Por uma dessas margens empedradas
Imos: vapor do rio resguardava
Das chamas o álveo e as bordas elevadas.
Como do mar temendo a força brava
De Bruge a Cadsand, Flamengos fazem
Os diques, com que o mal se desagrava;
Ou como o dano atalha, que lhe trazem
Do Brenta as invasões de Pádua a gente,
Se em Quiarentana os gelos se desfazem,
Assim as bordas desse rio horrente,
Posto altura e grossura lhes não desse
Iguais, quem quer que fosse artista ingente.
A selva já distante de nós era
Tanto, que eu divisá-la não podia,
Quando os olhos por vê-la atrás volvera,
Eis encontramos multidão sombria,
Que a margem costeava, nos olhando,
Como sói caminhante, ao fim do dia,
Que vai, por lua nova, outro encarando:
Para nos ver os cílios contraindo,
Qual a agulha o artesano aparelhando.
Assim, de mira à turba nós servindo,
Conhecido fui de um que me travava
Da roupa — "Ó maravilha!" — repetindo.
Quando o seu braço para mim se alçava,
Atentei-lhe no rosto requeimado;
Posto que demudado, não vedava
Que de mim fosse nas feições lembrado.
À sua face inclinando a mão, lhe digo,
— "Messer Brunetto! vós aqui!" — torvado.
"Filho meu! complacente sê comigo!
Vir Brunetto Latini ora consente,
Deixando a turba, um pouco assim contigo!" —
Tornei: — "muito vos rogo; e que me assente
Convosco se quereis, prazendo ao guia
Dos passos meus, assentirei contente". —
"Se um momento um de nós" — me respondia —
Aqui parasse, imóvel anos cento,
Pelo fogo ferido jazeria.
"Caminha: que eu te irei no seguimento.
Depois hei de juntar-me à companhia
Dos que pranteiam no eternal tormento". —
Eu da estrada a descer não me atrevia
Por ir com ele; mas a fronte inclino
Reverente; e, falando prosseguia.
— "Que fortuna" — me disse — ou que destino
Antes da morte aqui te há conduzido?
De quem recebes na jornada ensino?
— "Antes de haver da idade o tempo enchido
Sobre a terra na vida sossegada,
Num vale" — respondi — "fiquei perdido.
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