||_Encontros_||

51 9 1
                                    

|O sábado de Ruanna Spanno era sempre tão apressado e vazio. Um café meio amargo pela manhã e o supermercado. A jovem não admitia mãos estranhas sobre seus alimentos. As livrarias do centro antigo eram refúgios agradáveis durante a tarde, os shoppings e as multidões a afastavam. Os salões de beleza estavam lotados, e Ruanna odiava os assuntos lá abordados. Os passeios do fim de semana sempre terminavam antes do tempo, pois sempre a necessidade de estar em casa aguçava e controlava a jovem jornalista. Suas amigas estavam visitando exposições de noivas, comprando pacotes caros para visitar cidades famosas da Europa, e outras poucas seguiam celebridades que ostentavam coisas luxuosas nas redes sociais. Raras baladas e poucos barzinhos a conduziam vez por outra em um programa diferente, mas a pouca ingestão de álcool logo a deixava em desequilíbrio com a tribo. A herdeira dos Spannos foi se afastando das pessoas, dos sons do momento e se ligando a planos e objetivos individuais. Além do direito e da comunicação social, Ruanna amava os livros de Carlos Ruiz Safón e suas pastas de músicas com sons do Axl e dos Engenheiros; "Mesmo Sozinho" do Nando a deixava pensar em despedidas que nunca ocorreram. Dentro dela existia um Arturo Bandini em competências, mas pequeno em autoestima.
Às 14:00 horas, Ruanna pegou o celular e fez uma ligação sem sucesso na primeira tentativa. O Audi no trânsito estava fervendo no sol de trinta e nove graus, as ruas estavam largas para o pequeno numero de carros e Ruanna não queria ir para casa dessa vez. Assim que outro sinal fechou, Ruanna ligou mais uma vez.
— Alô?
— Alô... Ana? — Ruanna conseguira o contato, se apressou um pouco tirando o Audi do trânsito e estacionou rapidamente. Alguns motoristas buzinaram com força chamando a atenção da jornalista quanto à infração.
— Isso... É ela. Quem está falando? — Respondeu uma mulher do outro lado da linha.
— Ana, tudo bem?
— Quem está falando? — A voz do outro lado parecia perder a paciência.
— Não, não desligue! Por favor... Meu nome é Ruanna, sou responsável por um programa no canal 12 aqui da nossa cidade. — Ruanna falava rápido.
— Os vendidos ao prefeito e à câmara municipal? — Ana sorriu do outro lado.
— Esqueça isso... Não é sobre essas pessoas a razão do meu contato. — Ruanna fez uma leve pausa e diminuiu o ritmo da voz. — Eu estou pesquisando o caso do "Pervertido da Rua dos Sonhos" para um programa-piloto sobre crimes sem soluções e reabertura de inquéritos policiais.
— E onde entro no seu projeto? — Ana ficou surpresa, mas sua voz não a delatava, o assunto realmente chamara sua atenção.
— Entre vários casos famosos, escolhi o caso de Eron Menezes como piloto, sobre o crime e as pessoas envolvidas. O objetivo do programa é encontrar novos indícios e rever histórias e, se possível, levar a base do programa para uma nova análise jurídica.
— Ressuscitar mortos? É esse o projeto? — Ana dessa vez fez questão de demonstrar toda sua repulsa sobre o assunto.
— Não, esclarecer dúvidas. — Ruanna esperou alguns segundos. — O projeto começou, sei que você foi uma das citadas no inquérito que foi arquivado, e sei também que seu noivo serviu como testemunha nos trabalhos levantados pela policia local.
— Como conseguiu nosso número?
— Internet. Algumas pesquisas, redes sociais e por último uma agência de empregos. — Ruanna esperou a reação.
— Realmente fácil, fácil mesmo. — Ana pensou um pouco mais. — Creio que tem nosso endereço?
— Sim, tenho. — Ruanna arrastou o sorriso no canto da boca e gritou por dentro.
— Pode vir, estaremos aqui. Se o seu projeto der certo irão nos envolver de novo.  Melhor ser parte desde o início, sempre foi assim. Sendo bem sincera, essa história nos interessa bastante.
— Em uma hora estarei aí! — Ruanna desligou o telefone e irradiou felicidade para si mesma através do pequeno espelho retrovisor. Ana permaneceu do outro lado com o telefone ainda encostado no rosto. O "pervertido" entraria na sua vida novamente.  

||...||

|Todos os alunos focados nos primeiros exames do ano já tinham saído, os corredores da escola estavam solitários e silenciosos, as sombras do pátio se misturavam ao amarelo morno da tarde, os ouvidos gritavam na dependência de um ruído ou qualquer coisa que transformasse o fim de semana em algo mais do que meio expediente de aulas e revisões. Guilherme corrigiu algumas avaliações de matemática e já esperava o sinal do zelador que fecharia a escola. A sala dos professores jogava pela vidraça a imagem daquele professor de matemática de poucos amigos. O jovem Guilhar ainda não se adaptara àquelas velhas lembranças, apesar de absorver cada novo minuto vivido entre aquelas novas pessoas.
— Então havia dois professores loucos por produzir em um sábado!? — Guilherme virou ao ouvir a voz familiar.
— O meu professor de biologia favorito estava no mesmo prédio que eu? — Perguntou Guilherme ao se levantar e apertar a mão de Salvador.
— Também vivo em função desses baixos salários. Estou preso nesses corredores. — Respondeu Salvador com um sorriso no rosto. — Sabe de uma coisa?
— Diga, professor...
— Estou bem aqui, devo passar o resto da minha vida lecionando biologia para alunos do ensino médio. — Salvador sentou com todo o peso do corpo sobre um velho sofá no canto da sala. — E eu estou feliz, cara! — Salvador apesar de mais velho, parecia um menino ao falar daquela escola, o corpo ereto e a barba sempre bem feita diminuíam sua idade.
— Você sempre pra frente. Quem diria, Salvador e eu, professores contemporâneos.
— Assim você me chama de velho, queridinho, estou bem na foto. Acho que são as corridas. — Salvador deixou escapar uma risada e jogou uma bola de papel no amigo. — Temos carreiras parecidas, Guilherme, eu era tão jovem quanto você quando assumi esses corredores.
— Fui um dos seus primeiros alunos e, graças a Deus, parti para a matemática. — Salvador fez careta e arremessou outra bola de papel no amigo.
— Um dos primeiros. Substituí algum tempo outros professores de Biologia antes de me efetivarem por aqui. — Lembrou Salvador. — O governo me pegou na rede!
— Nos pegou, estou nela.
— E seus amigos, Guilherme? — Salvador deixou escapar sem querer. Guilherme pensou um pouco, olhou para as provas que corrigia e as afastou.
— Todos correram para vida. — Guilherme se posicionou em direção a Salvador e cruzou as pernas. — Eu voltei. Na verdade nunca parti. Restou essa escola, a Rua dos Sonhos e aquelas construções velhas que estragam o nome.
— A rua não tem culpa, Guilherme... — Salvador esboçou um sorriso.
— Claro que não. O problema está nas pessoas. A maldade, às vezes, não está nas atitudes, mas apenas na mente.
— Você sente muita saudade dela, não é mesmo? — O professor de biologia ficou sério enquanto enrolava na mão outra bola de papel.
— Sim... Acho que esse é um dos motivos que não me deixa arredar o pé daquela rua. Talvez intimamente seja o motivo que me fez prestar as provas para ser professor dessa velha escola. Apesar do desfecho, acho que esses ambientes me levam a ficar ligado a Iris e a tudo que vivemos.
— E Eron? Por onde anda o meu melhor aluno? — Os dois amigos calaram-se por um tempo e o nome de Eron de Menezes trouxe uma sensação ruim ao ambiente.
— Ele era um gênio, não é mesmo? —Deixou escapar Guilherme.
— Sim, sim. Cálculos, ciências, história, arte. Todos os professores admiravam o poder de criação e o raciocínio de Eron.
— Eu lembro sobre como falavam dele nos corredores. Todos tinham certeza sobre o futuro do magrinho que sentava encostado na parede.
— Eron poderia ser o que quisesse desde que seus sonhos envolvessem livros e horas de concentração. — Salvador levantou. — Falar dele dá um pouco de medo, você não acha? — O professor de biologia correu a vista pela sala.
— Sim, pois ninguém sabe por onde anda aquele monstro. Sem falar que outras mulheres podem ter passado pelas mãos dele. O fim nós sabemos.
— Psicopata? Será que fui professor de um psicopata? — Salvador jogou a ultima bola em Guilherme.
— Acho que sim. Acho que seu melhor aluno matou o grande amor da minha vida.
— E seu melhor amigo, não é verdade? — Disse Salvador sem pensar.
— Verdade.
— Impossível pensar em você e não lembrar Eron. — Salvador encostou a mão direita no ombro de Guilherme. — Você foi à única pessoa que o ouviu nos últimos anos que estiveram aqui.
— Eu acreditava em Eron, achava incrível como os outros o isolavam. Mas os outros estavam certos, professor.
— Sente culpa, Guilherme?
— Não, Salvador. Sinto ódio daquele desgraçado.
— Sabe, Guilherme, eu era um jovem professor por aqui, mas muito observador. Todos entraram em pânico, o clamor dessa escola, desse bairro, da sua rua, correram para o país inteiro. A princípio não conseguia entender sua postura em relação ao desaparecimento de Iris, mas com os dias e com o que via nesses corredores, cheguei à conclusão que você foi atingido duas vezes: Perdeu o grande amor da sua vida e seu melhor amigo.
— Não existe um só dia em que eu não pense sobre esse emaranhado em minha cabeça.
— E parece que essa história renasceu em você.
— Sim, mais que nunca. — Duas batidas foram dadas na vidraça pelo lado de fora. Guilherme e Salvador tinham que ir embora, o zelador os aguardava.
— Vamos sair daqui. Chega de biologia, chega de matemática, chega de Eron por hoje. — Salvador se dirigiu a porta e esperou com ela aberta Guilherme terminar de organizar os papéis. — Temos um fim de semana pela frente!
— Grande fim de semana. —Ironizou Guilherme.

"ONTEM TE VI NA RUA" Onde histórias criam vida. Descubra agora