|Aquela segunda-feira costumeira trazia um cansaço e uma paz disfarçada. Beatriz arrumou sua mochila às pressas e nem tocou no café da manhã. Na TV o apresentador do noticiário matutino falava sobre pancadas de chuva, mas isso não era nenhuma novidade para o Março que se estendia até o infinito. — Que mês longo, meu Deus! — Pensou ela ao gastar alguns segundos olhando o pequeno calendário que estava pendurado na geladeira.
O fone de ouvido foi posicionado e a calça colada erguida para acentuar as curvas, um som novo era experimentado, algo indicado por alguém que ela já nem mais lembrava. No trajeto até a parada de ônibus dezenas de pessoas se misturavam no comércio do bairro, alguns homens com a farda de uma grande loja de calçados deixaram escapar algumas "piadas" inaudíveis graças à tecnologia avançada do som do celular. Beatriz não se importou, não sorriu como de costume. Afinal, ela tinha um homem só dela agora, um homem que a pegava com força, sabe? Mas que fazia carinhos corriqueiros mesmo que a penetração mudasse de intensidade. Apenas Guilherme a completava, aquela calça nova de R$ 99,90 era para ele ver, aquela blusa preta era por que o professor comentou sobre o fascínio que tinha em mulheres que a usavam. Beatriz estava perdidamente apaixonada, nada antes dos últimos acontecimentos importava, ela só queria a chuva, Guilherme Guilhar e aquela casa velha sem ninguém, não importava se seus joelhos ferissem ao ficar de quatro para o homem que a possuiu durante a noite anterior.
O coração estava ocupado com tanto amor, o nariz estava ocupado com o cheiro da testa de Guilherme, a pélvis parecia sentir por segundos o "sobe e desce" ainda na lembrança. A boca de Beatriz estava rasgada na parte inferior dos lábios e o couro cabeludo ainda sentia a dor gostosa dos puxões pela retaguarda. Tudo parecia perfeito, mas sua alma estava doente, ela estava ansiosa, seu fim de semana foi revirado pelos fatos que retorciam sua cabeça. Aquele motel na beira da estrada, aquele gosto ruim na boca e o sêmen sobre suas roupas a perturbavam e acentuavam a importância de Guilherme naquele momento.
Guilherme fora ombros e abraços quando ela mais precisou e Bia jamais esqueceria aquele abuso que sofrera inconsciente, assim como jamais esqueceria o abraço apertado de Guilherme ao dividir aquele segredo e aquela dor com ela. — E se ele não estivesse aqui? — Perguntou ela para Deus na noite anterior assim que acordou na madrugada.||...||
|Guilherme saiu de casa ainda comendo sua única refeição diurna, uma maçã ocupava sua mão direita enquanto a esquerda segurava aquele velho guarda-chuva azul marinho. Os pingos do Março estavam acompanhando mais uma vez o professor que atravessou a Rua dos Sonhos e sorriu ao ver a mansão número sete. O jovem Guilhar estava feliz e completo naquela manhã, talvez algo tivesse ficado para trás.
Guilherme olhou para a casa de Eron, mas não sorriu, ficou imaginando se haveria algo tão perverso que pudesse novamente levar algo tão valioso que o pertencesse. O primeiro andar em ruínas, abandonado pelo tempo e seus moradores clamava por alguma resposta e o professor se lembrou da teoria das janelas quebradas para tentar justificar a quantidade de pedras que deixara toda a vidraça em pedaços. O professor respirou fundo, a Rua dos Sonhos parecia feliz, mas sem dúvida faltava algo, talvez aqueles dois jovens que desapareceram dali e que correram sobre aquelas pedras cinzentas como o céu de Março. Aquela rua tinha tatuada em si Iris e seus cabelos dourados, aquela rua acolheu Eron e seu silêncio, o esquisito e sua arte. Os três cresceram, amaram e foram guarnecidos por aquelas sombras estranhas da entrada da igreja. Os três pisaram nas folhas secas e se molharam com as gotas ousadas que caíam das árvores mais robustas que não silenciavam durante a noite, empurradas pelos ventos. Existia uma redenção por parte de Guilherme, mas um vazio era presente, uma sensação que só cessaria com algumas respostas, mas que hoje não era a coisa mais importante para o professor.
— Guilherme! — Gritou uma voz ao fundo. O professor reconheceu aquele tom cansado.
— Oi, Padre... — Disse Guilherme se aproximando calmamente do Monsenhor Hernandez. — Há quanto tempo, não é mesmo? Não ouço mais sua voz, mas consigo ver o senhor de longe.
— Sim... Já fomos mais próximos, e espero não causar nenhum transtorno ao me aproximar. O tempo correu para todos. — Hernandez contemplou seu antigo coroinha, conseguiu distinguir em Guilherme alguém que já não mais sofria como antigamente. — Acho que o tempo anda fazendo bem a você.
— Não consigo medir isso, é estranho. Acho que são dias bons, então aproveito, pois não sei quando eles irão embora. — Guilherme olhou para o céu e cedeu parte do guarda-chuva ao velho Padre. — O senhor não pode se molhar.
O sacerdote não conseguiu ficar à vontade.
— Tenho visto coisas estranhas ultimamente, meu filho. — Guilherme balançou a cabeça e tentou compreender as palavras de Hernandez enquanto analisava o pouco cabelo do Padre. — Ontem, uma jovem jornalista esteve aqui na paróquia querendo informações sobre sua pessoa e os pecados guardados nessa rua.
— Ontem à noite? Estranho... No mínimo estranho. — Guilherme conseguiu vincular a informação a Ruanna Spanno.
— Ela tem dados novos sobre o crime que envolveu boa parte das pessoas dessa rua, aliás, pretende entrar com um pedido no Ministério Público para desarquivar o caso. — Monsenhor Hernandez parou um pouco, molhou a garganta e esperou a reação de Guilherme.
Guilherme pensou um pouco, olhou para as janelas de Eron quebradas e deu de ombros para analisar a antiga casa número sete.
— Bem, Sereno... Confesso que não posso fazer nada mais por esse nosso passado. — Hernandez ficou perplexo. — Passei mais de 10 anos procurando respostas sobre um corpo e um assassino que destruíram minha vida.
— Como assim? Cansei de ver você chorando por noites. Como você pode deixar a oportunidade de anos escapar das nossas mãos? — Hernandez tocou o ombro do professor e apertou. — Você sabe quantas noites não dormi durante todos esses anos?
— E o senhor sabe quantas noites eu chorei durante todos esses anos sem saber o que fazer? Sem entender por que Iris me abandonou? O senhor sabe como é não entender que o amor da sua vida não tem argumentos suficientes para te deixar e o faz? O senhor sabe o que é perder as esperanças e se achar um lixo e logo em seguida essa mesma pessoa se reaproximar do nada e logo em seguida desaparecer para sempre, num domingo que parou essa rua graças a um banho de sangue? — Guilherme retirou a mão do Padre. — Antes das minhas respostas ela saiu para sempre da minha vida. Não sei onde ela está e talvez nunca saiba. Acho que eu preciso viver...
— Pessoas podem até ser substituíveis, mas histórias não. — Aquela frase entrou como uma flecha no coração de Guilherme.
— E o que posso fazer nessa altura? — Perguntou o professor.
— Eu tenho visto Eron de Menezes... E o ouço também. — Hernandez baixou a vista e olhou para a casa do pervertido. — Isso me perturba, Guilherme. Olhe os meus olhos.
O Monsenhor abriu os enormes olhos azuis manchados por uma vermelhidão. — Não durmo há dias. — Sereno arregalou os olhos para facilitar a vista de Guilherme.
— Eu tenho sonhos com Eron constantemente. — Completou o professor.
— Mas você o vê? — Perguntou Hernandez.
— Acho que uma ou duas vezes no último mês. — Guilherme estava tranquilo e notou o espanto nos olhos do padre à frente.
O Monsenhor dessa vez colocou as duas mãos sobre os ombros de Guilherme e saiu da proteção do guarda-chuva.
— Então não sou o único... — Hernandez deixou a vista baixa enquanto coçou a cabeça.
— Não estou entendo onde o senhor quer chegar.
— Guilherme, a senhorita que acompanha o caso para o documentário disse que tem provas concretas de que Eron está morto há pelo menos dez anos. — Tudo ficou em silêncio. O velho deixou o medo entrar no corpo do professor com suas palavras. A chuva aumentou, Hernandez se afastou e as pernas do professor ficaram paralisadas.
O velho sacerdote subiu a escadaria da igreja sempre olhando para trás, Guilherme se transformou em uma estátua naquela velha praça, ele não conseguia mais olhar para os lados e enfrentar o passado.
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"ONTEM TE VI NA RUA"
Mystery / ThrillerBaseado em dois crimes que chocaram a opinião pública e a imprensa nacional, "Ontem te vi na rua" é o primeiro trabalho de Diego Chermont como escritor. - OBRA COMPLETA DISPONÍVEL -