A língua, que me havia vulnerado
E a vergonha nas faces me acendera,
O bálsamo aplicava ao mal causado:
Assim de Aquiles e seu pai fizera,
Dizem, outrora a lança portentosa:
Sarava o corpo, que cruel rompera.
Damos costas à estância desditosa,
Sem proferir palavra atravessando
Sobre a borda, que em torno jaz fragosa.
Noite não sendo e dia não reinando,
Pouco distante eu divisar podia,
Eis som de trompa escuto, retumbando
Tão alto, que o trovão transcenderia,
Donde irrompera contra a parte andava
E sôfrego a um só ponto olhos prendia.
A de Orlando tão forte não soava
Na derrota fatal, que a santa empresa
De Carlos Magno o desbarato dava.
Já assim por diante: eis a grandeza
De muitas e altas torres me aparece.
"Qual é" — digo — "essa vasta fortaleza?"
"Pois de tão longe e em trevas te apetece
Julgar" — Virgílio diz — um erro agora
Imaginando estejas acontece.
"Verás ali chegado, sem demora,
Quanto a distância a vista nos engana:
O passo acelerar convém por ora".
Da mão travou-me e em voz suave e lhana
O Mestre prosseguiu: "Antes que avante
Passes, dessa ilusão te desengana.
"O que torre imaginas é gigante.
Da cinta aos pés imergem-se no poço,
E alçam bustos em torno ao espaço hiante".
Quando o sol gasta o nevoeiro grosso,
Pouco a pouco se mostra e é discernido
Quanto oculta o vapor ao olhar nosso:
Vendo assim por esse ar escurecido,
Da borda mais e mais me apropinquando,
Fugia o erro, o horror tinha crescido.
Como torres em roda se elevando,
Montereggion guarnecem de coroa:
Assim do poço a margem circundando,
Torreiam com metade da pessoa
Os horríveis gigantes, que ameaça
Do céu ainda Jove, quando troa.
Distingo a cara de um (e me transpassa
O medo), logo os braços, peito e parte
Do ventre, que da borda a altura passa.
Bem fez a natureza, quando essa arte
De tais monstros criar há descurado,
De iguais agentes desarmando Marte.
