Capítulo 1

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Quando se olha para trás, procurando as memórias mais antigas possíveis, as pessoas geralmente lembram de algo de sua infância, seja uma brincadeira de que gostava, uma pessoa especial ou mesmo um incidente infeliz. Mas no meu caso, a coisa mais antiga de que me lembro é de uma senhora baixinha e entroncada, apontando o dedo na minha cara, me xingando.

Não importava o quanto eu me desculpasse, ela continuava falando. Tudo porque o pote de maionese dela quebrou.

Ela dizia que eu era um incompetente e que merecia o emprego que tinha, depois xingava meus antepassados, intercalando com alguns palavrões.

Nunca fui muito forte e, ao tentar carregar as oito sacolas daquela senhora, acabei abaixando rápido demais quando as soltei no porta malas da caminhonete.

Não humilhado o suficiente, fui chamado pelo gerente, que decidiu que o melhor lugar para me chamar a atenção era na frente de todos os meus colegas e até mesmo de alguns clientes que passavam por perto.

Fiquei encarregado de coletar os carrinhos do supermercado espalhados pelo estacionamento, lugar onde, segundo o gerente, não teria como eu "fazer mais merda".

Acho que existe um limite para o que pode ser dito à um funcionário, mas e o que eu sei? A faculdade que eu larguei era de segurança ocupacional e não de direito.

Empurrando aqueles carrinhos logo percebi que foi a escolha "certa" largar a faculdade.

No final do expediente, depois de ser ridicularizado mais um pouco pelo gerente, ter o estrago deduzido do meu salário miserável e ser ameaçado de demissão, resolvi tomar uma cerveja com meus colegas, só para ser humilhado mais um pouco por eles, pela merda que fiz.

Pendurei a conta como de costume. O Mãozinha olhou torto para mim, fazem três meses que eu não o pago, ainda sim ele me serviu.

Não, o apelido dele não era "Mãozinha" por ter uma mão minúscula, mas porque NÃO tinha uma delas e, em seis anos que frequentei aquele bar, nunca tive coragem de perguntar como foi que ele ficou assim. Uns dizem que é de nascença e outros que ele ficou devendo para os traficantes da região. Nunca saberei ao certo.

Pensei em ir falar com aquela garota de quem eu gostava e está sempre por aquele bar, mas achei que já tinha sido humilhado o suficiente naquele dia, então decidi ir para casa.

Como de costume, antes de passar pelo pequeno portão da frente, a dona Camélia, uma senhora idosa que mora sozinha e gosta de conversar... Ah, como gosta de conversar... Decidiu que deveria contar novamente do seu filho que serviu ao exército e foi para uma missão de paz no Haiti, então decidiu também que eu deveria ter esquecido da história do casamento dela, que ela me contou apenas umas quatorze mil vezes e achou que seria interessante contar desde que eles se conheceram, passando pelo casamento e chegando até o dia da morte do velho.

Claro que não estaria completa sem a "inédita" história de quando ela foi rainha da bateria, no carnaval de, sei lá, mil trezentos e noventa e cinco. Talvez antes de Cristo.

Enquanto ela tomava fôlego, consegui escapar e entrar em casa, antes que ela emendasse com a história do seu pastor alemão, que morreu ano passado.

Com fome, me dirigi para a cozinha, que também era a minha sala.

O pão estava mofado, então arranquei as partes esverdeadas. Fritei um ovo e coloquei dentro do pão, assim estava pronta a janta.

Liguei a televisão apenas para ver uma tela azul.

Botei a cabeça para fora da janela e vi o cabo coaxial, que estava cortado.

Maldito vizinho, o que custava dividir a tv à cabo?

Memórias de um ImortalOnde histórias criam vida. Descubra agora