Capítulo 1 - Uma saida

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AMBAR


Eu esfreguei os olhos e as lágrimas que teimavam em se acumular ali desceram por meu rosto já inchado de tanto chorar. Com os cotovelos apoiados na mesa da cozinha, enfiei o rosto nas mãos e assim fiquei, quieta, esperando que um milagre acontecesse e eu me livrasse de todos aqueles problemas. Mas eu sabia que nada seria tão fácil assim.
Mais uma manhã se iniciava e eu já me desesperava sem saber o que fazer com aquela vida penosa que eu levava há um tempo longo demais. Os problemas só se acumulavam e eu rezava ardentemente para que algo de bom ocorresse e alguma solução aparecesse. Mas meu tempo se esgotava e tudo piorava.
Tentei me acalmar. Tudo ali dependia de mim e eu não podia me entregar à exaustão. Precisava pensar e encontrar uma solução. O meu prazo se esgotava rapidamente.
Assustei-me quando bateram na porta e ergui a cabeça, temerosa. Às sete horas da manhã, aquilo devia significar mais problemas. Rapidamente pensei no agiota que vinha aumentando suas ameaças e nas pessoas que eu devia e que poderiam estar vindo mais uma vez cobrar, inclusive o dono daquela casa. Eu estava com quase três meses de aluguel atrasado e ele vinha avisando que nos jogaria na rua.
- Àmbar! – Chamou-me uma forte voz de mulher e eu relaxei um pouco. Era Luna, minha vizinha e melhor amiga. A pessoa que mais me ajudava no mundo e em quem eu mais confiava.
Sequei bem o rosto com as mãos, respirei fundo e me levantei, saindo da cozinha apertada e indo até a porta de vidro e ferro da sala. Tentei aparentar tranquilidade ao destrancar a porta, mas assim que me viu, Luna percebeu o meu estado e me abraçou com compaixão.
- Chorando de novo, meu bem?
- Não. Acabei de acordar. Entre.
- Como vão as coisas?
- Bem. – Dei de ombros, trancando novamente a porta depois que ela entrou.
- Já tomou café?
- Ainda não. – Não disse que o pó de café já havia acabado há dias. – Sente-se um pouco.
- Vim tomar café com você. – Luna sorriu e mostrou a sacola de plástico que trazia em uma das mãos.
Senti um misto de vergonha e agradecimento. Sem que eu pudesse impedir, lágrimas vieram aos meus olhos já vermelhos, mas eu disfarcei, impedindo que elas rolassem.
- Você não devia gastar desse jeito com a gente, Luna.
- Deixe de besteira. Aqui só tem um pó de café, um leite, alguns pãezinhos e ovos. Eu não ia me convidar sem trazer nada, não é?
- Não sei como um dia vou poder agradecer tudo o que você faz por mim. – Luna sabia dos problemas que me desesperavam. E sempre dava um jeito de aliviar o meu fardo. – Venha, vou fazer um cafezinho.
- Como estão as coisas? – Ela se sentou no banquinho em volta da mesa com dificuldade. Tinha quase sessenta anos de idade e era bastante encurvada, sofrendo de dores na coluna devido à escoliose avançada.
Enquanto pegava uma panelinha no armário descascado em um canto, lancei a ela um olhar preocupado.
- Piorou da coluna, Luna?
- Que nada! Tudo na mesma! Pelo menos os remédios não me deixam mais sentir dor. – Ela apoiou os braços sobre a mesa.
Era pequena, um pouco gordinha e tinha uma brilhante pele  quase sem rugas. Se não fossem os cabelos com fios brancos e o semblante de alguém que já passou por muita coisa na vida, ninguém acreditaria que ela já passara dos cinquenta anos de idade.
Enchi a panelinha com água e pus no fogão velho para ferver, rezando para que o gás durasse bastante e não acabasse, embora eu soubesse que isso devia estar prestes a acontecer. Resolvi não me preocupar com aquilo, pois só ficaria com mais um problema sem solução.
- E a Sophie?
- Está dormindo. – Sem querer sorri, ao falar de minha filhinha de quase três anos de idade. Aproximei-me da mesa e olhei para as coisas que Luna trouxera e espalhara sobre a mesa. Controlei-me para não chorar ao ver a caixinha de leite.
– Obrigada, Luna.
A senhora balançou a cabeça, compadecida. Sabia que provavelmente eu não tinha dinheiro nenhum e que Sophie estava sem leite.
- Gostaria de ver você resolver todos os seus problemas, Àmbar. É tão jovem para passar por tudo isso!
- Tudo vai acabar dando certo. – Falei com um otimismo que eu não sentia. – Vou fazer uns ovos mexidos pra gente.
- Eu só quero café puro.
- Eu também. – Os ovos poderiam ficar para o almoço, pensei.
- Mas vai comer pão agora, não é? Está tão magra que daqui a pouco sai voando por aí.
- Vou, sim. – Sorri para ela com carinho e voltei a pia para pôr pó de café no coador. A água já fervia e eu despejei-a sobre o pó. O cheiro bom de café fez meu estômago roncar e eu percebi que não comia nada há quase vinte e quatro horas.
- Como está o Benício?
- Na mesma. Ainda não acordou.
-E as crises?
-Melhoraram. – Respondi, embora não fosse bem verdade. Ele não havia dormido quase a noite toda, agitado. Fora um custo controlá-lo.
 
Luna não disse nada e eu agradeci. Sabia que ela era contra eu deixar o meu marido doente em casa. Várias vezes opinara que tudo seria mais fácil para mim se eu o internasse. Mas eu prometera a Benício cuidar dele. E era o que me esforçava para fazer.
Pus o café pronto na garrafa térmica e trouxe para a mesa. Peguei dois copos vazios de geleia, uma faca e sentei-me em frente Luna. A margarina havia acabado. Restava-nos comer o pão a seco ou molhá-lo no café. Despejei o líquido quente e doce nos dois copos.
- Coma pão, Luna.
- Não, já comi em casa. Obrigada. – Observou-me molhar o pão no café e comer um pedaço. – Já pensou o que vai fazer agora que o seguro desemprego acabou?
- Tenho que arrumar trabalho. Está difícil conseguir.
- Eu sei. Mas como vai trabalhar com o Benício em casa? Posso olhá-lo, mas...
- Você já me ajuda muito tomando conta da Sophie, Luna. Não tem condições de olhar também o Benício, principalmente quando ele fica violento. É preciso força para contê-lo, virá-lo sempre na cama, limpá-lo.
- Eu sei. Àmbar, não há outra solução. Você precisa interná-lo.
Tomei um gole do café, sabendo que ela tinha razão, mas procurando adiar a solução. Eu fora mandada embora do meu último trabalho por causa de faltas. Quando Benício tinha crises no hospital, eu saía correndo para cuidar dele. Mas não fora só isso. O meu chefe até concordou em ser mais flexível, quando lhe contei meu problema, mas em troca eu teria que ser boazinha com ele. Sorri sem vontade ao lembrar como eu o xinguei e como ele me mandou embora. O desgraçado aproveitador.
Benício havia implorado mais de uma vez, quando ainda tinha consciência das coisas, que eu não o largasse no hospital. Ao ver as feridas no corpo dele, por ficar largado na cama sempre na mesma posição e encontrá-lo várias vezes sujo com fezes e urina, além de muito magro, sem comer, eu o tirei do hospital.
Cuidava dele o melhor possível durante aqueles meses em que estava desempregada e recebia o seguro desemprego. Mas eu precisava trabalhar, para sustentar a casa e pagar todas as minhas dívidas. Estava desesperada, com medo e com raiva de mim mesma por ter que levá-lo novamente para um hospital, onde ninguém se incomodaria se ele estava com fome, frio, sujo ou com feridas. Eu prometera cuidar dele, mas como poderia honrar a minha promessa?
- E o agiota?
Suspirei. Eu devia a Deus e o mundo. Vivia me endividando de um lado, para pagar outro. Pegara dinheiro com um agiota para pagar um mês de aluguel e não ser despejada, agora o homem mandava os capangas me cobrarem e estava perdendo a paciência. Estremeci ao lembrar o grandalhão que batera em minha porta na tarde anterior. Eu pedira mais um prazo para arrumar dinheiro. Ele não alterara a voz. Dera-me uma semana e depois dissera calmamente:
É o prazo final. Não gostaria de ver uma mulher tão bonita com esse rostinho amassado. E sua filhinha? Será que ela gostaria de dar um passeio de carro um dia desses?
 
Eu fiquei apavorada ao entender a ameaça. Sophie estava correndo risco. E eu tinha uma semana para evitar uma desgraça.
Pisquei bem os olhos e respirei fundo, procurando não chorar. Luna me observava em silêncio.
- Coma o seu pão, meu bem. Se ficar fraca e doente, aí mesmo é que as coisas vão piorar.
Molhei mais um pedaço do pão no café e mastiguei, mas minha garganta parecia travada. Não sentia gosto de nada.
- Vou fazer um ovo mexido para você, Àmbar. – Luna começou a desenrolar os ovos do jornal, sobre a mesa.
- Não, eu não quero. Obrigada.
- Mas precisa comer!
- Eu sei, mas estou bem, Luna, não se preocupe.
A senhora parou, deixando o jornal aberto. Levei as mãos até os ovos, para enrolá-los novamente. Meus olhos relancearam por uma foto na coluna de fofocas do jornal e algo familiar chamou a minha atenção. Fixei o olhar.
Era um casal em uma boate. A mulher, loura e linda, era uma modelo conhecida. Mas foi o homem alto e moreno, abraçado a ela, que despertou toda a minha atenção. Reconheci-o de imediato e arregalei os olhos.
Com cuidado, tirei os ovos de cima do jornal e segurei a folha para olhar melhor para o homem. Era ele, com certeza.
Mesmo assim li o enunciado embaixo da foto:
“A linda modelo Valentina Zenere e o empresário milionário Simón King Álvarez divertindo-se na inauguração de mais uma boate do empresário no Rio de Janeiro.”
Simón parecia me encarar através da fotografia, seus olhos Castanhos parecendo negros no jornal. Ele estava mais velho, mais lindo e muito mais viril. Há anos eu não o via. Fechei os olhos por um momento, me recordando do passado. Dez anos.
- Àmbar? Está passando mal? – Luna perguntou, preocupada.
Abri os olhos e fitei-a. Depois olhei novamente para o homem no jornal. Simón continuava a me encarar com o olhar penetrante.
- Estou bem.
- O que houve? Ficou tão pálida!
- Vi este homem e lembrei que o conheci. – Mostrei a foto a ela. Luna fitou-o. – Há dez anos.
- É mesmo? Que bonito! – Olhou-me, curiosa. – Como conheceu um homem desses?
- Ele é meio-irmão de Benício.
- Sério? Nunca falou que Benício tivesse parentes vivos.
- É meio complicado. A mãe de Benício casou com o pai de Simón e, por algum tempo eles viveram na mesma casa. Mas nunca foram amigos. Simón era mais velho e não concordava com o casamento.
 - E você? Como os conheceu?
- Eu e Benício somos primos, você sabe. Meus pais haviam morrido e eu fui morar um tempo com minha tia Lúcia, mãe de Benício.
- Quer dizer que morou na mesma casa que esse moreno aqui?
- Sim, mas por pouco tempo. Como eu disse, ele não concordava com o casamento do pai e logo foi morar sozinho. O casamento também não durou muito, pois o pai dele faleceu. Nunca mais nos vimos.
- Foi o pai dele que deixou a herança para Benício?
- É, uma parte da fortuna ficou com tia Lúcia e depois passou para Benício, depois que ela faleceu. Eles gastavam muito e fizeram péssimos investimentos. Sem contar no vício de Benício por jogo e farra. Acabou com o dinheiro.
Luna balançou a cabeça.
- Se ele tivesse tido mais juízo, vocês não estariam agora nessa situação. – Disse e me encarou. – Nunca mais viram o...- Ela leu o nome no jornal – Simón King Álvarez?
- Nunca mais.
- Você também não se dava bem com ele?
Lembrei-me nitidamente de Simón há dez anos. Ele foi uma das poucas pessoas a me deixar descontrolada e a quem eu odiei de verdade. Arrogante, frio, adorava me insultar. Nunca poderia esquecer o dia em que ele me beijou e me tratou como uma prostituta, quando não o aceitei. Ele sempre insinuava que eu era interesseira e costumava perguntar o preço para transar comigo.
Ainda senti uma parte daquela raiva, apesar de tanto tempo passado.
- Não. Nunca conheci um homem tão frio e sem escrúpulos.
- Que pena. Talvez ele pudesse ajudar vocês agora.
- Simón? – Ri amargamente. – Ele nunca gostou da gente. Acusava tia Lúcia de dar o golpe do baú e ficou furioso ao ter que dividir sua herança com ela. Ele passaria com o carro dele em cima da gente, se pudesse.
- Isso foi há dez anos, Àmbar. Muita coisa passou. Você está desesperada, à beira de um ataque de nervos, sem solução. Por que não o procura e tenta um empréstimo? Ele pode se sensibilizar com a doença de Benício. O máximo que pode acontecer é ele dizer não.
Olhei para Luna, ouvindo suas palavras, mas balançando a cabeça.
- Pode acreditar em mim, Simón nem me receberia. Ele é um poço de arrogância. Não perderia a oportunidade de me tratar como cachorro! Duvido que se comovesse com qualquer coisa.
- As pessoas mudam. – Luna deu de ombros.
Olhei novamente para o jornal sobre a mesa. Simón estava mais velho e muito mais bonito. E se sua arrogância tivesse diminuído com o tempo? E se a raiva não existisse mais? E se a melhora dele não tivesse sido apenas física?
 

Pensei em Benício sobre aquela cama, piorando cada vez mais, precisando de pomadas, fraldas e boa alimentação, sem contar com os remédios caríssimos que nem sempre eu conseguia no hospital. Pensei em Sophie, tão pequenininha ainda, e nas coisas que ela precisava e eu não podia dar. Naquela manhã ela não teria nem leite, se Luna não trouxesse.
Suspirei, muito cansada. O aluguel continuava atrasado e eu vivia pedindo prazos ao dono. E aquele agiota e suas ameaças. Uma semana de prazo. Deus do céu, eu precisava dar um jeito de arranjar aquele dinheiro. Não podia correr o risco deles fazerem qualquer maldade com minha filha ou até mesmo comigo. Sophie e Benício dependiam de mim.
Esfreguei o rosto e encarei novamente Luna. Estávamos à beira de passar fome, ficarmos sem casa e sofrermos violência. O meu orgulho era o que menos importava ali.
- Acho que você está certa. Vou procurá-lo.
- Isso mesmo, minha filha. – Incentivou a senhora. – Quem sabe não foi Deus que pôs esse jornal na sua frente?
- Quem sabe? – Repeti, sem acreditar. – Preciso descobrir como entrar em contato com ele.
- Vamos descobrir. Eu te ajudo. – Ela sorriu e apertou a minha mão com carinho.
Eu gostaria de ser tão otimista como Luna.

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