Reunião em Tleos

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Segundo memorial

Reunião em Tleos

"...quando vi muita coisa e muita gente estranha..."

O navio estava atracado no porto daquela cidade enorme e mal cheirosa. Estávamos em Tleos há duas semanas e ainda tentava me habituar.

– Capitão – chamou um marujo.

– Capitão – insistiu. Eu apalpava minhas cicatrizes, distraído.

– Capitão Quill, está tudo bem?

Foi só então que percebi que o marujo chamava a mim. Após a batalha, poucos navios restaram. A maior parte da frota naufragou e muitos oficiais pereceram. Restaram apenas quatro navios e três capitães. Zidaios assumiu a frota e minha atuação na luta contra Lorde Xastzar motivou-o a nomear-me capitão de uma das embarcações restantes.

– Capitão – repetiu o marujo – o almirante Lazeth solicita sua presença. Uma reunião do conselho foi convocada às pressas.

"Tão cedo?" pensei. "A tal reunião só deveria acontecer em dois ou três dias."

– O que houve? – indaguei por curiosidade.

– Nada sei, senhor.

– Vamos então.

Desci do navio e logo me juntei à guarda portuária que fez nossa escolta. Ali, elfos eram tolerados, mas não eram bem vistos, pois as feridas da guerra contra os humanos ainda não haviam cicatrizado. Nós elfos também não nutríamos amor nenhum pelos humanos, especialmente aqueles originários da civilização do leste.  Porém, cada vez mais, a guerra contra as hordas demoníacas fazia as discordâncias entre humanos e elfos se amenizarem.

Cruzamos ruas movimentadas sob olhares inamistosos, xingamentos e protestos. Era meu primeiro contato com uma cidade de humanos e notei que, apesar das construções possuírem acabamentos toscos, pareciam muito robustas. Conforme ouvi, Tleos fora fundada há mais de três mil anos. Era uma cidade antiga e cheia de templos. Logo, chegamos ao palácio do governador, uma das edificações mais belas da cidade. Em seu interior havia salões de teto bastante alto decorados com obras de arte, armas e afrescos coloridos demais e repleto de figuras, um exagero segundo o senso estético cultivado por nosso povo. Na antecâmara da sala do conselho, me impressionou um grande espelho. Espelhos grandes como aquele eram uma raridade e tive a chance de contemplar minha imagem por alguns instantes. Essa memória de minha imagem refletida ainda jovem, e com o coração ainda um tanto mole é boa para me descrever. Não era mais alto que a maioria dos humanos, que naqueles tempos eram ainda mais altos que nos milênios que se seguiram às guerras. Meus olhos eram grandes e castanhos e o nariz fino e delicado como o de minha mãe. Os cabelos eram anelados e compridos como os de meu pai, tal como me recordo dele quando o vi pela última vez, quando criança. Minha pele assumia um bom bronzeamento da exposição solar, assim como a de muitos marujos. Percebi como minha expressão era séria e muitas pessoas que conheci durante a vida comentavam que era raríssimo me ver sorrindo. Acho que minhas sobrancelhas um pouco grossas, atributo incomum entre os elfos, também contribuíam para minha expressão sisuda. Meus trajes, herdados de um dos capitães que faleceu no confronto contra as hordas, me deixavam com uma aparência distinta, anteriormente inexistente em mim, que costumava vestir roupas simples de um marujo. Calça caqui, botas marrons, cinturão da mesma cor e blusão branco e uma gargantilha feita com um lenço alaranjado. Sobre a cabeça o elegante chapéu de capitão, de cor caqui e detalhes em vermelho. Não pude evitar a vaidade que me tomou e fiquei a me contemplar por algum tempo enquanto aguardávamos a preparação da sala do conselho.

Atrás de mim, surgiu uma criatura horrenda e meu impulso foi sacar a espada. Entretanto, eu estava desarmado. Facas e espadas foram guardas na entrada do palácio. O ser que, por um instante, tomei por um demônio era um bípede de pele lustrosa e escamosa. Seu olhar era frio e inexpressivo e possuía uma longa cauda carnuda e unhas afiadas. Lembrava um demônio alado, exceto pelo padrão esverdeado com rajadas azuladas de suas escamas. Os humanos chamavam-lhes de lagartos, mas eles mesmos tinham um nome para seu povo: Inikutz. Antes da guerra, era um povo desconhecido, mas agora este e outros povos reuniam-se em Tleos para discutir uma aliança contra as hordas invasoras.

Quill - O Exterminador de DemôniosOnde histórias criam vida. Descubra agora