"Eis a fera, que a horrenda cauda enresta,
Que arneses, montes, muros atravessa
E com seu bafo impuro o mundo empesta!"
Assim Virgílio a me falar começa.
Para acercar-se logo lhe acenava
Ao marmóreo anteparo que ali cessa.
Da fraude o vulto imundo aproximava!
A cabeça avançou e o torpe busto,
Porém pendente a cauda lhe ficava
A cara assomos tinha de homem justo,
Tanto era o parecer benino e brando!
No mais serpe, movia horror e susto.
Grandes, hirsutos braços dilatando,
Alçava peito, ilhais, dorso malhados,
Mil rodelas e nós se entrelaçando.
Mais cores nos estofos recamados
Tártaros, Turcos nunca misturaram,
Nem Aracne em tecidos variegados.
Como os batéis, que à praia se amarram,
No mar a popa têm, a proa em terra;
E, como em regiões, que se deparam
Sob o voraz Tudesco, a fazer guerra
Embosca-se o castor: assim se via
O monstro à orla, que as areias cerra.
No ar a extensa cauda revolvia;
E a venenosa ponta bipartida,
Do escorpião qual dardo, se erigia
Té onde a fera atroz jaz estendida.
Convém seja o caminho desviado
Da senda" — disse o Vate "prosseguida". —
Descendo, pois, pelo direito lado
Para ao fogo fugir e à areia ardente
Passos dez pela borda hemos andado.
Chegados nós de Gerião em frente,
Um tanto além sentado um bando achamos
Na areia, perto desse abismo ingente.
— "Do recinto por teres, em que estamos" —
Virgílio disse — a experiência inteira
A sorte vai saber dos que avistamos.
"Os discursos, porém, filho, aligeira.
Entanto impetrarei da fera infanda
Que prestar-nos seus ombros fortes queira". —
Só pela borda, como o Vate manda,
Vou do círculo sétimo seguindo,
Dos mestos pecadores em demanda.
A dor, que brota em lágrimas, sentindo,
Socorre-se das mãos a aflita gente
Contra o solo e o vapor, que está caindo.
Assim lebréus, durante a calma ardente
Dos dentes e unhas valem-se, mordidos
De tavões por enxame impertinente.