— Não sei exatamente o que eu espero... — digo para as sombras, que me assistem sentar diante a parede de correspondências, onde um grande armário de madeira, segredado com pequenas tábuas, e sem suas portas, carrega o nome de cada garoto do internato.
Todos menos o meu e o de Barnaby.
— Acho que eu só... — As palavras me faltam, então como meu interlocutor é silencioso, tal que consigo ouvir o piar de uma coruja distante, além do corredor e das janelas de que vão do chão ao teto nas alas leste e oeste, não me importo de tomar minutos para continuar. — Acho que me senti culpado.
Ergo os olhos para os nomes presos à madeira, na direção de onde estaria o dele, e onde ainda aparecem cartas, vez ou outra, como se seu autor não soubesse...
Não soubesse que...
Aperto os lábios e ajusto a lamparina, virando-a e a acomodando entre minhas pernas, como se eu pudesse abraçar aquela estrela, quente e amarelada, que me torna um pequeno vagalume, também.
— Roubei as cartas que chegaram para você — prossigo, tomando coragem, pinçando as pontas dos dedos, como sempre faço quando fico nervoso. — Pensei que não iria se importar, já que não está mais aqui, porém confesso que o grau de importância recaiu sobre minha própria consciência. Eu não deveria roubar palavras que foram feitas para você. Que foram desenhadas pensando em ti.
Pauso. Pinço o polegar duas vezes e respiro fundo.
— Não sei quem você foi, Barnaby, mas... — a dor reaparece no meu peito. O vazio. A profunda sensação de que algo me esmaga e eu não sei como escapar. —...às vezes, penso que eu gostaria de ter sido quem você foi.
Meus olhos estão molhados. Por que isso de novo?
— Sinto muito que tenha morrido. Que tenha tirado a própria vida, pelo que ouvi nos corredores. Não desejava que fizesse isso, mas também... tenho que admitir que minhas razões para tal são mais egoístas do que poderia pensar. — Fecho os olhos. Faço com que as lágrimas se contenham no canto dos cílios, trêmulos, enquanto as sensações me entrelaçam como vinhas negras, apertando o coração, escalando meu peito assim como a parede do lado norte do prédio secundário.
O relógio de chão que há no fim do corredor está escondido, mas sei que não foi a lugar algum porque o tique-taque dos segundos descompassam meu coração.
Quanto mais tempo ali fico, maior o risco de ser pego.
Minhas palavras escapam como sussurros, pois então:
— Queria que não tivesse morrido para que eu pudesse te conhecer. — Debruço sobre a lamparina e um alívio estranho abranda a pressão em minhas costas. — Penso que, se o tivesse feito, talvez eu fosse melhor. As cartas falam tão bem a seu respeito, sabia? Minha favorita, até hoje, fala sobre uma tarde na região de Thornton. Ah! — exclamo de repente, minhas sobrancelhas subindo. — É a mesma região onde Charlotte Brontë nasceu, estou lendo um livro de sua autoria, sabe?, e acredito que talvez gostasse. Você gostava de ler? Na minha mente, imagino que sim.
E, é claro, não há qualquer comentário que segue um relato tão honesto que me rouba um suspiro.
— Às vezes, Barnaby, te considero um amigo — lamento enquanto meus olhos baixam para as sombras que fogem da luz que carreguei até ali. — Eu não tenho muitos. Quer dizer, nem sei se tenho algum... além dos professores, entende? Houve um incidente, tempos atrás, e eu juro que me arrependo... bem, isso seria mentira. Mentir para o seu fantasma é cruel, considerando que já lhe roubo as cartas. — Repenso, mordo o lábio inferior e bato a ponta do indicador contra o queixo. — Não me arrependo do que fiz, mas me arrependo das consequências que aquilo teve. Eu... não sou um monstro.
A frase ecoa estranha, porque ela não se perde carregada pela respiração e desaparece entre os corredores. Ela reverbera dentro de mim, ecoa, no que eu acredito ser, a minha esperança.
Preciso ler mais a respeito, se quiser entender, mas um fato eu vejo com grande clareza: me sinto melhor quando encontro palavras que são minhas.
Até então, não estava usando qualquer livro para conversar com Barnaby. Isto é, se eu puder considerar um monólogo com um possível fantasma uma verdadeira conversa.
— Não sou um monstro — repito, erguendo o olhar para o vazio. — E não sou estranho. Não sou nada e sou tudo, ao que parece, porque não posso estar com os outros rapazes. Por que não? O que eu fiz, de tão grave?
O vazio me encara de volta, sem responder.
Meus ombros caem para frente e as mãos despencam ao lado do corpo, fracas como se as juntas fossem nós a se desfazer.
— Barnaby, você seria meu amigo, se eu pedisse? — fungo. As lágrimas ardem, assim como as teias de aranha queimadas e as estrelas no céu, que agora se escondem, porque a correspondência fica na sessão fechada do prédio principal de fronte para o salão comunal do refeitório.
Olho naquela direção, por um momento, e sou capaz de distinguir a passagem em arco e as fileiras de mesas. A imaginação ajuda, certamente.
— Eu dividiria meu Yorkshire Pudding com você — reflito, o canto direito do lábio subindo por aquele momento, sem que eu realmente o controle. — E olha que meu amor por esse prato é tão grande que isso se torna um enormíssimo ato de amor.
Paro.
Congelo.
Estremeço e respiro fundo.
— Mas eu também não sei o que é amor.
Minha voz é um mero sopro, tal que até mesmo a distante coruja se sobrepõe, desta vez.
— Quiçá... ensinar-me-ia a respeito disso. Não... do amor, é claro, porque as missivas deixam claro o quanto alguém já te ama, mas... sonho, quando as leio, que conseguiria me explicar o que sinto. Como nomear o que não se pode ver? Como descrever o que se é, quando não se sabe? — Passo a mão por entre os fios do meu cabelo, que caem na diagonal do meu rosto. — Vim aqui pedir desculpas, mas também para te agradecer. Suas cartas têm sido uma boa companhia, e espero que me perdoe por as ter roubado. Juro que não fiz por mal.
Levanto e tomo cuidado com a lamparina. A vela já derreteu o suficiente para que a cera se torne perigosa de escorrer para onde não deveria.
— Bem... é só isso. Obrigado pela conversa, Barnaby — despeço-me com um último sorriso.
Ao menos, acredito estar sorrindo pela forma que meus lábios se repuxam, mas as palavras não emanam felizes. Poderia haver tal dicotomia?
— Boa noite — termino, girando nos calcanhares.
— Boa noite — responde uma voz.
Todos os pelos do meu corpo se arrepiam.
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As palavras não ditas (Degustação)
Подростковая литератураELEITA MELHOR HISTÓRIA DE 2020 PELOS EMBAIXADORESBR!!! Em uma época que o espectro autista ainda não é conhecido, Levi Proofwell não consegue deixar de sentir-se diferente. Ele sabe que sua percepção sobre o mundo, vista do topo do telhado de uma r...