Capítulo I

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Desde o início dos tempos, Vale dos Corvos tem sido um lugar misterioso e inexplorado, vigiado pelos seus guardiões e pelos espíritos da floresta. Mesmo após a ascensão da Nova Religião, muitos dos antigos mistérios ali sobreviveram.

Hoje, porém, é apenas um vilarejo conhecido como "Vale de Cristo", que parece um nome mais apropriado para um lugar cercado por igrejas e conventos.

Meu nome de batismo é Rose. Há quinze anos, eu era uma recém-nascida, quando meus pais foram executados pelo exército do Cristo. Eles eram a última família "pagã" — como eles gostavam de nos chamar — de Vale dos Corvos.

Sou filha adotiva de um casal bretão, que acreditava não poder ter filhos. Quando fiz três anos, Catherine e Geoffrey tiveram os gêmeos Colin e Amelia.

Pele pálida, cabelos muito escuros, olhos grandes como os de uma coruja e verdes como limões; pequena e magrinha. Essa sou eu. Conforme eu crescia, ficava mais visível que eu não parecia com meus pais e meus irmãos. De longe se via que eu não era uma bretã. Por isso, não fiquei nem um pouco surpresa quando me contaram que era adotada. E, na verdade, não me contaram. Eu apenas perguntei, e eles confirmaram. Hoje, penso que deve ter sido um peso tirado de seus ombros. Essa é a vantagem de ter uma filha como eu. "A menina que nasceu velha", é como me chamavam, já que eu nunca tive verdadeiramente o comportamento de uma criança saudável e feliz.

Não que eu fosse infeliz, longe disso. Fora a destruição brutal de meu povo, eu não tinha muito do que reclamar. Tinha uma vida tranquila, morava em uma casa grande com empregados, tinha pais que não me negavam nada e dois irmãos. Mas eu sempre fui uma menina estranha, que mal abria a boca para falar. Nem mesmo quando eu me furava com a agulha de costura eu reclamava, ou mesmo gemia de dor. Até os dias de hoje, não falo nada além do extremamente necessário, e às vezes nem isso. Também não brincava com meus irmãos, apesar de gostar deles. Preferia ler ou costurar.

Dentro de casa, sinto-me como um animal cativo. Por isso, fujo para andar na floresta e ouvir as vozes de meus ancestrais, e, quem sabe, encontrar o lendário portal que levaria ao mundo encantado.

Catherine e Geoffrey ficam loucos quando faço isso. Quase todas as noites, quando chega a hora de dormir, eu não consigo pegar no sono até sair pela janela e deitar-me no galho da árvore mais próxima. Era como se a floresta fosse o meu lugar.

Eu não conseguia me livrar da sensação de que algo estava terrivelmente errado, e que havia alguma coisa que eu precisava muito fazer, mas não fazia ideia do que poderia ser. Por isso seguia meus instintos, que sempre me levavam ao coração da floresta.

Incontáveis vezes eu cheguei muito perto de conquistar a confiança dos seres da floresta, mas ainda não tive acesso ao portal que levava ao mundo encantado.

Todas as noites eu ia até lá, e quase sempre eles apareciam. Sentia que estava cada vez mais perto, e aquela noite era especial. Era o solstício de verão. Estava me arrumando, pois era uma data especial para o meu povo, e queria muito a confiança deles.

Enquanto me arrumava, percebi a porta de meu quarto entreaberta, e Amelia me observava.

Amelia era alta para a idade. Ela parecia ser mais velha, devido à altura e o corpo já formando curvas. E ela era idêntica a Catherine. Tinha a pele corada e sardenta, cabelos cor de fogo e olhos azuis celestes.

— Aonde você vai arrumada assim? — perguntou — Já sei! Vai se encontrar com algum rapaz, não vai?

— Não, Amelia. Vou fazer o mesmo que faço todas as noites: trazer desgosto aos nossos pais.

— Isso quer dizer ir para a floresta? Arrumada assim? Acha mesmo que vou acreditar nisso?

— Você pode acreditar no que quiser. Não vai mudar em nada.

— Eu vou com você. 

Embora pega de surpresa, não demostrei e tampouco respondi. Apenas balancei a cabeça em sinal negativo, o que serviu apenas para aborrecê-la.

— Não foi uma pergunta. Estou dizendo que vou com você.

— Você não vai. — eu contestei, de maneira tão fria e severa que acho que a intimidou.

— Me dê um motivo.

— Eu não quero que você vá.

— Me dê um bom motivo.

Eu a olhei com desconfiança.

— O que está tramando? — questionei — Você nunca se interessou pela floresta. Sempre disse que era um desperdício de espaço para se construir boas casas.

Ninguém na família estava acostumado a me ver proferir frases tão longas, por isso ela me olhou surpresa por alguns instantes. Mas eu estava tão desacostumada a falar e a socializar, que quando ultrapassava os meus limites, me sentia cansada. Por isso, sentia que estava prestes a ceder.

— Quero saber o que a leva lá todas as noites. Pode me contar, sou sua irmã! — dizia — É um rapaz, não é?

— Você não entenderia...

— Me faça entender então. Quero ver a floresta da maneira que você vê.

— Isso nunca acontecerá.

— Por que não?

— Me deixe em paz!

— Se não me levar com você, então irei segui-la.

— Sendo assim, eu não irei.

Embora não tenha sido a minha intenção, minhas últimas palavras pareceram tê-la magoado muito mais do que o normal.

— Prefere deixar de fazer algo que gosta a me incluir em sua vida? — indagou — Vai ficar para sempre reclusa em seu próprio mundo, sem permitir que ninguém se aproxime?

Eu não disse nada, o que apenas a enfureceu ainda mais.

— Diga alguma coisa! — ela exclamou.

— Tudo bem.

— Tudo bem o quê?

— Pode vir comigo.

De início, ela pareceu não acreditar no que acabara de ouvir. Mas ela bem sabia que eu nunca fui de contar piadas ou fazer brincadeiras.

— Verdade? — ela perguntou, com um largo sorriso que ia de orelha a orelha.

— Sim — respondi — Sob algumas condições.

— E quais seriam?

— Me obedeça. Não questione. Não reclame. Não conte a ninguém. Deixe seus preconceitos de lado. E será a primeira e última vez.

— Sim, posso fazer isso. Eu juro! — ela respondeu, e pensei em como Amelia era demasiada jovem e imatura para entender a seriedade de um juramento — Por onde começamos?

— Tem uma árvore perto da janela. Só precisamos descer por ela.

— Descer pela árvore? Árvores têm insetos!

— Já está me questionando. Vou te deixar aqui mesmo.

— Não! — exclamou — Não questionarei mais.

— Muito bem. — disse — Podemos ir.

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