Capítulo 3 - Eu Aceito

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AMBAR

- Mamãe, por que o papai gritou? Eu não consegui dormir. – Sophie ergueu o rostinho para mim, sentada em meu colo no sofá. Havia acordado de seu cochilo à tarde com os gritos de Benício e estava um pouco assustada, sem querer ficar sozinha.
Acariciei os cachos compridos e castanho-claros de seus cabelos, fitando seus olhos grandes e de um azul reluzente, meio esverdeado. Os olhos dela eram idênticos aos meus.
- Você sabe que o papai está dodói, não é, amor? Às vezes ele esquece das coisas e fica um pouco nervoso, mas logo ele se acalma. Agora ele está dormindo como um anjinho.
- Ele vai dormir e nunca mais acordar, como o pai da Aninha?
- Só o papai-do-céu sabe quando a gente não vai acordar mais. Se o seu pai estiver muito cansado, talvez seja melhor para ele, não é?
- É. Eu queria que ele ficasse aqui com a gente. Ele nunca brinca comigo. Só você. Ele nunca saiu da cama?
- Saiu, antes de ficar doente. Agora ele precisa descansar. – Olhei-a com amor, vendo o rostinho inocente e confuso. Sophie nunca tivera um pai de verdade, presente. Benício já estava doente quando ela nascera e piorara enquanto ela crescia. Inclinei-me para beijar sua bochecha. – Mas ele te ama muito, Soph. E eu estou aqui para brincar com você.
 
- Ainda bem. – Ela sorriu para mim e eu sorri de volta. Adorava ficar com ela assim no colo, mimando-a. Era linda, doce e o amor da minha vida. Eu nunca amara ninguém do jeito que a amava. Por ela eu daria a vida.
Tal pensamento renovou o medo que não saía de dentro de mim, enquanto os dias passavam. No dia seguinte completaria uma semana do prazo dado pelo agiota e eu tentara de tudo naqueles dias para conseguir algum dinheiro. Passara roupa na casa de vizinhos, fizera faxina, me desdobrara, mas só conseguira o suficiente para pôr comida em casa e comprar a pomada para evitar feridas em Benício. Estava exausta e mal conseguia dormir.
O dono da casa vivia me cercando e perdia a paciência com o aluguel atrasado. Nada dava certo. Parecia que um círculo de dor, medo e pobreza se fechava cada vez mais à minha volta e eu não sabia como escapar daquilo.
Parei de acariciar os cabelos de Sophie ao pensar em Simón King Álvarez. Uma onda de vergonha e humilhação me envolveu e a raiva que eu sentia dele aumentou. Havia uma solução para os problemas. Prostituir-me para aquele canalha. Mas eu não podia fazer algo assim. Eu era casada e Benício fora meu único amante. Eu nunca me deitaria com um homem por dinheiro. Devia haver outra solução.
Bateram na porta de repente e eu me assustei. Sophie quase cochilava em meu colo e despertou.
-Será a tia Luna, mãe?
-Não sei. – Ergui a voz : - Quem é?
Bateram outra vez, agora com mais força. Percebi que era mais algum problema. Talvez uma cobrança. Gelei ao pensar que poderia ser o agiota, vindo um dia antes do prazo combinado.
- Sophie, vá para o seu quarto e feche a porta. Deite na sua caminha e tente tirar um cochilo. Só saia de lá quando a mamãe chamar.
- Lá está calor, mãe.
Bateram mais na porta, fazendo o vidro trepidar. Gelada, eu me levantei com Sophie.
- Vá. Faça o que eu disse. Daqui a pouco vou te buscar.
Ela ia reclamar, mas pareceu perceber que eu estava nervosa e obedeceu. Respirei fundo e fui até a porta. Vi a sombra grande de um homem através do vidro.
- Quem é?
- Abra a porta. Quero falar com a senhora.
- Mas quem é você?
- A senhora sabe quem sou. Se não abrir, vou arrombar.
- Vou chamar a polícia!
- Antes de a polícia chegar, eu já terei entrado aí e resolvido o problema. Comecei a tremer e a suar frio, sem saber o que fazer.
- Vim apenas conversar. É melhor a senhora abrir.
 
- Por favor, tenho uma filha pequena e meu marido está doente!
- Só quero conversar. As coisas só pioram amanhã, se não pagar a sua dívida. Vim dar um recado do Sr. Silva.
Eu sabia que só deixaria o homem mais nervoso e que ele arrombaria aquela porta velha facilmente, se quisesse. Abri somente o vidro e o encarei. Era um negro alto e grandalhão, com olhar malévolo e uma cicatriz no canto da boca, que repuxava seus lábios para baixo no lado esquerdo.
- O sr. Silva quer saber se o dinheiro estará aqui amanhã.
- Preciso de mais um prazo. Olha, eu...
- Sem prazos. Amanhã ele virá aqui e, se a senhora não tiver o dinheiro, vai pagar muito caro. Pode chamar a polícia e até se esconder por algum tempo, mas a gente te encontra. – Ele sorriu, expondo um dente quebrado na frente. Olhou-me de cima abaixo. – Ele vai gostar de receber o pagamento de outra maneira. Depois de usado, seu corpo vai parar na lama. Coitada de sua filha. Sem mãe e sem pai. O sr. Silva gosta muito de menininhas. Vai ter o maior prazer em cuidar dela.
Eu não consegui dizer nada, imobilizada pelo pavor. Estava gelada e trêmula.
- Tenha uma boa tarde. Amanhã, a esta hora, virei aqui com o sr. Silva, pegar o que a senhora deve. E é melhor não fazer nenhuma besteira. Tem alguém de olho na senhora. – Lançou-me mais um olhar asqueroso e se retirou.
Levei as mãos ao rosto e comecei a soluçar, em desespero. O que eu ia fazer? O quê?
- Àmbar. – Era Luna na porta, assustada. – O que houve? Era do agiota?
Sequei as lágrimas rapidamente, concordando com a cabeça, tentando me controlar. Tremia muito ao abrir a porta, deixar a senhora entrar e depois trancá-la.
- Oh, querida! Gostaria tanto de poder te ajudar!
Sem suportar mais tanta pressão e desespero, abracei-me a Luna e deixei as lágrimas descerem livremente. Ela tentou me confortar, fazendo carinho em minhas costas, acalmando meus tremores. Por fim consegui me afastar e enxuguei os olhos, tirando o cabelo do rosto.
- Não posso deixar que façam mal à Sophie. Se eu não tiver o dinheiro amanhã, vão me estuprar e matar, e depois vão pegar a minha filha! Deus do céu, o que eu fui fazer! Desesperei-me sem poder pegar empréstimo e recorri a esse agiota, que não passa de um bandido! Não posso nem chamar a polícia! Depois eles se vingariam.
- O que vai fazer?
Olhei para a senhora, sentindo-me subitamente muito fria.
- Só posso fazer uma coisa. Ser a prostituta de Simón King Álvarez.
Luna, que sabia daquela proposta e ficara tão furiosa quanto eu, franziu o cenho, penalizada. Sabia que eu nunca faria tal coisa, se pudesse evitar.
- Se não for prostituta dele, vou ter de ser do agiota e seus capangas. Não tenho muita solução, não é?
- Jesus Cristo! – Luna balançou a cabeça. – Que coisa horrível! Como esse irmão de Benício é canalha! Ele poderia muito bem te ajudar sem exigir isso.
- Ele quer se vingar. No passado eu o rejeitei. Ele me chamava de prostituta do Benício. Agora quer provar que tenho mesmo um preço. Duvido que se importe com Benício ou comigo. Nunca nos engoliu. Não perderia uma chance de me humilhar.
- Tem certeza do que vai fazer? Você nunca mais será a mesma depois disso.
- Não tenho escolha, Luna. E não posso ficar pensando muito. Amanhã preciso ter o dinheiro à mão.
- Vai lá agora? E se ele não estiver no escritório? Tem o telefone de lá?
- Sim. Na boate me deram o endereço e o telefone do escritório dele.
- Vá lá em casa e ligue. Fico aqui e olho a Soph e o Benício.
-Obrigada. Não sei o que seria de mim sem você. – Beijei seus cabelos grisalhos ao passar por ela para ir pegar o número do telefone em minha bolsa. Sentia-me como se estivesse indo para a forca.
No corredor, espiei para dentro do quarto onde eu dormira com Benício nos últimos anos. Deitado imóvel sobre a cama, o homem pálido e esquelético dormia profundamente, coberto por um lençol até o peito. Entrei silenciosamente no quarto a aproximei-me da cama.
Lágrimas surgiram nos meus olhos mais uma vez ao vê-lo naquele estado. Ele tinha apenas trinta anos. Talvez nem chegasse a completar trinta e um. Era apenas a casca do homem que fora no passado e por quem eu havia me apaixonado.
Acariciei seu cabelo macio, castanho claro, e minhas lágrimas pingaram no lençol. Tentei me controlar enquanto o virava mansamente de lado, ajeitando suas costas e seu quadril. Estava tão magro que eu o pegava no colo. Precisava sempre mudar a posição dele, para que não criasse feridas.
No hospital, ele sempre ficava com as feridas, pois os enfermeiros deixavam-no amarrado na cama, sempre na mesma posição. Em casa eu era cuidadosa com aquilo, não deixava faltar as pomadas dele, mantinha-o sempre limpo e acordava de madrugada para virá-lo.
Os remédios para evitar a dor e o próprio estado dele, de semicoma, deixavam-no dopado a maior parte do tempo. Somente muito raramente, como acontecera naquela tarde, ele recobrava a consciência e começava a gritar, falar do passado, com pensamentos confusos e agressivos. Era a fase final da doença. Logo ele não teria mais consciência nenhuma.
- Perdoe-me. – Murmurei, beijando sua face fria e ossuda, com carinho. Eu jurara cuidar dele até o final e ser fiel. Agora eu teria que quebrar a segunda promessa. Tentei controlar novas lágrimas. – Deus sabe que eu não faria isso, se pudesse evitar. Durma bem, querido.
Ergui-me, ajeitei seus lençóis e saí do quarto em silêncio. Abri a porta do quarto da frente, onde Sophie dormia tranquilamente de bruços. Enchi-me de amor, beijei seus cabelos e silenciosamente rezei para que ela nunca soubesse o que eu ia fazer. Peguei o pedaço de papel em minha bolsa, com o telefone do meu carrasco, e saí do quarto sem fazer barulho.
Luna estava sentada no sofá, visivelmente nervosa e preocupada por minha causa. Tentei ser corajosa e sorri para ela.
- Tudo isso vai passar, Luna. E eu vou esquecer.
 
- Se eu pudesse evitar isso!
- Ninguém pode. Vou até lá ligar, está bem?
- Claro. A porta está aberta.
A casa da senhora era menor do que a minha, mas estava em melhores condições. Sentei no sofá da sala muito limpa e não quis ficar remoendo o que eu ia fazer. Era melhor resolver tudo de uma vez.
Disquei e em pouco tempo uma mulher atendeu. Disse rapidamente a ela que eu queria falar com Simón King Álvarez e quem eu era. Para minha surpresa a secretária não veio com desculpas de precisar de hora marcada. Pediu apenas que eu esperasse na linha.
Demorou um pouco até uma voz grossa atender:
- Eu estava de saída. Por pouco você não me encontra aqui, Àmbar. Fiquei gelada ao ouvir a voz dele. Segurei o telefone com força.
- Eu aceito. – Falei baixo.
- Eu sei. – A arrogância dele fez minha raiva aumentar.
        - Preciso do dinheiro hoje.
- Temos que conversar e combinar os detalhes.
- Que detalhes? Você já não fez a sua... oferta? – Não pude evitar a ironia.
- Isso é um negócio, Àmbar. Tudo precisa ser exato, para evitar mal entendido. – O tom dele era cínico e a sua voz baixa. Parecia estar se divertindo por conseguir o que queria. – Dê-me seu endereço. Meu motorista vai buscá-la.
       - E me levar para onde?
- Ora, para o covil do lobo! Espero você em meu apartamento. Combinaremos durante o jantar. E depois cuidaremos dos pagamentos.
           - Eu... Não posso demorar muito. Preciso cuidar de minha filha e do...
- Já falei tudo o que havia para ser dito. Levaremos o tempo que for preciso. Arrume alguém para cuidar de seus problemas por enquanto. Dê-me o seu endereço.
Eu tremia de ódio daquele homem ao ditar o meu endereço em Nilópolis, na Baixada Fluminense.
- Espero você. – Simón disse friamente, antes de desligar o telefone.
Voltei para casa controlando-me para não chorar. Eu sempre fora de chorar à toa e, com todos aqueles problemas, vivia chorando. Mas queria ser corajosa e levar adiante com aquele acordo. Não ia me entregar ao desespero.
- Falou com ele? – Luna se levantou do sofá com esforço.
- Sim. O motorista dele vem me buscar. Eu não gostaria de te pedir mais isso, mas...
- Não se preocupe. Fico aqui e tomo conta de tudo. Sophie adora ficar comigo e sabe que sou louca por ela. – Ela sorriu.
 - Benício hoje ficou nervoso, mas agora dormirá direto. Você sabe trocar o frasco do soro, não é? Vai demorar a acabar, pois está lento.
- Sei de tudo isso. Agora vá se cuidar. Nada disso é culpa sua, Àmbar. Você continua sendo a moça forte e lutadora que eu admiro. Continuará pura. Deus vai te abençoar.
Abracei-a e depois quase saí correndo da sala. Precisava me preparar para mais uma prova que a vida colocava em meu caminho.

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