão de um ladrãozinho que morava perto da casa de Sávio. Ela até tentou um bom trabalho num escritório repleto de tarados que achavam que um "BMW" faziam as mulheres amarem mais e melhor; eles andavam com camisas de um salário mínimo e traíam as esposas com mulheres que estivessem dispostas a comprarem as cantadas baratas e algumas doses de espumantes caros das boates que ficavam bem perto da mesma praia que Ana sempre ia com o amor de sua vida. Lá, os chefes e os imediatos a assediaram de várias maneiras, ela só queria um salário digno e voltar pra casa no ônibus 41 lotado rezando para não cochilar e chegar em casa com força total para abraçar os fracassos de Sávio. Entre os imbecis, um bom salário e as propostas indecentes, Ana preferiu abrir mão da grande oportunidade da sua vida. Ana trabalhou por muito tempo ajudando no escritório de uma viúva no comércio popular, o salário era mais baixo, mas as pequenas comissões permitiam que ela e Sávio pagassem as contas e fossem ao "Big Ben" comer filé à parmegiana todo fim de semana. Ele sempre pedia suco natural e brigava com Ana quando ela exagerava nos refrigerantes e explicava como deveriam, apesar de extravasarem nos fins de semana, manter uma vida saudável para que pudessem juntar mais dinheiro e, um dia, pudessem ir à Argentina.
A ambulância parou e a porta foi aberta pelo lado de fora, Ana estava tensa e apertou a mão de Sávio, ele se mexeu e tentou abrir os olhos, outras pessoas chegaram para ajudar no transporte do paciente. Algumas palavras mais técnicas corriam entre as pessoas que ajudavam a retirar o rapaz em agonia, Ana só queria pegar Sávio e sair correndo dali.
Em meio à correria, Sávio abriu os olhos quando as mãos de Ana se desprenderam da sua. Ele estava com medo e sabia que alguma chance a mais era improvável naquele ponto do jogo. Os enfermeiros puxaram a maca e direcionaram Sávio pela calçada que ficava antes do corredor branco com faixas vermelhas. Ana caminhou sempre ao lado de Sávio que foi sendo "entubado" enquanto sentia toda a tensão e o cheiro característicos de hospital. As luzes passaram sobre sua cabeça e as expressões das pessoas que o acompanhavam não o deixavam tranquilo, seu corpo tremia e seus ouvidos estavam doendo. A tontura se misturava às pancadas na cabeça e a falta de ar que se sincronizavam às palavras que ficavam mais baixa a cada segundo, seus olhos amarelos foram pegos pelo sono repentino e antes que pudesse dormir outra vez, um jovem de cabelos desarrumados o observou de braços cruzados. Estava encostado a uma grande porta, os olhos negros e penetrantes entraram como um raio na memória de Sávio e nada precisou ser dito. Ana notou os olhos de socorro de Sávio e tentou acompanhá-los, mas sem sucesso.
Uma parada cardiorrespiratória foi observada por um dos médicos, Sávio sentiu a dor enquanto viu Eron se perder nos corredores brancos em meio às roupas negras que sempre usava. O olhar pedinte do pervertido da Rua dos Sonhos foi a última coisa que Sávio viu conscientemente naquele dia que era o começo do fim.

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