Do engenho meu a barca as velas solta
Para correr agora em mar jucundo,
E ao despiedoso pego a popa volta.
Aquele reino cantarei segundo,
Onde pela alma a dita é merecida
De ir ao céu livre do pecado imundo.
Ressurja ora a poesia amortecida,
Ó Santas Musas, a quem sou votado;
Unir ao canto meu seja servida
Calíope o som alto e sublimado,
Que às Pegas esperar não permitira
Lhes fosse o atrevimento perdoado.
Suave cor de oriental safira,
Que se esparzia no sereno aspeito
Do ar até onde o céu primeiro gira,
Recreia a vista; e eu ledo me deleito
Em surdindo da estância tenebrosa,
Que tanto os olhos contristara e o peito.
A bela estrela, a amor auspiciosa
Sorrir alegre faz todo o Oriente,
Vela os Peixes, que a seguem, luminosa.
Ao outro polo endereçando a mente,
Volto-me à destra, e os astros quatro vejo,
Que vira só a primitiva gente.
Folgar o céu parece ao seu lampejo.
Do Norte, ó região, viúva hás sido,
De os contemplar te não foi dado ensejo.
Depois de os remirar, já dirigido
Olhos havia para o polo oposto,
Donde a Carroça havia se partido,
Eis noto um velho, perto de mim posto,
Que reverência tanta merecia,
Que mais do pai não deve o filho ao rosto.
Nas longas barbas nívea cor saía,
Sendo na coma sua semelhante,
Que em dupla trança ao peito lhe caía.
A luz dos santos astros rutilante
De fulgor tanto lhe aclarava o gesto,
Que o vi, como se o sol lhe fosse adiante.
— "Quem sois que em contra o rio escuro e mesto
Do eterno cárcere heis fugido os laços?" —
Movendo as nobres plumas, disse presto.
"Quem vos guiou alumiando os passos
Para a profunda noite haver deixado,
Que enluta sempre os infernais espaços?
"As leis do abismo acaso se hão quebrado?
O céu dá, seus decretos revogando,
Que dos maus seja o meu domínio entrado?" —
Travou de mim Virgílio, me exortando
Por voz, aceno e mãos: como queria
