Capítulo XII - Colega de Quarto

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A primeira vez em que percebo que minha vida realmente está por mudar, ou ao menos que sei que nunca esquecerei como tudo já estava mudando, coincide exatamente na primeira vez em que o vejo: um garoto, ali, sentado de costas para mim, no escritório do diretor Luther, com as feições duras e frias sendo delineadas pela luz que incide em diagonal através do vidro da janela.

Meu coração para.

Tropeça.

Se arrebenta em um nervosismo que me faz suar.

Mas tudo que posso fazer é tentar me acalmar com alguns fisgares nos dedos. Os pobrezinhos quase sangram tamanha é a sensação que me acomete.

Não estou sozinho. O diretor me chamou para conversar, e convocou outro aluno!

Sinto o carpete do escritório acolhendo a sola de meus sapatos quando finalmente retomo a capacidade de mover mais do que apenas as pontas dos dedos. Sei que o faço da maneira mais elegante e correta que poderia, mas sinto que falho nessa perfeição por conta do medo que repassa na minha mente.

Não posso estragar tudo.

Não posso... ser... estranho!

Agito os cílios e respiro fundo. São tantas preocupações e variáveis a se considerar que os segundos são sufocantes por terem natureza tão insuficiente. Torço para que as pontas lustrosas de meus sapatos, que me levaram algumas horas para deixar tão brilhantes, tal qual sua fivela prateada, sejam o bastante para compensar a falta de eloquência em esconder os nervos.

Ou talvez o colete azul cerúleo que decido usar, de um brocado de veludo, distinto, mas ainda aceitável, assim como o conjunto cinza-chumbo que escolhi.

É nesse instante que meus olhos vacilam e voltam-se ao rapaz que não sei quem é. Mesmo de costas, sei que o recorte de seus trajes remete a um modelo Prince Albert, perfeitamente alinhado em seus ombros, largos demais para serem cobertos pela cadeira, mas ainda arredondados e estreitos o suficiente para que seja considerado um jovem.

Pela falta de interesse dele, o que não sei são certo se me faz sentir qualquer coisa que não alívio, posso observá-lo mais um pouco no ambiente, que permanece exatamente como lembrava: portas e janelas feitas de uma madeira tão escura quanto os carvalhos velhos, que se encontram pelo exterior da propriedade, sempre perto de pequenas poças d'água que faziam a grama chorar a cada pisada, com uma parede forrada de livros, mais livros do que eu penso que conseguirei ler na vida, dos mais diversos tons pasteis, com capas duras, forradas em couro, o cheiro da tinta ainda presente em algumas páginas.

E ali estava ele. Sem nome. Sem um rosto. Mas com um propósito.

Quiçá tais considerações sejam apenas um impulso de meu próprio desejo de encontrar uma semelhança entre nós, que explicasse sua presença, mas a única pessoa que, de fato, pode apaziguar — ou torturar — meus pensamentos é o diretor Luther, o qual permanece sentado atrás de sua mesa, as mãos entrelaçadas em um conforto rotineiro; apesar do rosto que em nada parecia feliz.

Quando finalmente alcanço a frente de sua mesa, cumprimento-o e sou convidado a me sentar, noto que sua falta de jovialidade talvez não venha de seus quase cinquenta anos, mas sim da infelicidade da tarefa que estava se dispondo a fazer.

Cuidar de um excluído não é a tarefa mais fácil, por isso excluídos cuidam de si próprios.

Por um instante, considero se o garoto ao meu lado também se sente assim...

— Sente-se, meu rapaz — convida o diretor antes que eu divague para longe, e noto como ele pressiona as têmporas e respira fundo.

Talvez eu tenha feito algum movimento equivocado na hora em que aceitei o convite, pois pela primeira vez desde que entrei na sala do diretor, minha presença é notada pelo outro rapaz.

As palavras não ditas (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora